Chico Buarque
Além de virtuoso das rimas e dos ritmos verbais, Chico Buarque é um sujeito excepcionalmente elegante, discreto e generoso.
Caetano Veloso, 19/06/2013.
O Brasil é capaz de produzir um Chico Buarque: todas as nossas fantasias de autodesqualificação se anulam. Seu talento, seu rigor, sua elegância, sua discrição são tesouro nosso. Amo-o como amo a cor das águas de Fernando de Noronha, o canto do sotaque gaúcho, os cabelos crespos, a língua portuguesa, as movimentações do mundo em busca de saúde social. Amo-o como amo o mundo, o nosso mundo real e único, com a complicada verdade das pessoas. Os arranha-céus de Chicago, os azeites italianos, as formas-cores de Miró, as polifonias pigmeias. Suas canções impõem exigências prosódicas que comandam mesmo o valor dos erros criativos. Quem disse que sofremos de incompetência cósmica estava certo: disparava a inevitabilidade da virada. O samba nos cinejornais de futebol do Canal 100, Antônio Brasileiro, o Bruxo de Juazeiro, Vinicius, Clarice, Oscar, Rosa, Pelé, Tostão, Cabral, tudo o que representou reviravolta para nossa geração foi captado por Chico e transformado em coloquialismo sem esforço. Vimos melhor e com mais calma o quanto já tínhamos Noel, Haroldo Barbosa, Caymmi, Wilson Batista, Ary, Sinhô, Herivelto. A Revolução Cubana, as pontes de Paris, o cosmopolitismo de Berlim, o requinte e a brutalidade de diversas zonas do continente africano, as consequências de Mao. Chico está em tudo. Tudo está na dicção límpida de Chico. Quando o mundo se apaixonar totalmente pelo que ele faz, terá finalmente visto o Brasil. Sem o amor que eu e alguns alardeamos à nossa raiz lusitana, ele faz muito mais por ela (e pelo que a ela se agrega) do que todos nós juntos.
Caetano Veloso, 19/06/2016.
Foi frutífero que eu tivesse tido de retardar a audição da nova canção de Chico ["Tua cantiga"]. Talvez eu a tivesse achado bonita, delicada e antiga e a deixasse de lado. Perguntaram-me algumas vezes nesses dias: já ouviu? "Ainda não" era a resposta com que continha minha calma curiosidade. Ao ouvi-la (ao lado de Tom e de Cezar Mendes, que tinha ficado impressionado com a música ali ouvida) fiquei tomado. Cezar tinha elogiado o tratamento harmônico, o piano e o baixo, repetindo o nome de Cristóvão. Sou tão fascinado pelo lado músico de Chico (cujo violão vem das vozes cantadas em casa com Miúcha, portanto não é esquemático, como nossos violões perigam ser, o que Guinga percebeu como ninguém, deixando-se influenciar e influenciando o mestre de volta) que pensei que aquelas inversões, que fazem um tema em tom menor padrão virar invenção extraordinária, fossem do próprio Chico. Mas, sobre essas harmonias, eram as rimas que me sideravam. O cantor refere-se a elas, como se cresse que só ele sabe quantas há na canção. Mas as rimas que mexem fundo com a gente são as inaparentes, as que se dão nas consoantes das palavras finais dos penúltimos versos das estrofes: suspiro/ligeiro; nome/perfume; lenço/alcanço; filhos/ joelhos; nega/ cantiga. "Minha nega" e "cantiga" são chave de ouro. O ritmo de lento afoxé sob essas formas verbais aprofunda a sensação de velha brasilidade que só se supunha morta porque fazia tempo que Chico não vinha com uma música.
Caetano Veloso, 17/08/2017.
Fui ontem à noite ver o show de Chico Buarque. Fiquei extasiado, não somente porque estávamos diante de um artista imenso que nos deixa esperando anos para vê-lo atuar; nem apenas porque os lindos versos de "Caravanas" trazem "suburbanos como muçulmanos do Jacarezinho a caminho do Jardim de Alá"; nem só porque o cenário de Hélio Eichbauer, com esfera armilar esboçando assimetrias a partir do sistema concêntrico, estende suas cordas de assinatura a uma complexidade de rede de ondas, movimento e poesia; nem mesmo porque "Massarandupió" traz a rica música que habita o coração de Chico Brown. Ou porque o repertório contenha sucessos cantados pela multidão e que estes sejam todos posteriores aos clássicos que fincaram Chico no lugar que ocupa em nossas vidas: não há "Quem te viu, quem te vê", "Carolina", "Januária", "Samba do grande amor" ou "Noite dos mascarados" - nem pensar em "Pedro Pedreiro" ou "Olê olá": para um cara da geração de Chico, o repertório é todo de coisas novas, a maioria datando de quando ele entortou seus caminhos harmônico-melódicos, toreou suas rimas (justo quando um idiota da imprensa disse que não ouviria seu novo disco por já saber o que iria encontrar: era um erro perfeito). É uma exuberância. Os arranjos de Luiz Claudio levam ao máximo a elegância musical que ele sempre apresenta. Mas a força vem de como tudo isso foi estruturado dentro da concepção bossa nova. Um homem de voz pequena e anasalada domina o universo, rodeado por sons econômicos e profundos, equilibrados e misteriosos. Da forma dos arranjos (que contam com o canto perfeito de Bia Paes Leme) à política de volumes da amplificação (finalmente um show que não rompe nossos tímpanos toma toda a grande sala de difícil acústica!), tudo funciona para expor a realização da bossa nova, do seu essencial. É a vitória da bossa nova verdadeira, sua vingança, sua definitiva consagração, desmentindo a sensação de que o Brasil não se respeita: ao contrário, ali parece que o Brasil chega finalmente a merecer a bossa nova. E nada disso seria possível sem a lealdade de Chico à prosódia irretocável, à rima que vem com a ideia, à melodia que homenageia a tradição e amadurece para quase se desmelodizar. Ouvindo Chico assim, somos obrigados a crer no povo brasileiro.
Caetano Veloso, 27/01/2018.
Quando, em Não Vou Deixar, digo que "sei de alguns que sabem mais, muito mais", penso primeiro em Chico. Ouvindo uns ecos de Beleza Pura em Que Tal Um Samba?, chorei. Hoje é aniversário de @chicobuarque. E é por isso que o Brasil, apesar de estar horrendo como está, merece parabéns eternos.
Caetano Veloso, 19/06/2022.
Vi Chico divino desde o começo. Nunca deixei de amar. Seu lirismo, sua prosódia, seu melodismo, tudo. Li todos os livros dele. Gostei muito de todos e achei Budapeste genial. Chico Buarque, bem-vindo aos 80!
Caetano Veloso, 19/06/2024.