Caetano Veloso entrevista Elza Soares
Entrevista para o jornal O Globo (13 de março de 2016)
por Carolina Ribeiro.
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Foto: Leo Martins / Agência O Globo.
A data certa não está fresca na memória de Elza Soares e de Caetano Veloso. Foi na década de 1980. Elza, com um filho doente em casa e sem grana para bancar o tratamento, bateu à porta de Caetano para anunciar que pararia de cantar. Procuraria um emprego longe da noite para pagar as contas e “salvar o menino”, ela diz. Foi impedida graças a ele.
— Era como se o lugar dela estivesse desaparecendo no cenário brasileiro. Mas o Brasil não podia fazer isso com ela. O Brasil não podia fazer isso consigo mesmo — argumenta Caetano, sentado num imenso sofá e bem pertinho de Elza, na casa dela, em Copacabana.
Elza está de vestido vinho e preto, com uma transparência na altura dos seios, botinha de couro e sua icônica peruca roxa — marca registrada que adotou desde o lançamento do disco “A mulher do fim do mundo”, em outubro passado. As sobrancelhas arqueadas, com desenho impecável, espelham o tom. Caetano é um degradê de cinzas: camisa, calça e cabelos (o mais claro). Completam a composição os óculos e o relógio prateados. A sala está florida com arranjos de palmas brancas e vermelhas. Ele chega com meia hora de atraso, às 20h da penúltima sexta-feira, para o encontro em que transbordam música e falam sobre carreira, infância, família, religião e política. Trocam carinhos e um selinho. Ou um beijaço para quem é de “caetanear”.
— Caetano, eles falaram que é para você deitar a cabeça no meu colo para fazer a fotografia — ela chama. — Vem cá ganhar um chameguinho de crioula.
Ele acata, se deleita. Acomoda a cabeça no ombro de Elza, e sussurra nos seus ouvidos. Eles cantam... “Moonlight serenade”, de Glenn Miller, “A rosa”, de Pixinguinha interpretada por Orlando Silva, e “Meu guri”, de Chico Buarque.
Outras palavras
O mundo dá voltas. Elza está no auge, de novo. Aos 78 anos, lançou seu 36º disco, “A mulher do fim do mundo”, o primeiro só de inéditas. Passou por Rio, São Paulo, Fortaleza, Salvador, Belo Horizonte e Curitiba, somando mais de 20 shows. Está de volta ao Rio para subir ao mais amado palco carioca: o do Circo Voador. Na próxima sexta-feira, será acompanhada por Caetano, que a convidou para cantar “Língua”, na década de 1980. Será uma noite de nostalgia. Os ingressos já estão esgotados. A energia, não. Elza fará um novo show no dia 26, sem Caê desta vez.
— A gente combinou de fazer “Língua”. Mas eu recebi um recado de Elza pedindo para cantar mais uma canção. É claro que eu quero — diz Caetano.
Elza aproveita a deixa e dá palpite...
— Como é, Caetano, aquela música que você gravou no mesmo disco de “Língua”?
Ele faz um esforço e não se lembra. Elza arranha a melodia. É “Podres poderes”. Revela também que gostaria que ele cantasse “Odara” (“É linda, linda”, diz) e “Não enche”.
— Elza, a sua famosa frase “A música é a medicina da alma” não tem a ver com o trecho “cantando eu mando a tristeza embora”, da música “Desde que o samba é samba”? — sugere a repórter.
— Pronto, decidimos o repertório — brinca Caetano.
Ainda se recuperando de uma cirurgia na coluna e fazendo sessões diárias de fisioterapia, Elza estará sentada no palco como se fosse num trono. Ao seu redor, 14 músicos, talvez os melhores da nova geração paulistana: Rômulo Fróes, Guilherme Kastrup, Kiko Dinnuci, Rodrigo Campos, entre outros.
— Me sinto uma vampira nessas horas. Fico sugando o sangue novo. Nos shows, quando vejo a plateia jovem cantando, dá vontade de ficar em pé!
Ao telefone, Kastrup reproduz o discurso. Outras palavras:
— A Elza se alimenta muito dessa energia. Ela se potencializa, se joga de volta. E temos uma conexão estética.
Gente é pra brilhar
Elza é uma mulher calejada. E é como se cantasse a própria vida no disco. As dores das perdas dos filhos, maridos e pais, a violência doméstica, o exílio e o alcoolismo (resquício do casamento com Mané Garrincha) estão lá. As letras não são suas. Mas alguns versos brotaram na gravação em forma de improviso. “Você vai se arrepender de levantar a mão pra mim”, no samba-de-breque “Maria da Vila Matilde”, é impressão de sua marca. As porradas a transformaram numa frasista. Algumas célebres surgiram no encontro: “My name is now”, “Comigo não tem perhaps”, “Pra quem não tem nada, metade é o dobro” e “No Brasil, tudo dá, até o que não presta”.
— E como tem dado (risos), é uma loucura isso — Caetano não perde a piada.
E coloca um ponto final na entrevista, que termina com bolinho de laranja e suco de uva-verde.
Além do lindo encontro entre Elza e Caetano, ela passou uma tarde no estúdio de fotografia do GLOBO, onde encarnou a própria mulher do fim do mundo.
— É a Elza como um anjo apocalíptico, guerreiro. Usei metais e materiais pesados para criar uma armadura, mas sempre com alguma costura e vanguarda em mente — resume o diretor criativo Leo Belicha, que já trabalhou com nomes como Rihanna, Grace Jones e Björk.
Sentada numa poltrona de madeira, trazida de sua casa, Elza parecia uma boneca paparicada por uma equipe de dez pessoas (sem contar as visitas que pintaram no estúdio). Não economizou no “meu bem” e no “meu doce”, distribuídos para se referir ao seu time, formado por Juliano Almeida, seu escudeiro, o maquiador Wesley Pachu, entre outros, e à nossa equipe. Vez ou outra, quando perguntada se estava confortável com a “montação”, despejava um “Socorro”. Não estava. Mas estava entregue, como em tudo o que faz.
Para tudo ficar joia rara
Como era a sua relação com a música no fim da infância e na adolescência? Você é muito musical no sentido de que, quando apareceu, parecia já ter ouvido todo o jazz.
Elza: E não tinha, né? Dentro de mim já existia isso. Desde criança, eu dizia para o meu pai que seria cantora, e ele dizia que sim. Quando falei sério, ele disse que não. Acho que meu casamento precoce serviu para me libertar também de certas coisas. Pude ser cantora, pude fazer o que queria. Valeu a pena.
Caetano: Você nasceu com uma musicalidade inata. Como ouvia o que chegava na rádio?
Elza: É gozado. Sou do tempo em que o rádio só tocava música americana. As referências que tive de música brasileira foram Orlando Silva e Dalva de Oliveira (Elza faz uma pausa, canta “Moonlight serenade”, de Glenn Miller, acompanhada por Caetano).
Caetano: Você percebia que aí dentro já tinha a capacidade de reproduzir isso? Como decorava as melodias?
Elza: Facilmente. Tinha um fã-clube do Orlando Silva que era uma coisa de louco. Todo mundo tinha uma paixão pelo Orlando. Eu, criança, o via cantar e dormia com aquela coisa na cabeça... (Elza puxa “A rosa”, de Pixinguinha). Coisa linda, linda.
Caetano: Aquele devia cantar desde menino, como era musical...
O GLOBO: Caetano, como você conheceu o trabalho da Elza?
Caetano: A primeira vez em que tive contato com a Elza eu ainda estava entre Santo Amaro e Salvador. Não foi pessoalmente, ouvi uma gravação. Me impressionaram a voz e o jeito de cantar. Elza é de uma musicalidade extraordinária, top mundial, acima da média brasileira logo que apareceu.
O GLOBO: De onde vem a afinidade entre vocês?
Caetano: Me identifico com a vocação para a lucidez. Elza tem uma clareza mental. É muito inteligente, sempre foi. A gente percebia nas entrevistas que saíam, nas escolhas, nas atitudes, tudo. O entendimento das letras que ela canta.
O GLOBO: Já pensou em escrever a biografia dela?
Caetano: Nossa! Seria um prazer passar várias tardes com Elza e depois escrever. Um trabalhão.
Gosto muito de você
Caetano, Elza procurou você para desabafar, disse que pararia de cantar. Como absorveu a notícia?
Caetano: Elza estava totalmente desesperançada. Para mim, era uma decisão impensável. Falei veementemente que não dava, não era possível. Ela é de uma potência criadora. É um esteio para o Brasil. Desde que apareceu, já apareceu com aquela afirmação do talento, da personalidade, com uma visão de mundo aguda. Então, puxa, isso não se joga fora.
O GLOBO: Elza, o que aconteceu para você tomar esta decisão?
Elza: Eu não estava trabalhando, não estava gravando, não estava fazendo show, não estava fazendo nada... Foi me dando um desespero. Eu com filho pequeno doente em casa e sem dinheiro. Pensei: “Só tem uma pessoa que posso procurar, que tenho certeza de que vai ser meu anjo da guarda”. Essa pessoa era o Caetano Veloso.
O GLOBO: Caetano, você convidou Elza para cantar “Língua” depois desse encontro. Escreveu a música pensando nela?
Caetano: O encontro motivou que eu a convidasse para participar da canção. Mas a letra me veio por ela própria. “Língua” é uma premonição do papel que o rap desempenharia no Brasil. Era um gênero novo, ainda desconhecido. Nós falamos “samba-rap” na música, uma mistura espetacular, esse termo não existia. Depois, veio tudo, vieram Mano Brown, Marcelo D2. E é o que é hoje.
O GLOBO: Aos 60 anos de carreira, “A mulher do fim do mundo” é o primeiro disco só de inéditas da Elza. Caetano, qual é a sua impressão?
Caetano: Nunca é tarde para começar. “A mulher do fim do mundo” é o renascimento. É o novo começo desta mulher. Este disco é denso, espetacular, incisivo. Não é um disco “vamos fazer mais um disco”.
O GLOBO: Você assistiu ao show da Elza este ano em Salvador. Depois do espetáculo, foi ao camarim. Como foi esse encontro?
Caetano: Fui ver “A mulher do fim do mundo” no Teatro Castro Alves, em Salvador, com Regina Casé e Moreno Veloso. Quando todos saíram, continuei no camarim, em silêncio. Eu estava muito tocado pela presença de Elza, por ser em Salvador, por ser no Teatro Castro Alves. É um lugar privilegiado. Depois de já termos conversado, ainda me demorei. Fiquei olhando para ela, anestesiado.
É brincadeira e verdade
Foi uma surpresa receber a visita do Caetano em Salvador?
Elza: Fiquei embasbacada com o Moreno. Um homenzarrão que vi pequenininho...
O GLOBO: E o Tom e o Zeca Veloso, já os conheceu?
Elza: Ainda não. Caetano é um privilegiado, teve três homens. Está faltando homem no mundo.
Caetano: Vou arrastar esses dois para o Circo! O Zeca é mais alto do que o Moreno, e o Tom é mais alto do que o Zeca. Eles foram sendo cada vez um mais alto do que o outro. Como se fosse uma escada subindo, em ascensão.
O GLOBO: Para vocês, o que representa o fim do mundo?
Elza: A gente busca uma palavra, mas ela foge. De que maneira eu vou falar sobre o fim do mundo? Não existe o fim do mundo, não acontece nada. O fim existe para a gente, a gente acaba, isso aqui passa. Nós somos o fim do mundo.
Caetano: Essa ideia do fim do mundo é uma marca da radicalidade do trabalho que está sendo feito. Vai até o fim das questões às quais a cantora pode chegar.
Elza: No disco, eu peço licença para cantar, né?
O GLOBO: Sua equipe está fazendo campanha para que você seja homenageada na Mocidade no carnaval. O que acha disso?
Elza: Eles disseram que estão na dúvida entre Oxóssi e eu.
Caetano: Competir com orixá é covardia. Sou de Oxóssi, mas eu escolho Elza Soares.
Caetano: Você cantou “Lama” no programa do Ary Barroso?
Elza: Meu filho estava mal à beça. Eu precisava de dinheiro. Fui fazer inscrição no programa sem falar para ninguém. Na rádio, encontrei o Samuel Rosemberg, que disse assim: “Quero ver todo mundo bonito no domingo”. Eu pensei: “Hmmm, o que é bonita?” Estava com a melhor roupa da minha vida, um vestidinho safado.
O GLOBO: E o que você fez?
Elza: Peguei uma saia e uma camisa emprestadas da minha mãe, e muitos alfinetes. Eu pesava 35 quilos; ela, 60. Onde sobrou pano, coloquei alfinete. Só não sabia que ia ficar feito uma bruxinha, esquisita para chuchu.
Caetano: Como foi a apresentação?
Elza: O Ary olhou pra mim e perguntou: “O que é isso, meu Deus, de que planeta você veio?”. Eu respondi: “Do planeta fome”. Falei com as lágrimas descendo já. Na metade da música, ele estava abraçado comigo. No final, disse: “Senhoras e senhores, acaba de nascer uma estrela”.
O GLOBO: A ascensão foi rápida?
Elza: Mais ou menos rápida, não foi tão suada. Trabalhei numa peça com o Grande Otelo no Teatro João Caetano. Depois, em Copacabana mesmo, com o Carlos Machado, “O Rei da noite”; e no Texas Bar. Sabe quem sentou na primeira fila para me ver? O Ary. A coisa apertou depois.
O GLOBO: Por quê?
Elza: Acho que existia uma coisa meio preconceituosa comigo. Nunca fizeram um lançamento comigo na gravadora Odeon.
Caetano: A que você atribui isso?
Elza: Sei lá, acho que era um preconceito meio besta. Eu era cantora de samba... Coisas de la vie.
O GLOBO: Vocês já viram muitos Brasis ao longo de suas trajetórias. Como veem o Brasil de agora?
Elza: O Brasil de hoje é um Brasil meio triste, né?
Caetano: A música segura a onda.