Zonas (23/09/2012)
Recebo e-mails de amigos, de conhecidos, de colegas de trabalho e também de desconhecidos. Respondo tudo o que posso. Felizmente, embora eu use e-mail há muitos anos, nunca recebo mensagens em número grande demais. Sempre dá para ler tudo e responder a maioria. Recebi um na quinta-feira, de um amigo que quase nunca vejo, que me faz voltar aos assuntos de que tratei na semana passada. É que eu comentava a alegação, por parte da minha camarada Suely, que mantém o blog terratrans.blogspot. com.br, de que Marcelo Freixo não tem sintonia com a população da Zona Norte, e esse meu amigo ficou com a impressão de que eu, em alguma medida, concordava com ela. Ele próprio também vive na Zona Norte e se sentiu mal representado. Protestou. O eleitorado de Freixo não pode ser reduzido à PUC, ele disse. Mas não pode mesmo. Chamei o caso da bossa nova à lembrança porque aquele movimento, mesmo que pudesse ter seu público de primeira hora concentrado na área que vai do Flamengo ao Leblon, circundando a Lagoa Rodrigo de Freitas, não deixou de conquistar garotos do interior da Bahia, como eu e um grupo de amigos de Santo Amaro, e em sincronia com seus primeiros seguidores — nem, no médio prazo, de arrebanhar multidões e atingir centros nervosos cruciais da vida brasileira. E, como se sabe, não só brasileira.
Não quero dizer a meu amigo (nem a quem aqui me leia) que Freixo é como a bossa nova. Não digo que não seja. Mas não é isso que quero dizer. O que quero dizer é que a Zona Sul do Rio não é uma área de fatal provincianização dos fatos culturais ou políticos.
Na semana passada Regina Casé recebeu o título de cidadã soteropolitana. Fui à solenidade na Câmara de Vereadores de Salvador e fiquei contendo o choro o tempo todo. Via aquelas pessoas de Salvador — Geraldo Badá, Alberto Pitta, Ana Célia, Tuzé Abreu, a turma do Cortejo Afro, do Olodum, do Ilê, o sorveteiro da Sorveteria da Ribeira — e via Regina, tão totalmente Copacabana, esse bairro profundo do Rio, que adensou em si todos os aspectos da vida carioca, sendo tão coerente com sua formação, olhando a Bahia nos olhos. Pensei em quanto amamos o Rio. Em quão fundamente vivemos o Rio, mesmo de longe. O Rio é, como diz João Gilberto (que é toda a bossa nova), a cidade dos brasileiros. Nos anos 1950, vivíamos com os olhos voltados para o Rio. E os ouvidos. E os corações. Eu próprio dei a sorte de ter sido trazido para esta cidade quando tinha 13 anos e vivi um ano inteiro aqui. Via os programas da Rádio Nacional — Cauby, Dolores, Emilinha, Angela, Marlene, Jorge Veiga, Ivon Curi… —, atravessava a baía para tomar banho de mar no Saco de São Francisco (na terra de Freixo, Paula Burlamaqui e Gilda Mattoso) e vinha ver o fim da tarde no Arpoador. Mas a intimidade com o Rio não era menor em meus camaradas de Santo Amaro que nunca vieram à cidade. Carlinhos, filho de Edith do Prato, que nasceu no mesmo ano e no mesmo mês que eu, passou a vida sonhando com o Rio. As tardes quentes na ladeira do cemitério ou nos degraus do adro da Igreja da Purificação, ele as passava comentando belezas da Urca, do Hotel Glória, do Maracanã, de tudo o que ele via nas chanchadas da Atlântida, nas páginas de “O Cruzeiro”, de tudo o que ele ouvia no “Balança Mas Não Cai”, na discoteca da rádio “Jornal do Brasil”. Morreu sem ver o Rio. Dasinho, mais novo e mais naturalmente sofisticado, parecia conhecer detalhes da enseada de Botafogo, do jeito de andar de Adalgisa Colombo, da piscina do Copacabana Palace. Esse veio ao Rio, já nos anos 1980, para a estreia de “O cinema falado”, o filme que dirigi e em que ele aparece dançando na frente da igreja em Santo Amaro e falando comigo sobre filmes de Fellini. Passou só uns quatro dias no Rio. Tive de fazer força para que ele saísse para passear e ver de perto o Pão de Açúcar, o trenzinho do Corcovado: ele parecia não precisar ver nada. E diante de cada coisa — os Arcos da Lapa, a perspectiva da Avenida Presidente Vargas, a balaustrada da Urca —, ele apenas mostrava reconhecimento. Nenhuma surpresa, nem mesmo uma excitação maior por estar finalmente vendo esses lugares-estrelas. Era um curioso misto de “cheguei tarde demais” com “eu já tinha tudo aqui dentro da cabeça e do coração”.
Então, para o meu amigo do Rio (na verdade ele é de Cabo Frio, mas vive aqui há anos), Rafael, que sentiu algo estranho no modo como me referi ao caso Freixo na geografia humana da cidade, quero deixar claro que a tônica da minha conversa do outro domingo era que meu interesse por Freixo não nasce de uma visão Zona Sul como coisa restritiva. E que eu entendo a cidade dizendo isso também. Para lá das pesquisas estatísticas.
Caetano Veloso.
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