Gal Costa

O show de Gal Costa no Teatro Castro Alves, A Pele do Futuro, foi o espetáculo que mais me emocionou neste verão. Quando ela cantou "Lágrimas negras", essa obra-prima de Jorge Mautner, eu chorei mais (e mais fundo) do que a maioria das vezes que já chorei em minha vida. Gal transcende, indica transcendência, todos os critérios convencionais de avaliação musical caem por terra. A gente entende por que eu disse, ao ouvi-la pela primeira vez, ela ainda adolescente e anônima em Salvador, que ela era a maior cantora do Brasil - e por que Tom Jobim continuou dizendo isso até o fim. O repertório escolhido por Marcus Preto, os arranjos de Pupillo, o cenário de Omar Salomao (que, parecendo a lua vermelha, me levou de volta ao injustiçado Fantasia, show maior do que Gal Tropical, em que uma meia-lua lugar-comum de Guilherme Araújo sustentava o milagre), Lupicínio junto ao piano, Marília Mendonça relembrada, a Massa Real, tudo apontava para o aspecto transcendente e transcendental dessa enigmática artista. Sou profundamente grato a todos os envolvidos. A Bahia está cheia de eventos lindos, mas o show de Gal conseguiu provar-se algo maior e mais desconcertantemente belo.

Caetano Veloso, 25/02/2019. 

Gal era uma menina que morava na Rua Rio de São Pedro, na Graça. O mais tocante era a emissão da voz. João Gilberto, Antonio Carlos Jobim e eu percebemos isso. Há muitos outros aspectos em que a canção brasileira se encontrou engrandecida por vozes femininas. Mas a emissão da voz em Gal era já música, independentemente do domínio consciente das notas. E isso fazia com que o espírito dela expressasse sutilezas, pensamentos, sentimentos, asperezas, doçuras, de modo espontâneo. O disco "Recanto" diz tudo o que chego a saber sobre Maria da Graça, Gracinha, Gal. Compus novas canções (que somei a uma que eu tinha feito para Jane Duboc, exemplo de cantora com absoluto domínio da música) para que o significado da presença de Gal entre nós se explicitasse. Vou ouvir "Recanto" - e sugiro a quem me leia que faça o mesmo - para repensar a Gal Fa-Tal, a Gal Domingo, a Gal Meu Nome É Gal. @morenoveloso me disse que reouviu esse disco esses dias e voltou a entender tudo.

Caetano Veloso, 9/11/ 2022.

Gal era uma adolescente doce e tímida. Entendeu João Gilberto sozinha na rua Rio de São Pedro, na Graça. Veio a ser a mais bela descendente da Bossa Nova. Co-criadora da tropicália, subia o morro de areia de Ipanema com as roupas mais lindas imagináveis e uma cesta indígena que era presa na testa e caía nas costas. Sua emissão vocal encantou João e Jobim. Seu corpo já não está entre nós. O que ela nos deu de beleza não nos deixará. Gal para sempre!

Caetano Veloso, 26/09/2023.

Hoje faz um ano que Gal morreu. Nem acredito. É como se tivesse sido ontem, é como se não tivesse sido. Emissão de voz que já era música antes de ela entrar um tanto nalguma música. Não dá pra medir, não dá pra entender. No filme que Dandara e Lô fizeram ri e chorei lembrando os começos. Agora, ela ter ido embora não metabolizo. Já faz um ano que o mundo não tem Gal? Impossível aceitar.

Caetano Veloso, 9/11/2023.

Postagens mais visitadas deste blog

O Leãozinho (Caetano Veloso)

Os Argonautas (Caetano Veloso)

Milagres do Povo (Caetano Veloso)