Caetano responde a Carlos Sandroni: ainda o Feitiço (28/06/2008)
Caetano mandou esta resposta de Moscou: “Adorei ver que o Sandroni pensou mais sobre o assunto. Foi para isso que levantei a questão em Santo Amaro. Claro que “Feitiço” não se propõe como superação de “Feitiço da Vila” assim como “Dom de iludir” não pode ser tomada como superação de “Pra que mentir”. Em nenhum nível. De cara, “Feitiço da Vila” não deixa de ser uma obra-prima por conter trecho ostensivamente contra a cultura afro-brasileira. Nunca imaginei Noel Rosa como sendo racista. E nem resquícios vejo nele de homofobia. Quando caracterizei Wilson como preto, macumbeiro e veado, fiz caricatura dos preconceitos da classe média - e tinha na cabeça as histórias sobre Ismael Silva e o samba gay de Noel (que planejo cantar na seqüência do “Obra em Progresso”), de que tomei conhecimento no livro de Didier e Máximo. O livro deles é muito bom e rico mas às vezes me parece um pouco idealizador da figura de Noel. O livro e o estilo de Sandroni me convencem sempre mais. É um prazer ler esse texto que ele nos mandou agora. Mas o erro dele foi tomar essa grande cena de sub-intelectual de miolo mole que fiz numa das noites do projeto “Obra em Progresso” como sendo expressão de miolo duro. Como ele mesmo notou, nem sequer apurei o status dos versos que ali apareceram como sendo os finais. Sei que não estão na gravação de Aracy dos anos 50. Suponho tê-los ouvido num disco tardio de Sílvio Caldas. Lembrava do cadeado e do ladrão mas nada do chorar pra mamar em ritmo de samba. Esses dois versos que precedem o do cadeado me foram apresentados por Jorge Mautner e eu os somei aos dois “últimos” para ter uma estrofe inteira e dar graça ao comentário que, sem ter planejado previamente, decidi incluir a respeito da parte problemática da letra. O feitiço sem farofa, sem vela e sem vintém, que nos faz bem é que é a parte dura, com a indicação de que o outro, que seguramente nos faz mal, não é decente. Não há nada de comparável a isso na “Lenda do Abaeté” de Caymmi. Nesta, o medo do sobrenatural é apresentado como prova de que a lagoa é sagrada. Diz-se que um pai até castiga o filho se ele se aproximar dela porque se tem orgulho da carga sacra que ela contém. É, como tudo em Caymmi, algo próximo da mera propaganda turísitca da Cidade do Salvador. Nunca li o livro de Yvonne Maggie. Apenas assinei com ela o documento contra a instituição de cotas raciais que enviamos ao Supremo Tribunal. Mas sei que “feitiço” não é uma palavra em geral tomada como positiva. Por causa de ter assinado com Yvonne aquela carta, recebi cartas magoadas - às vezes iradas. No mesmo show em que comentei “Feitiço da Vila” respondi, com carinho, a uma delas. Abri o show cantando o mantra do “mulato nato” de “Sugar Cane Fields Forever”, do Araçá Azul, e argumentei docemente contra a recusa do termo “mulato” por parte do cineasta Joel Zito, que foi um dos que me escrveram. O comentário ao samba de Noel veio, em parte, como complemento dessa discussão. Era, num show, fazer um largo número sugestivo em que justapunha Noel e Joel. E a exposição dessa imensa pulga que está atrás da minha orelha desde pelo menos 1965 (quando escrevi artigo contra o livro de Tinhorão, que era adorado por parte da esquerda da época) foi, como a própria assinatura do manifesto contra as cotas, um modo de complexificar a discussão. E sua parte mais agressiva não vai contra Noel mas contra a tradição crítica iniciada por Tinhorão e que, se foi às vezes hostilizada e mesmo ridicularizada, nunca foi suficientemente enfrentada em alguns dos pontos mais graves - e a avaliação de Noel como classe-média com a autorização para fazer samba que é negada a Carlos Lyra é um desses. O problema não é se Noel era racista mas se Tom Jobim é um usurpador. Pois Noel, autor desse verdadeiro manifesto da entrada da classe média no samba (o bacharel, o feitiço decente, que nos faz bem) é sempre apresentado como “o amigo de Cartola”. Sem dúvida “Palpite infeliz” (samba talvez ainda mais belo do que “Feitiço da Vila”) traz a palavra final: “Estácio, Salgueiro e Mangueira… sempre souberam muito bem que a Vila não quer abafar ninguém, só quer mostrar que faz samba também”. Mas os versos que contêm tal argumentação são prova de que não passou em tão brancas nuvens a agressão contida em “Feitiço da Vila”. Sobretudo na cabeça do próprio Noel. Zabé come Zumbi, Zumbi come Zabé. Essa é minha fórmula definitiva. Amo a Princesa Isabel. Joaquim Nabuco conta, em “Minha Formação”, que André Rebouças lhe escreveu dizendo: “a República foi proclamada CONTRA o 13 de Maio”. Conheço a informação de que Isabel planejava indenizar os ex-escravos. Ressaltei que Noel frisou a origem do nome do bairro porque ouço ecos da frase: “a culpa é da Princesa Isabel”, um refrão racista à brasileira, isto é, bem relaxado e com toque de humor, usado com freqüência na minha infância quando alguém queria se queixar de algum prejuízo que lhe tinha sido causado por alguém que fosse negro. A Princesa Isabel, no meu ambiente de festejos anuais do 13 de Maio, foi sempre, no meu coração, a figura mais amável da história brasileira.” |
| Assuntos: Carlos Sandroni, Feitiço da Vila — |
O altíssimo nível do debate que se lê nessas páginas somado ao fato de Caetano ser o primeiro dos músicos que compõem o Olimpo da MPB a se dispor a se expor de forma tão clara e a permitir esse contato quase direto com seus fãs me enche de alegria.
Caros Caetano, Sandroni, Bruno, Igor e Fernando:
Budi
Budi
Que boa a sua oservação. Sabia de todos esses atributos do Newton e involuntariamente reproduzi o senso comum. Mais uma vez a nossa Conversa de Botequim Eletrônica gerou bons frutos. É ofeitiço da internet. De Caetano pra Noel, de Noel, para Tom, de Tom chegamos ao Newton. Desculpe o deslize involuntário, mas no peito dos desafinados também bate um coração.
Fernando
de toda esta discussão para alguem que é aficcionado por musica como eu ….fica apenas a seguinte indagação aos pesquisadores e ao proprio caetano…..
não parece perigoso… uma forma de patrulhamento ás avessas…. perquirir de possiveis interpretações historicistas das canções ? querer colocar palavras na boca do poeta para alem do que seria plausivel ja que poesia e musica para mim é transcendencia, sentimento, emoção, alguma para alem do terreno e sentimentos mais mesquinhos e pequenos?
musica como cronica social ou para embasar posiçoes politicas e ideologicas como o caso das cotas nas universidades me parece retirar a beleza da canção em si, da poeasia em si…
FEITIÇO DA VILA vai acabar sendo incluida no show Transamba de Caetano!
Não é ruim a ideia nao, hein Caetano!
Desde que ele também inclua no show a música “Love Love Love”, do disco Muito, de 1978….
ai fica tudo certo!
Caro Caetano Veloso,
Esclareço que o “manifesto dos 113 Cidadãos Anti-Racistas Contra as Leis Raciais” se posiciona contra a implantação das cotas para negros nas universidades e contra o PROUNI, um programa que foi criado pela MP nº 213/2004 e institucionalizado pela Lei nº 11.096, de 13 de janeiro de 2005 e tem como finalidade a concessão de BOLSAS DE ESTUDOS integrais e parciais a estudantes de baixa renda (de qualquer cor ou raça), em cursos de graduação e seqüenciais de formação específica, em instituições privadas de educação superior, oferecendo, em contrapartida, isenção de alguns tributos àquelas que aderirem ao Programa.
Controversamente, entre estes citados “113 cidadãos anti-racistas existe um jornalista (www.veja.com.br/reinaldo) que escreve num blog hospedado no site da Veja, que incentiva comentários ofensivos a raça negra e a alguns dos principais símbolos de luta desta etnia: Comemoração do dia 20 de novembro, figura do líder Zumbi dos Palmares, lutas pela implantação de algumas políticas de afirmação racial pelo governo federal.
alô Caetano e todos
2)como a conversa já enveredou por outras “polímicas” (termo de Ezequiel Neves), o livro sobre Newton Mendonça é uma boa contribuição, mas Marcelo Câmara exagera na vitimização do grande compositor, pianista e letrista. Ele foi vítima, mas de um ataque cardíaco, ainda muito moço, aos 30 (ou 31, não vou googlear agora). Lembro-me de uma longa entrevista que fiz com Tom Jobim, em 1989, na qual perguntei sobre a parceria com Newton Mendonça e ele foi firme na resposta: “Ele também era um ótimo pianista, fazíamos música e letra juntos”.
3) é redutora ou purista essa visão (no comentário de Fernando Salem) de que “João e Tom se mudaram pra lá, enquanto nós produzíamos por aqui a diluição da bossa-nova, com trios jazzísticos fazendo o sambalanço.” Vertentes da bossa nova, como o samba-jazz, o samba pop de um Jorge Ben, do Brazil 66, Marcos Valle etc etc…
Grande Antonio Carlos Miguel
A minha visão pode ser redutora, mas não é purista. Quando me refiro à diluição foi no sentido evolutivo e não um julgamento de valor. Sou fanático por Benjor e não o vejo como “diluidor”. É um inventor. Me referia aos trios de samba-jazz, sim. Independente do valor que eles têm. E têm! Mas a Bossa Nova de João e Tom engendrou uma idéia de síntese, que o sambalanço (com suas convenções rítmicas, seu virtuosismo instrumental e sua atitude swingada) ajudou a diluir. Os trios de sambalanço não são os vilões, mas não tinham violões. PS: tenho todos os discos do Marcos Valle.
salve, Fernando
É isso aí. Quando eu uso essa expressão “diluição” sempre dá ruído. Vou aposentá-la. Isso é um vício que peguqi na época em que era aluno do Luiz Tatit. Que por sinal é um inventor! De resto, viva os Zimbos, Tambas e Mocotós!
A paixão que Caetano Veloso sente pela princesa Isabel deve-se aos festejos anuais do bembé (manifestação cultural realizada em Santo Amaro da Purificação) e que celebra o fim da escravidão no Brasil. Caetano sabe do bembé desde criancinha,
Olá, Caetano, Sandroni, Salem e todos os demais.
Descobri hoje, por acaso, um texto de 33 anos atrás que reforça a visão de Caetano. Trata-se do artigo “Noel Rosa, 200 músicas em 26 anos, 4 meses e 23 dias de vida”, de Sérgio Cabral, publicado na revista Cadernos de Opinião n. 2, de 1975. Eis o trecho que me chamou a atenção:
“Na forma ou no conteúdo, de maneira ingênua ou com grande dose de senso crítico, quase toda a obra de Noel Rosa passou a refletir uma posição de quem tomou o partido do povo. Disse quase toda porque algumas vezes a sua formação de classe média falava mais alto. Uma contradição que se manifestara logo em 1930, em seu primeiro ano de gravação. Foi o ano em que lançou, além de Eu vou pra Vila, o antológico Com que roupa e mais Lira abandonada, Malandro medroso, Meu sofrer, Queixumes, Vingança de malandro, Vou te ripá, Dona Araci e Dona Emília. Nesta última, uma marchinha feita com Glauco Viana, por exemplo, verificou-se a hesitação do jovem de classe média: