João Gilberto

Eu tinha dezessete anos quando ouvi pela primeira vez João Gilberto. Ainda morava em Santo Amaro, e foi um colega do ginásio quem me mostrou a novidade que lhe parecera estranha e que, por isso mesmo, ele julgara que me interessaria: "Caetano, você que gosta de coisas loucas, você precisa ouvir o disco desse sujeito que canta totalmente desafinado, a orquestra vai pra um lado e ele vai pro outro". Ele exagerava a estranheza que a audição de João lhe causava, possivelmente encorajado pelo título da canção "Desafinado" - uma pista falsa para primeiros ouvintes de uma composição que, com seus intervalos melódicos inusitados, exigia intérpretes afinadíssimos e terminava, na delicada ironia de suas palavras, pedindo tolerância para aqueles que não o eram. A bossa nova nos arrebatou. Em Santo Amaro nós cultuávamos João Gilberto em frente a um boteco modesto que chamávamos "bar de Bubu", por causa do nome do preto gordo que era seu dono. Ele comprara o primeiro LP de João, Chega de Saudade - o disco inaugural do movimento -, e tocava-o repetidas vezes. Primeiro, por ele próprio gostava , e, depois, porque sabia que nós íamos ali para ouvi-lo. 

Caetano Veloso, 10/06/2014 (extraído de Verdade Tropical). 

Nenhum outro artista brasileiro foi mais decisivo para a minha formação pessoal. Nenhum dos que também o foram resistiu mais ao crivo crítico da minha mente amadurecendo através dos anos. João Gilberto lançou uma luz angelicalmente suave e diabolicamente penetrante sobre o passo e o futuro da música chamada popular brasileira e nada pode ser visto aí com propriedade se não se leva em consideração essa luz. Toda a cultura e mesmo toda a vida dos brasileiros foi atingida por ela e por ela alquimicamente transformada. O tropicalismo foi um movimento romântico-destrutivo, mas a Bossa Nova foi um movimento clássico construtivo. Se Antônio Carlos Jobim é o mais exuberante e genial compositor-músico surgido da Bossa Nova, João Gilberto é o mago que parece ter criado a possibilidade de tudo isso acontecer. Com seu simples modo de tratar a palavra cantada, ele faz tanto pela língua portuguesa quanto os seus maiores poetas. Compreendendo e sentindo como ninguém a plasticidade do português falado no Brasil, ele age a um tempo desbravadora e normativamente sobre a sua história. Fazendo sempre a mesma coisa que nunca é a mesma, João não para de nos deleitar e surpreender, acalmar e intrigar. A escolha do repertório, o gosto das cadências harmônicas, a duração das notas da melodia dentro do tempo, o senso do silêncio, o jeito único de fazer soar o violão, tudo faz com que seu canto e seu toque sejam sempre uma lição e uma oração. Uma nova lição e uma eterna oração.

Caetano Veloso, 10/06/2017. 

João Gilberto é o maior artista brasileiro. Ele não procura exibir capacidade neuronal para a música. Ele vai sempre mais para dentro do essencial da música (da canção escolhida, da música composta, da Música como instância humana) e mostra com simplicidade a complexa rede de sugestões de que uma peça poético-musical é capaz, abrangendo História, religião, política, plasticidade, matemática, psicologia, moral, afetos. Com ele não é gincana em que competem velocidade de execução, precisão de afinação do instrumento e enfeite harmônico (que tantas vezes ilude-se de enriquecer o que já é rico). Não. João vai ao fundo do que é a peça e analisa seu contexto. Mudou a história da música popular no Brasil, seu passado e seu futuro. Os jornais querem saber de sua vida. Deveriam tentar saber melhor de sua música. Sua música é vida.

Caetano Veloso, 10/06/2018. 

João Gilberto foi o maior artista com que minha alma entrou em contato. Antes de completar 18 anos, aprendi com ele tudo sobre o que eu já conhecia e como conhecer tudo o que estivesse por surgir. Com sua voz e seu violão, ele refez a função da fala e a história do instrumento. Pôs em perspectiva todos os livros que eu já tinha lido, todos os poemas, todos os quadros, todos os filmes que eu já tinha visto. Não apenas todas as canções que ouvi. E foi com essa lente, esse filtro, esse sistema sonoro que eu passei a ler, ver e ouvir. Aos 88 anos, com aspecto de quem não viveria mais muito tempo, João morrer é acontecimento assustador. Orlando Silva, Ciro Monteiro, Jackson do Pandeiro, Ary, Caymmi, Wilson Batista e Geraldo Pereira não teriam sido o que são não fosse por João Gilberto. Tampouco Lyra, Menescal e Tom Jobim. Ou os que vieram depois. E os que virão. O Hino Nacional não seria o mesmo. O mundo não existiria. Sobretudo não existiria para o Brasil. Que era uma região ensimesmada e descrente da vida real fora de suas fronteiras. João furou a casca. O samba não seria samba sem Beth Carvalho cantando "Chega de Saudade". A música não seria música sem a teimosia de João. Ele foi uma iluminação mística. Nenhum aspecto do mundo que ele sempre tocou tão rente pode ameaçar a grandeza da verdade de sua arte. E isso era sua pessoa. É sua pessoa, em todos os sons gravados em matéria ou na minha memória.

Caetano Veloso, 07/07/2019. 

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