2014
2014: o século já chega à adolescência. Foi um ano sem pai nem mãe. O mundo, que vinha se contorcendo desde que saiu da primeira década - com primaveras, indignados, occupies - , fez caretas de fim. Economia europeia em crise interminável (com a nostalgia do Estado babá, o chauvinismo anti-imigrantes e a histeria da austeridade se debatendo); Rússia tentando reeditar o czarismo soviético (e tendo como reação a isso tanto o mito da democracia liberal quanto a insânia de grupos neo-nazi); Síria em guerra horrenda (onde um ditador brutal atinge seu próprio povo e termina dando mais energia a grupos sectários do que aos seus inimigos que buscam a liberdade). Aqui, crendo que, se o mundo não acabar, o nosso país poderá dar uma contribuição original para o jeito de se arrumar a vida humana na Terra (mas como, se somos um povo com polícia assassina, com façções criminosas dominando as áreas mais carentes das grandes cidades, racismo denegado, escolas de baixa qualidade, ausência de saneamento básico em vastas áreas, atraso no desenvolvimento do aspecto físico da população - os feiosos de Ed Motta e de Elizabeth Bishop são apenas meros sobreviventes da mortalidade infantil, descendentes de gerações e gerações de retirantes subalimentados - , caos visual no urbanismo de todas - todas - as cidades brasileiras de qualquer porte?...), seguimos votando no PT. Falo de mim: quase que Dilma empata com Aécio. Acho que o PT merece o êxito alcançado. O PSDB merece o êxito alcançado. Os anos FH-Lula foram grande avanço em nossa história. O pouco já é muito: não tínhamos quase nada. Votei em Marina e adoro que ela tenha assustado o establishment político nacional. Até um texto em inglês dando conta de que ela tinha mandado matar Eduardo Campos por membros da CIA a mando de George Soros recebi por email de militantes petistas. A campanha de Dilma dizimou Marina. A volta da polarização PT/PSDB esboçou uma divisão da sociedade brasileira que encantou esquerdistas que lêem tudo como luta de classes - e conservadores que só vêem no Nordeste e no Norte os grotões que mantinham os voto-de-cabresto dos coronéis e apoiavam o Arena da ditadura. Mesmo entre amigos inteligentes, tivemos (e temos) de aguentar as chatices do sectarismo. Mas o Brasil tem mais caráter quando uno. Gostaria de ter estado na sala da Faculdade de Direito em que Mangabeira e Freixo falaram aos estudantes. Mas voltava com o 'Abraçaço' a Buenos Aires e tinha de ir com ele a Santiago, Córdoba, Rosario e Mendoza. Foi um ano de muito abraçaço. O êxito do show me surpreende. Bom, pelo menos me ensina que o mundo não pode ser adivinhado. Vou olhar o mar da Bahia e torcer para que 2015 surpreenda com esperanças para o clima do planeta (com salvação do Cerrado), para a política brasileira (Dilma apenas acena ao mercado com Joaquim Levy ou de fato crê que fazia má política econômica no primeiro mandato?), para a paz do mundo (o Papa Francisco afinado com Obama no reatamento das relações Cuba/USA é imagem simpática; Netaniahu não encontrar rechaço por parte da ONU aos assentamentos em território palestino é notícia tenebrosa), para a capacidade de as pessoas entenderem se a austeridade fiscal é mesmo boa para o Brasil mas má para a Europa. A música dos meus filhos anuncia algumas coisas.
Caetano Veloso, 31/12/2014.