Aquela coisa toda (2000)

Ensaio todos os meus shows sentado de frente para os músicos. Os movimentos de corpo que vou adicionando, depois subtraindo, substituindo -mas que, ao longo das temporadas, vão se multiplicando- , começam a se formar quando o show já está diante do público. Isso é o que me permite uma atitude desabusada com respeito às quase-danças que acompanham minhas apresentações de canções no palco. Não sou dançarino. Já na estréia de "Livro Vivo", em São Paulo, eu deliberadamente fazia, num determinado momento, gestos repetitivos, maquinais-obsessivos, num estilo que muitos associam ao trabalho de Pina Bausch: era um aceno a essa artista que me apaixona.

Na canção "Jorge de Capadócia", quando na letra se diz "cordas e correntes arrebentem/ sem o meu corpo amarrar", eu repetia diversas vezes (e independentemente do ritmo em que estava cantando) o gesto de desatar amarras, passando um pulso pelo outro com rispidez e abrindo os braços até meio-caminho, onde o movimento se interrompia e recomeçava. Era uma referência, parente dos flashes de Carmem Miranda ou de Mick Jagger que brilhavam por alguns segundos no show de "Transa", em Londres, 1971. Fora essa citação, não há nada da dança de Pina Bausch nas minhas dancinhas de "Livro Vivo". Embora hoje haja muito de Pina Bausch em mim.

Pina estava em Paris na platéia de "Livro Vivo", no mês passado. Lá também estava Betty Milan, que escreveu um texto muito terno sobre o show. Nesse texto, Betty conta ter percebido a presença constante da dança de Pina na minha dança. Mas a verdade é que a grande influência no desenvolvimento do meu gestual cênico vem de outra dançarina: Maria Esther Stockler, sobre quem escrevi palavras entusiásticas no livro "Verdade Tropical" (e de cuja arte se podem ver exemplos no filme "O Cinema Falado"), mas cuja contribuição propriamente artística não encontrou, no referido livro, o espaço de comentário que mereceria. Curiosamente, foi Betty Milan quem me chamou a atenção para o fato de ser esse meu tão extenso livro uma conversa entre homens, em que as mulheres não parecem ter presença de criadoras ou pensadoras. De fato, por mais impactante que tenha me parecido o estilo pessoal (e literário) de José Agrippino de Paula, Maria Esther Stockler não poderia estar no livro apenas como sua namorada, quando, no fim das contas, há mais influência direta da arte dela sobre a minha do que poderia haver da dele. "Clube do Bolinha". (Tampouco aparece no livro referência ao trabalho de Eveline Hoisel sobre "Panamérica", trabalho que li antes mesmo de ser publicado e que desmente minha afirmação de que a "epopéia" de Agrippino não teve acompanhamento crítico significativo.) Maria Esther, com sua independência, sua feroz radicalidade, resguarda do lixo vulgar do mundo publicitário em que atuamos os passos sagrados, os acenos a um tempo viscerais e etéreos, os meneios cultos e orgânicos que ela tem sabido desenvolver. É o que vejo nela que, quase sem pensar, busco nos esforços de purificação corporal libertadora com que, entre outras coisas, tento salvar-me de mim mesmo. Maria Esther Stockler, uma bailarina brasileira.

Conquista pela surpresa

Pina Bausch é outra coisa para mim. Chegou muito depois e me conquistou pela surpresa. O importantíssimo acontecimento que foi a volta ao Brasil de Gerald Thomas como diretor de teatro trouxe às conversas que ouvi -e aos artigos que li- dois nomes: Bob Wilson e Pina Bausch. Ligavam sempre ambos a uma estética de alta formalização e a uma temática do desespero expresso em movimentos obsessivos. Nunca vi nada de Wilson. Vi as encenações de Thomas e, embora me impressionasse a adequação da produção aos efeitos almejados -e ele me parecesse, ao menos quanto a isso, deixar o resto do teatro brasileiro na pré-história-, nada chegou a me encher as medidas como o tinham feito o "Zumbi" de Boal e "O Rei da Vela" de Zé Celso -e como veio a fazê-lo o recente "Ventriloquist" do próprio Gerald.

As primeiras peças dele a que assisti me sugeriam vitrines bem-arrumadas em que se expunha, não sem uma certa ironia, a estetização de um pessimismo de convenção. Quando vi o grupo de Pina pela primeira vez, no Municipal do Rio, com um espetáculo em que se dizia que os bailarinos dançavam sobre lama e uma mulher chorava por 15 minutos, com grito e montanha no título, fiquei estarrecido. Em vez da butique do desespero que seus supostos admiradores brasileiros anunciavam, encontrei uma força viva, uma inspiração genuína que funcionava em mim como se eu estivesse recebendo pela primeira vez (e ao mesmo tempo) os contos de Clarice Lispector e o "Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band".

As roupas ocidentais modernas nunca foram comentadas pela dança com tanta profundidade. A lama era um desafio cenográfico que, por se lograr do modo como se lograva, perdia o caráter de notícia e, ainda assim, não se gastava como efeito, sempre oferecendo grandes oportunidades de experiências tenras, novas -isso ao longo de horas. A mulher que chorava no intervalo trazia um tal sinal de frescor do ânimo do grupo, era um tal testemunho da realidade do teatro e da teatralidade do real, que a gente não tinha como reagir com uma resposta pronta: a gente tinha que se demorar, conviver, pensar, parar de pensar, parar para pensar. Um uivo de lobo com lua de papel colada no fundo do palco; uma mulher que andava sobre um imaginário chão vertical na linha da cortina lateral do palco, repetidamente carregada por um grupo de homens desde o chão até o mais alto que desse; um torneio de natação (a lama sobre o palco). Em suma, eu me comovia e me esquecia de mim e reencontrava lugares do espírito que aos poucos reconhecia e era levado a outros lugares que desconhecia até então e que me faziam entender melhor os antigos lugares. Tinham me anunciado um show de idéias cromadas e eu encontrava a vida. Me falavam de Gerald e de Antunes e de Bia Lessa e de Bob Wilson e eu só me lembrava de "Aquela Coisa Toda" do Asdrúbal Trouxe o Trombone.

Instância precária

Isso aqui é uma confissão algo acrítica de um espectador que se sente artista enquanto assiste. "Aquela Coisa Toda" foi uma das minhas mais intensas experiências como espectador de teatro. Não poderia talvez criticamente comparar-se ao "Zumbi", ao "Rei da Vela", ao "Macunaíma". Contemporâneo deste último, o espetáculo do Asdrúbal era-me, então, grandemente preferível. É que a instância crítica é uma instância precária.

Os atores do Asdrúbal tinham necessariamente que ser aquelas pessoas. O palco de repente ficava nu, enquanto eles surgiam em pontos dispersos da platéia para lançar perguntas aos integrantes do grupo. Essas perguntas eram cômicas, tocantes, embaraçosas: e o palco vazio e silente deixava-nos com um espaço aberto na mente, um pouco assustados, um pouco melancólicos, como na experiência de certos poemas. Quando a situação de repente se invertia e os atores se amontoavam no palco e respondiam perguntas que não se ouviam, o silêncio da platéia saía de cada espectador como se fosse uma exposição de suas responsabilidades. De repente, Dionisos em pessoa fazia uma aparição. Quando, ao final, depois de os atores quase-dançarem um périplo pelos Estados do Brasil, eles aderiam, com palavras justas e passo marcado, às greves então arriscadas e pioneiras dos operários paulistas, a dimensão política se nos revelava como uma questão moral íntima, como um movimento do afeto.

Isso tudo era considerado pela crítica profissional como "narcisismo", um "olhar para o próprio umbigo". E, como o público convencional de teatro acompanhava a crítica no entusiasmo pelo "Macunaíma" de Antunes, e o público especial que o Asdrúbal tinha criado para si com "Trate-Me Leão" não reencontrava o costumismo dessa peça em "Aquela Coisa Toda", assisti a esta última muitas vezes quase sozinho no teatro. O que me deixou na memória um segredo estético que não compartilho bem nem com os responsáveis pelo espetáculo. De fato, foi essa qualidade de alma que reencontrei na primeira visão do teatro de Pina -mas Hamilton Vaz Pereira, o diretor de "Aquela Coisa Toda", na platéia do Municipal naquela noite, me confessou não ter percebido o encanto do Tanztheater de Wuppertal.

Eu, porém, entre Rio e Nova York -e depois em Wuppertal, na celebração dos 25 anos da companhia- , vi tudo o que pude de Pina: quase todo o repertório. E sempre a renovação e o aprofundamento da esplendorosa impressão inicial. E sempre a surpresa.

Propus-me a saudar Pina Bausch quando aceitei escrever aqui sobre sua arte. E, no fim, me entreguei a digressões que são retalhos de autobiografia (e reparos à quase-autobiografia que já publiquei em livro). E o que sinto que falta dizer não é de outra natureza.

Devo aqui saldar uma dívida enviesada com o teatro-dança de Tom Zé. O momento em que ele tirava partido do fato de estar sentado numa cadeira diante de um microfone, com minuciosa inventividade, foi um dos mais entusiasmantes para mim do show que ele apresentou, faz poucos anos, no teatro Vila Velha, na Bahia. Paula Lavigne, que estava comigo, me disse depois do espetáculo: "Você é legal, tudo o que você faz pode ser interessante, mas isso aí é diferente: isso aí é um gênio". Foi no "Circuladô" que eu fiz, pela primeira vez, um número de cantar meio-dançando sentado na cadeira: era o tango "Mano a Mano" e eu contracenava com o violão. Depois, no show "Fina Estampa", criei variações para isso em "Lamento Borincano".

O que vi de Tom Zé no Vila Velha era tão diferente do que faço que eu nunca pensei em relacionar as duas coisas. Muito menos em considerar precedências. Mas é certo que Tom Zé estava ali repetindo -ele o disse- um número que ele tinha feito na TV anos antes. Ao me ver recentemente no show "Livro Vivo", fazendo um número assim, Tom Zé sentiu-se mal. E me disse isso. Como muita gente viu "Livro Vivo", e muito pouca gente viu Tom Zé fazendo aquele número, preciso dizer de público que, em matéria de cantor cantar dançando-representando sentado na cadeira, o número de Tom Zé não é apenas diferente do meu, mas muito melhor. E talvez anterior. Além de não ser seguro que eu não tenha, inconscientemente, pegado algum detalhe exterior daquilo que ele fazia. Muita dor atravessa esses anos todos em que fui famoso e Tom Zé não.

Antes disso, ele e eu aprendemos muito com Boal. O "Arena Canta Bahia" era sobretudo teatro-dança. Chico Buarque acha que, no meu livro, fui injusto com Boal. Não fui. É injusto deixar parecer que, no livro, não traço, ao falar dele, o retrato de alguém grandioso artisticamente. Pediria a quem pensou como Chico que reconsiderasse o teor dos elogios ali contidos à personalidade artística de Boal. Que houve, no momento do tropicalismo, um antagonismo explícito entre nós e ele, não quis (nem deveria) negar. Narrei-o. Qualquer leitor pode decidir que Boal, e não os tropicalistas, é que tinha razão.

Deveria falar também da angústia de ter demorado tantos anos para ver Denise Stoklos no palco. Se este fosse um artigo crítico, eu não poderia deixar de medir a importância que ela tem para mim. E os que fazem dança propriamente, no Brasil: o grupo Corpo, Débora Colker, tantos. Mas a dança, em estado puro, tinha que ficar aqui representada por Maria Esther Stockler.

E Pina Bausch? Lá vai Caetano, dirão, olhando para o próprio umbigo, escrevendo sobre si e sobre o que vai escrevendo sobre si. Mas não é. É que entrar em contato com uma artista grande como Pina é arriscar-se a passar por mudanças que requerem auto-reexame. Em outras palavras: a quem me dá a vida não posso oferecer nada menos do que isto: a minha vida.

Caetano Veloso.

Fonte: Folha de S.Paulo, 27 de agosto de 2000.

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