Franklin Dario

Soube ontem que Franklin Dario morreu. Passei a maior parte da minha vida querendo reencontrá-lo para tentar conhecê-lo. Em 1966, o Teatro Jovem, ali no Mourisco, manteve por um bom tempo reuniões semanais sobre música popular. Moços desconhecidos apresentavam canções novas, músicos profissionais, jornalistas, intelectuais ou meros fãs discutiam de política a prosódia. Nara era a única artista consagrada que estava sempre lá. Foi lá que ouvi discutir-se o caso da vaia que Sylvia Telles tinha tomado em São Paulo por cantar uma música de Roberto Carlos num daqueles shows de MPB que o Pica-Pau organizava num auditório de faculdade. Eu percebia a atitude defensiva que os nacionalistas tomavam e da qual eu queria me afastar. Tudo me interessava. Nada me interessou tanto quanto um garoto bonito, cheio de charme, de cabeça raspada e cara fechada, cantando uma música que se chamava "Ana vai embora" e dizendo que não se interessava em fazer carreira, que estava no Rio de passagem, a caminho de Israel, aonde queria ir para defender seu povo. A canção era tão bonita que eu nunca a esqueci. Nara a gravou num LP que saiu depois que ele já tinha deixado o Brasil. Quando fui a Israel pela primeira vez, perguntei por ele. Ninguém conhecia ou sabia de Franklin Dario. Tentei na segunda ida ao país. Nada. Desisti. Faz poucos anos fiz amizade com Eduardo Brechó. Um dia recebi dele um email em que vinha transcrita uma carta de alguém que se dizia filho de Dario. Logo respondi a Eduardo querendo marcar encontro. Mas ele tinha perdido contato com o missivista: uma amiga sua teria dito a Bruno, filho de Franklin, que Eduardo me conhecia. Bruno tinha lido meus comentários sobre seu pai no livro 'Verdade Tropical'. Mas só agora, porque eu mostrei "Ana vai embora" a meu filho Zeca (que ficou emocionado com a canção) é que insisti com Eduardo, inclusive perguntando se ele não tinha inventado a história da carta. Eduardo se mexeu em São Paulo e Bruno escreveu diretamente para mim. Fiquei excitado de poder finalmente encontrar o compositor que tinha me impressionado havia tantos anos. Franklin Dario era judeu pernambucano e "Ana vai embora" traz uma evocação tão particular do Recife quanto as anotações de Clarice Lispector sobre sua infância na cidade. Embora a imagem do oiti quebrando as ruas estivesse mais perto de Guimarães Rosa. Para que Francisco Bosco não pense que sou só de letras, foi a mistura de modalismo nordestino com acordes do folclore judaico que arrebatou meu coração ao ouvir essa música. E quis chorar quando vi que o mesmo acontecia com Zeca. Que minha tão discutida ida a Tel Aviv signifique pelo menos isto: uma homenagem a Franklin Dario. Soube que ele se tornou especialista em psicanálise e ensinava na universidade em São Paulo. Mas é ao menino de olhos muito claros que cantava sério e cheio de ostensivo desinteresse pela plateia do Teatro Jovem em 66 que minha presença lá vai querer ser homenagem. Ele morreu no dia 25, sem que eu pudesse ter dito nada disso a ele - nem perguntado tanta coisa que queria perguntar.

Caetano Veloso, 30/06/2015.

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