Ferreira Gullar

Conheci Ferreira Gullar quando vim tomar conta de Bethânia em seu começo de carreira nacional (e não apenas regional) no espetáculo Opinião. Gullar era um cara de boa conversa e presença firme. Eu sabia de seu prestígio por causa dos poemas participantes da fase Violão de Rua. Na Bahia, líamos Drummond, Cecília, Vinicius, Bandeira, Cabral. Mas eu nada sabia dos poetas concretos de São Paulo e de A Luta Corporal.

Vim a ler este impressionante livro depois do meu contato com os irmãos Campos e Décio Pignatari. Tornei-me parceiro de Ferreira por causa de um pedido de Bathânia: ela me deu os versos de "Onde andarás" para que eu musicasse. Gullar conversava às vezes comigo e com Dedé, junto a Paulo Pontes e, às vezes Vianinha. Muito presente, e pessoa maravilhosa em quem sempre penso com admiração e saudade, estava Thereza Aragão, à época sua mulher e mãe dos seus filhos. Ela foi a amiga mais importante de Bethânia em sua vida no Rio de Janeiro. Era mais do que o irmão eficaz que eu conseguiria ser.

A imagem mais forte de Ferreira, para mim, vem do meu período na prisão. Ele estava, junto com Gil, Antonio Callado, Paulo Francis e outros, num xadrez ao lado do meu. Sua lucidez e sua firmeza faziam dele o melhor companheiro imaginável. Todos os jovens que estavam na mina cela eram gratos a ele pela solidariedade e eficácia em ajudar. Recebi um bilhete de Francis através de um dispositivo clandestino (e que funcionou até o fim sem ser flagrado pelos milicos) imaginado e construído por ele: comunicação por escrito usando um cordão que passava pequenos pedaços de papel por trás da caixa d'água que servia aos dois xadrezes. Ele era assim: prático, destemido e calmo.

Recentemente estive com o grande maranhense em duas ocasiões: uma conversa organizada pela Folha de São Paulo - em que ele falou com muito brilho e arrancou aplausos (e eu comentei que ele tinha virado "um liberal inglês", expressão que, para mim, contém muitos aspectos positivos, o que fez poucas pessoas rirem na plateia mas que evidentemente não lhe pareceu - porque não era - antipática). A segunda foi numa palestra de Antonio Cicero sobre poesia. Em ambas as ocasiões ele foi muito afável e doce comigo. E eu com ele.

Hoje mesmo, antes de saber que ele tinha morrido, li seu artigo na Folha. Era mais um explicando o abandono do marxismo diante do fracasso das experiências de Estados comunistas. E saudando Bill Gates por sua opção pela caridade. Diante de textos assim, inclusive aqueles em que ele mostrava irritação com os caminhos atuais das artes plásticas, eu tendi sempre enfatizar dentro de mim o orgulho que tenho de ser seu parceiro e a lembrança de quão admirável me parecia sua figura, em vez de buscar na mente os pontos que me parecessem discutíveis de seus argumentos.

Caetano Veloso, 04/12/2016. 

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