Carlos Sandroni responde a Caetano sobre o Feitiço de Noel (28/06/2008)
Vídeo infeliz Carlos Sandroni - Junho de 2008. Minha admiração por Caetano Veloso é enorme. Ela começou quando eu tinha uns nove anos de idade e acompanhava na televisão o programa “Esta noite se improvisa”, comandado por Blota Júnior, do qual ele era participante habitual. Continuou depois, quando fui assistir, com treze ou quatorze anos, o show “Transa”, que marcou a sua volta do exílio. E de lá pra cá só fez aumentar ao longo dos anos, LPs, filme, CDs e livros. Por causa disso, preferiria estar sempre de acordo com Caetano - na verdade, isso é freqüente. Ou quem sabe, ficar, em relação ao que diz, naquele estado meio bestificado (ou talvez hiperinteligente) de quem canta uma boa canção, quando carece totalmente de sentido saber se há ou não “acordo” com o conteúdo da letra. Apesar disso, precisei me manifestar em desacordo com Caetano Veloso em setembro de 2007, por ocasião do Seminário sobre samba de roda organizado pelo MinC e pelo Iphan em Santo Amaro, no Teatro Dona Canô. O tema era a canção “Feitiço da Vila” de Noel Rosa, já então por ele acusada de racismo, e em especial sua parte central, que canta: “A Vila tem Acontece que esta canção foi analisada por mim no livro Feitiço decente - transformações do samba carioca, 1917-33 (Rio de Janeiro: UFRJ/Jorge Zahar, 2001, p.169-85); ocasião em que não só não achei nela o menor traço de racismo, como ao contrário, pretendi considerá-la um marco no processo de aceitação, pela sociedade envolvente, das manifestações musicais dos negros e mestiços pobres do Rio de Janeiro - em outras palavras, à sua maneira uma canção anti-racista! Daí a escolha do título do meu livro: “um feitiço decente, que prende a gente”, é a própria definição do samba proposta por Noel Rosa na sua letra. Em 2007 eu já conhecia a canção “Feitiço”, incluída por Caetano em seu CD Eu não peço desculpa (com Jorge Mautner): “Nosso samba É uma excelente canção e uma “resposta” a Noel Rosa, no nível em que “Dom de iludir” é uma resposta a “Pra que mentir”, e em que, falando de maneira mais geral, a geração musical de Caetano, e ele muito em especial, tem estado num diálogo permanente com toda a canção brasileira que a precedeu. Tal diálogo é amiúde “crítico”, e é em parte graças a ele que a música brasileira é cada vez mais tradicional e cada vez mais renovada. Neste contexto, a referência a “Aquele abraço” vem muito a propósito, pois a canção de Gilberto Gil foi vista por alguns como uma reconciliação pós-tropicalista com a MPB mais tradicional, tendo talvez por isso recebido, em 1969, o prêmio Golfinho de Ouro, outorgado pelo Conselho de Música Popular Brasileira do Museu da Imagem e do Som. Este Conselho, composto pela nata da época dos pesquisadores de MPB (sem contar Augusto de Campos, é claro), incluía alguns bastante avessos ao tropicalismo, e todo este contexto levou Gil a recusar o prêmio. Ele fez isso através de um artigo enviado de Londres ao Pasquim, a que deu o título: “Recuso+Aceito=Receito” . Estávamos em 1969, e hoje Gil é Ministro da Cultura; mas a relação de Caetano com “Feitiço da Vila”, tal como vem sendo exposta em intervenções públicas, parece retomar aquele velho desentendimento (na minha opinião, ultrapassado), para repaginá-lo como “Aceito+Recuso=Acuso”. Em todo caso, o hábito de “responder” às canções, de tomar canções ou peças musicais anteriores como pretexto para a criação de novas, vem, no Brasil, pelo menos desde o século XIX (como mostrei também no livro citado), mas tem um resultado cumulativo e não dialético. Ou seja, “Feitiço” ou “Dom de iludir” serão canções bem sucedidas, não na medida em que pretendam substituir ou superar “Feitiço da Vila” ou “Pra que mentir”, mas na medida em que consigam reunir-se a elas - afinal, esta reunião só faz acrescentar ao proveito que tiramos delas todas. Assim também a canção “Saudosismo”, de Caetano, não se pode compreender plenamente sem “Chega de saudade” e mais outras tantas canções de bossa-nova que ela cita e critica; e eu próprio compus uma canção, “Desanimado” (gravada por Clara Sandroni em seu CD de 2007), que é à sua maneira um comentário a “Desafinado” e a “Saudosismo”. Outra coisa, no entanto, é desenvolver uma argumentação em prosa de seminário, interpretando uma canção não como um cantor interpreta, mas como um intelectual interpreta; e sobretudo quando se é um intelectual de miolo mole, coisa muito melhor que ser de miolo duro (caso mais comum). Era isso que Caetano Veloso estava fazendo naquele sábado à tarde em Santo Amaro, e eu estava ali na platéia, discordando dele. Precisei, morto de vergonha, pedir a palavra e dizer que discordava. Quisera naquele momento que se abrisse a terra de massapê do Recôncavo, e me engolisse, mas enquanto tal graça não me era dada, lá estava eu, e discordava. Não tive outro remédio senão dizê-lo publicamente. Caetano Veloso respondeu que eu estava sendo benevolente para com Noel Rosa e reforçou seus argumentos, em termos que me escapam à memória, talvez por força da comoção (quem me conhece sabe que isso não é ironia). No final do seminário, aproximei-me dele e disse-lhe que nunca tinha visto as coisas deste jeito e que iria pensar seriamente no assunto, estando pronto a rever minha posição. De fato pensei no assunto de lá pra cá. Mas qual não foi minha surpresa - estando posto em sossego no meio de um pós-doutorado, nos píncaros das últimas teorias etnomusicológicas francesas - ao receber pelo correio um recorte de jornal, contendo artigo de Ali Kamel, onde aprendo que Caetano voltou à carga contra “Feitiço da Vila”, em show realizado no Rio de Janeiro no mês de junho. Segundo Kamel, “Caetano (…) demonstrou que a canção quis livrar o samba da sua negritude, transformando-o num feitiço do bem, feito por bacharéis brancos, longe, portanto, da macumba dos negros do morro, que faz, por oposição, o mal, coisa de bamba” (Kamel, “Caetano e Obama”, O Globo, 10/6/08, p.7). Este resumo piorava bastante o que eu havia escutado em Santo Amaro. Mas a surpresa não diminuiu após uma visita ao blogue do compositor, www.obraemprogresso.com.br, quando, clicando no link “Noel Rosa”, assisti ao vídeo “Feitiço da Vila é uma canção racista?”. As discussões sobre racismo estão acesas no Brasil, em grande parte por causa da Lei de Cotas. Isso me parece muito bom, mas está também gerando um efeito colateral que, este, me parece nocivo. É a total banalização da acusação de racismo! Com excessiva freqüência encontramos adeptos da Lei acusando de racismo os que se opõe a ela, e a situação oposta não é menos freqüente. Como no caso de “pequeno-burguês” algumas décadas atrás, caminha-se perigosamente para um momento em que a melhor maneira de não ser considerado racista, seria encontrar alguém a quem re-encaminhar a acusação! (Não acho que seja o caso de Caetano Veloso, que não precisaria disso). Neste quadro, a acusação de racismo corre o risco de ficar cada vez mais fraca. Racismo é crime, mas se uns e outros são racistas, e até Noel Rosa é racista (sem falar dos outros sambistas que falaram mal do feitiço), pode se difundir o sentimento de que o tal racismo não deve ser coisa tão grave assim. (Dizendo isto arrisco-me, é claro, a ser chamado de racista). É certo que, como apenas 120 anos nos separam do regime escravista, ainda existe na sociedade brasileira um racismo estrutural, do qual, em alguma medida, creio que todos podemos ser “acusados”. Mas neste ponto acusações e mea culpa são ineficazes: precisamos, isso sim, de ações afirmativas, entre as quais a Lei de Cotas em sua forma atual representa uma opção. (Aqui talvez eu tenha me livrado de algumas acusações de racismo, expondo-me no mesmo gesto a elas, pelo outro flanco). Mas vamos ao conteúdo do vídeo, e gostaria de começar pelo seu trecho final, onde inexatidões e injustiças se somam. Talvez o problema mais surpreendente deste final, e sintomático, seja o da letra. Caetano misturou duas estrofes diferentes, que aliás nunca foram gravadas em vida de Noel Rosa, e que foram perpetuadas no Rio de Janeiro, salvo engano, por tradição oral (não sei se Araci de Almeida as teria incluído em suas regravações feitas nos anos 50). Elas teriam sido improvisadas por Noel num programa de rádio, e considerá-las como parte integrante da canção ignora o fato de que o “modéstia à parte, eu sou da Vila”, evidentemente, é o encerramento da música. Em todo caso, se o leitor procurar pela letra de “Feitiço da Vila” na internete não vai encontrar estas duas estrofes facilmente, nem elas foram incluídas nas suas mais conhecidas gravações, incluindo recente regravação por Martinho da Vila. Eis sua versão correta, que pode ser conferidas em Noel Rosa, uma biografia (Brasília: UnB, 1992), de João Máximo e Carlos Didier - pra mim o melhor livro jamais escrito sobre samba, incluindo o meu: Quem nasce pra sambar, A zona mais tranquila No vídeo, Caetano canta os dois primeiros versos da primeira estrofe com os dois últimos versos da segunda estrofe. Corta assim a alusão ao “berço dos folgados”, o que, parece-me, tem implicações para a interpretação do todo. Digo que este é o problema mais surpreendente, porque Caetano deu muitas provas em sua carreira, desde “Esta noite se improvisa”, de conhecer de sobra a importância de atribuir aos letristas as letras que a eles se pode atribuir com segurança. O segundo problema é dar a entender que Noel Rosa era homófobo. Ora, podemos acusar Noel Rosa de misógino, mas não de homófobo (como podemos acusá-lo de racista por anti-semitismo, mas não por preconceito de cor.) Não só não conheço um traço de homofobia em suas letras e em sua biografia, como ele foi, até onde sei, o primeiro na música brasileira a descrever com acentuada simpatia um sambista homossexual, em “Mulato Bamba”. O terceiro problema: insinuar que Noel estava, com seu verso sobre o cadeado no portão, chamando Wilson Batista ou quem quer que fosse, de ladrão. Aqui a gente toca em uma das minhas discordâncias centrais com a interpretação de “Feitiço da Vila” por Caetano Veloso. Ela diz respeito à idéia de que a Vila de Noel Rosa, sendo um bairro de classe média, estaria contraposto aos morros e aos subúrbios mais pobres. Como se a Vila fosse uma espécie de Barra da Tijuca do seu tempo - e mais ainda, como se assim a visse e quisesse Noel… Não tenho estatísticas, mas até onde posso julgar pelo livro de Máximo e Didier, pelos desfiles da escola de samba Unidos da Vila Isabel e pelas, infelizmente, poucas vezes em que fui lá, a Vila era, e é, um bairro tão misturado quanto possa ser um bairro brasileiro de uma grande cidade. Não nego, é claro, que a Vila tivesse mais características de classe média que os morros cariocas. Não é a sociologia que está em causa aqui - e muito menos uma sociologia de miolo duro, como a que é proposta no vídeo (”tal compositor, movimento ou obra musical representa a classe média, tal outro, as favelas”…). O ponto que quero enfatizar é que a defesa da Vila por Noel não visa acentuar suas diferenças em relação à Mangueira, da qual Noel era freqüentador, nem ao Estácio ou à Penha, aos quais ele também dedicou canções extraordinárias. Ao contrário, visa inseri-la no mesmo contexto de disputas “bairristas” que, justamente, era tão típico do samba daqueles anos. “Andando pela batucada/Onde eu vi gente levada/Foi lá em Vila Isabel”, escreveu ele em “Eu vou pra Vila”. A alusão ao “berço dos folgados”, na estrofe escangalhada no vídeo em questão, também não me deixa mentir. “Folgado” é um outro nome para “malandro”, como afirma Noel no samba “Rapaz Folgado”, aliás também parte da polêmica com Wilson Batista. Ou seja, a afirmação de que na Vila “não tem ladrão” não implica que lá não haja samba, bamba, batucada e gente levada. Ao contrário, quer dizer justamente que “bamba” e “ladrão” não são sinônimos. Mas a evidência máxima de que a defesa da Vila por Noel não tem a conotação “mauricinha” que Caetano lhe quer imputar, está em “Palpite infeliz”, que arrematou a polêmica com Wilson Batista: Salve Estácio, Salgueiro Em resumo, a louvação da Vila, em Noel, não visa demarcá-la dos morros, mas ao contrário, uni-la a eles mais intimamente, através da participação no jogo comum da disputa bairrista em torno do samba. Ao que tudo indica, mesmo do ponto de vista sociológico tal projeto não era uma simples idiossincrasia, sendo a Vila Isabel dos anos 1930 um bairro muito mais misturado socialmente do que vieram a ser os bairros ditos “emergentes” cariocas a partir do final do século XX. Que bacharel elitista (como seria o personagem de Noel, segundo a caracterização de Caetano) poderia dizer do seu bairro, “lá não tem cadeado no portão”? O segundo ponto geral de discordância diz respeito ao suposto racismo da canção. Ele estaria por exemplo na alusão ao “nome de princesa”, e não de qualquer princesa, mas da Princesa Isabel. Quanto a princesas em geral, seria então necessário classificar como racistas todos os integrantes de escolas de samba e maracatus que se vestem à maneira de princesas, príncipes, reis e rainhas europeus, a cada carnaval. Mas e esta particular princesa, a Isabel, a que assinou uma lei, como sabemos, demasiado tardia e incapaz de garantir real igualdade de oportunidades entre negros e brancos? Ora, não faz sentido cobrar da Princesa Isabel o que ela não conseguiu fazer, sobretudo se nós, 120 anos depois, ainda não conseguimos tampouco fazer. Mesmo antes de conhecermos a carta ao Visconde de Santa Vitória, onde ela defende a indenização aos ex-escravos, o historiador Eduardo Silva havia demonstrando que ela abrigava escravos fugidos e incentivava fugas, no que caracterizou como um verdadeiro quilombo abolicionista em Petrópolis (As camélias do Leblon e a Abolição da escravatura: Uma investigação de história cultural, São Paulo: Companhia das Letras, 2003). Na mesma canção “Feitiço”, não se disse: “Zumbi come Zabé, Zabé come Zumbi”? De fato, um se nutre do outro, e vê-los como incompatíveis é um erro de alguns bem intencionados lutadores anti-racistas. Os pretos de Santo Amaro, sábios que são, assim como os de outros lugares do Brasil, não precisaram esperar pelos historiadores, pois eles [No] dia 13 de maio (…) celebravam Pois a Vila Isabel e Noel Rosa também não esperaram pelos historiadores para saudar a Princesa Isabel e seu quilombo! Será que é tão chocante falar do “quilombo de Zabé” quanto chamar “Feitiço da Vila” de racista? Não sei, mas pelo menos a primeira expressão me parece, até agora, melhor fundamentada. Continuemos discutindo a segunda. Sim, a farofa, a vela e o vintém: aí, reconheço, é onde Caetano tem um argumento interessante. Mas acho que é possível discuti-lo seriamente, em duas versões, uma que chamarei “fraca”, e outra “forte”. A versão “fraca” foi adiantada pelo historiador Bryan McCann (autor do excelente Hello, hello Brazil: popular music in the making of modern Brazil, Duke University Press, 2005.) Ei-la (a tradução é minha): “Dadas as referências negativas às religiões afro-brasileiras e a alusão favorável à aristocracia, certamente seria possível interpretar ‘Feitiço da Vila’ como uma apologia do samba branco, de classe média, às custas do samba dos pobres e dos negros. Mas se levarmos em conta o resto da obra de Noel, e os detalhes da sua carreira, tal interpretação revela-se pouco convincente. Dos sambistas brancos de sua geração, ele foi o que colaborou de maneira mais assídua com compositores da favela (e um dos poucos que não explorou financeiramente tal colaboração). E sua música permaneceu mais perto do ’som do Estácio’ que a da maioria de seus pares”. (No artigo “Noel Rosa’s nationalistic logic”, Luso-Brazilian Review, Vol. 38, No. 1, 2001, p.1-16.) Nesta linha de argumentação, a vida e a música de Noel Rosa desautorizam a idéia de que ele tenha sido racista. Certo, ele não era, como Sinhô ou João da Baiana, um sambista ativamente envolvido com o candomblé. Mas conviveu intensamente com o meio cultural afro-carioca (do qual a religião é parte integrante), e dele foi, na melhor expressão da palavra, um parceiro. Poderíamos ir mais longe e lembrar do enorme sucesso de “Feitiço da Vila” junto ao público e aos prórios sambistas, muitos dos quais praticantes ou simpatizantes de umbanda, macumba e candomblé. Grandes obras geram múltiplas interpretações, mas se nem Noel Rosa se pretendeu ali racista, nem o público a quem a questão toca mais diretemente o viu como tal, que ganharíamos hoje ao adotar semelhante releitura? Ou será que o autor e o público eram racistas e não sabiam? Acreditariam eles na democracia racial, já enceguecidos pela recém-publicada ideologia freyreana, e Caetano com sua interpretação viria adicionar mais uma pedrinha à desconstrução deste mito, revelando-nos a todos como os racistas que não sabíamos que éramos? É um ponto de vista, é só posso congratular Ali Kamel por ter se mostrado sensível a ele. Pessoalmente, acredito que o povo do samba e do candomblé sempre soube muito bem que há preconceito de cor no Brasil, assim como sempre soube distinguir, com alguma margem de erro, quem tem preconceito - como a “madame” do samba de Janet de Almeida evocado também naquela tarde em Santo Amaro - de quem não tem. É de uns anos para cá que a confusão no que se refere a isso parece estar aumentando. Porque então chamar de “fraca” esta versão do argumento em defesa de Noel, apresentada por Bryan McCann (com apoio, não custa repetir, na biografia escrita por Máximo e Didier)? É porque Caetano não disse com todas as letras que Noel Rosa era racista: disse que “Feitiço da Vila” era. Alguém negaria que, neste Brasil ainda tão perto do escravismo, mesmo os maiores lutadores anti-racistas possam ter seus maus momentos? Talvez ninguém negasse, mas há certamente quem se deleite com isso. Não estou entre estes últimos. Então, os versos de “Feitiço da Vila” - o “samba sem farofa, sem vela e sem vintém”, o “feitiço decente” - teriam sido maus momentos do bravo Noel Rosa? “Referências negativas à religião afro-brasileira”, mas incidentais no contexto de sua obra? Aí, talvez estivéssemos sendo “benevolentes”, como disse Caetano em Santo Amaro. (Uma benevolência, de resto, muito bem fundamentada.) Mas minha intenção com este arrazoado não é salvar um ícone da cultura brasileira, do samba ou de quem quer que seja (embora eu ache que nossa iconoclastia ganharia com ajustes de mira). Nem é esta a intenção de McCann, que em seu artigo aponta, com muito mais evidência, para misoginia, anti-semitismo e xenofobia nas letras de Noel. Gostaria, por isso, de ir mais longe e apresentar uma versão “forte” do argumento contrário a ver racismo em “Feitiço da Vila”. Ela diz respeito ao estatuto do feitiço na cultura brasileira. O nome do samba estampa o feitiço como um valor positivo (mesmo se depois irá especificá-lo como “decente”). Só por fazê-lo, a canção já está à frente de muitos sambas, anteriores e posteriores, para os quais o feitiço é negativo. Donga, por exemplo, carioca filho de baiana, e pioneiro do samba, no seu “Pelo telefone”, tido como a primeira peça do gênero a fazer amplo sucesso popular, ameaça bater em quem “faz feitiço”: Tomara que tu apanhes E o próprio pescador de Dorival Caymmi, o mesmo pescador que ainda nos anos 1950 cantava em língua africana na puxada de rede do xaréu (conforme o magnífico disco gravado pela antropóloga Simone Dreyfus-Gamelon), o emblemático pescador das canções praieiras - pode acabar acusado de racista também: O pescador deixa que seu filhinho No Abaeté, conta-nos Caymmi, ouve-se “a zoada do batucajé” - e, como a canção deixa claro na letra e na música, não é por outra razão que o filho leva pancada se chegar perto de lá. Aliás, é por isso também que a “lavadeira” (branca? negra? alguém se importa?) “vai se benzendo” no caminho. Mas atenção, Donga e o pescador de Caymmi não reprimem o feitiço por considerá-lo falso, e sim, justamente, por acreditar nele. Como aprendi com Yvonne Maggie no livro Medo do feitiço - relações entre magia e poder no Brasil (Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1992), os que não acreditam em feitiço, não reprimem feiticeiros, mas acusadores de feiticeiros. Assim, não é só o “Feitiço da Vila” e as canções citadas que querem distância da farofa, da vela e do vintém. “Feitiço” e “feiticeiro”, no Brasil como alhures, são categorias de acusação - de novo, é Maggie quem ensina (alguns vão achar que a estou citando demais; mas não divido o mundo em quem é favor de cotas e quem é contra!). Diremos que nossos inimigos são feiticeiros, mas não diremos que nós mesmos somos feiticeiros, nem que isso, aliás, é uma coisa muito boa. E se assim agimos, não é por racismo, mas por causa do modo de funcionamento do sistema da feitiçaria, não só no Brasil pós-escravocrata, mas na África também, como mostrou Evans-Pritchard em seu livro clássico (Bruxaria, oráculos e magia entre os Azande, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004) . Noel Rosa também disse: “samba tem feitiço, todo mundo sabe disso” (em “Na Bahia”). A letra de “Feitiço da Vila” é testemunha desta intimidade com o mundo do feitiço, aliás compartilhada por seus ouvintes, que sempre a entenderam muito bem. Todos sabemos que esta farofa não se deve comer, que esta vela não é de aniversário, que este vintém não se deve botar no bolso. E o emprego dos verbos “fazer” e “prender” aqui é perfeitamente vernacular. Falar mal do feitiço é a maior prova de que estamos metidos nele até a raiz dos cabelos. O merecido, e duramente conquistado, crescimento em prestígio do candomblé do tempo de Noel Rosa para cá, não se fez com base na idéia de que candomblé é sinônimo de feitiço, bem ao contrário. Isto nos leva a um último ponto. O problema não seria então, falar do feitiço, dizendo que um é decente, e implicando a existência de outro, indecente. Seria antes a própria associação entre feitiço e farofa, vela, vintém. Como estes objetos podem integrar os rituais do candomblé, chamá-los de “feitiço” já seria, por si só, manifestação de preconceito contra esta religião. Ora, o problema posto por esta última objeção é, na verdade, o mesmo problema abordado pela canção de Noel Rosa: como demarcar algo que seria “decente” (ou que nome se queira dar para denotar algo que é sentido como “do bem”), como a religião e o samba, de algo que seria “indecente” (ou “do mal”) - o feitiço? Este é um problema que, em nossa sociedade, se coloca mesmo para uma religião cuja distinção entre “bem” e “mal” seja muito diferente da judaico-cristã. No caso do samba, a distinção é facilitada pelo fato de que os objetos do ritual ficam transfigurados (sem deixar de estar, em algum nível, “presentes”) em objetos musicais: a cuíca, o surdo e o tamborim (Feitiço decente, p. 179-82). No caso da religião, a distinção é dificultada pelo fato de que uma vela tanto pode representar uma oferenda a um orixá, quanto uma ação mágica dirigida contra terceiros. Em outras palavras, bem gerais agora, o problema da demarcação entre “religião” e “magia” não é tão simples como desejariam certa antropologia (aludida por Stefania Capone, A busca da África no candomblé, Rio de Janeiro: Contracapa/Pallas, 2004) e certa teologia (não só do candomblé!). Talvez fosse demais pedir a um samba, mesmo a um samba tão especial, que o resolvesse. (Muitos sambas juntos talvez um dia o resolvam). Mas se “Feitiço da Vila” não resolve este problema, parece-me claro que o impulsiona para a frente. Assim, duvido que houvesse, nos Brasil dos anos 1930, melhor modo de trazer o feitiço à tona, de botá-lo na boca do povo, que através desta espécie de koan zen. Pois o “feitiço decente” de Noel Rosa é um paradoxo, uma coisa impossível, um curto-circuito lógico (como o que Caetano tão bem soube ver em “É proibido proibir”). Justamente aí é que está a genialidade dele (e a de Caetano Veloso também, embora não neste vídeo infeliz): a de criar objetos impossíveis, quimeras, utopias, coisas feitas, capazes de transformar nossas vidas. Ou, nas palavras de Caetano: de “soltar a gente”. |
A reflexão de Sandroni é robusta e embasada, mas um tanto binária. Há no seu escrito um um certa vocação advocatícia e pessoal que reduz esse bonito debate a uma avaliação do caráter e da ideologia do Noel. Isso me parece redutor. O que Caetano produziu com seu samba-falado não foi, ao meu ver, uma tentativa de entrar no cérebro do Poeta da Vila. Não foi um cateterismo ideológico. Caetano iluminou a letra de uma obra antológica com refletores do tempo presente. Ora, nem Noel talvez tenha a consciência do preconceito embutido nos seus versos. Não é essa a questão. O interessante dessa história toda é perceber o que tavez fosse imperceptível na época. E aí, a letra tem sim, alguns instantes explícitos de preconceito. Não o preconceito de Noel. Mas um retrato da negociação racial que o samba promovia com a aproximação de pretos pobres e brancos remediados. É claro que Noel tinha fascínio pelos pretos. Isso é exaltado recorrentemente em suas letras. Mas é óbvio que essa aproximação tinha tensões. A polêmica Noel X Wilson é maravilhosa por isso. Ela revela atração e repulsa, a um só tempo. Reescutei Feitiço da Vila cantado por João Gilberto no You Tube. E me lembrei quando João cantou Saudosa Maloca aqui em SP, fazendo o mesmo que Caetano. Analisou a letra. Foi mais anárquico, é claro. Mas é lindo, ver um mestre como Caetano colocando a canção de outro mestre no microscópio. Sua intenção não foi psicografar o raciocínio de Noel. Sua reflexão em nenhum momento foi acusatória e pessoal ao autor. Ele invadiu o velho samba com um olhar contemporâneo. E é isso que vem fazendo a décadas, impedindo que a canção popular fique embalçamada.
a Elizeth Cardoso tem uma gravação lindissima de “Feitiço da Vila”, datada de 1957 ! Num disco chamado “Noturno”, que tem outras grandes gravações como : chão de estrelas, olhos verdes e na baixa do sapateiro [ esta ultima que inclusive o caetano gravou em 1997 ].
Já a música “Feitiço”, de Caetano, que entrou para o show e disco “Eu não peço desculpa”, poderia até entrar em alguma apresentação de Obra em Progresso.
O comentário do Fernando Salem já disse tudo o que eu gostaria de dizer: não se trata, pois, de condenar Noel, mas de discutir aquilo que se desvela “naqueles” versos, ou seja, um determinado pensamento acerca das relações sociais e raciais que se imiscui na poesia de Noel. Sandroni contextualiza muito bem - precisamos de fato saber a que se referia Noel quando falava em feitiço, em bambas etc etc -, mas ainda acho que há pressupostos ali que são preconceituosos sim.
Interessante a “defesa” que Sandroni faz de Noel.Eu mesmo pensei, puxa, que ruím descobrir um Noel dos espaços não marginais da canção. Mas, imediatamente, entendi “o que é preciso entender”, o “tropicalismo contínuo” de Caetano, que historicamente está para a retomada das questões envoltas nas produções dircursivas de “identidade nacional”, e nisso o levantamento para as discussões de superioridade racial, para as interpretações dessa região obscura de nome incandescente (plágio que fiz a partir de escritos do Caetano em Verdade Tropical)onde outras danças acontecem, mesmo que sob o olho difuso do poder das elites intelectuais, revelando-se, sob a construção imaginária da nação vinculada a um passado imperial de cunho escravista e racista. Caetano ao falar de “Feitiço da Vila” retraz este passado ainda presentificado na realidade brasileira, ainda envolta em dar cotas “aos pretos”, e somente aos pretos, reascende o que de fato é este país racista, ao mesmo tempo que mostra as divisões entre “espaços superiores da cultura” e “espaços marginais da cultura”, com isso revisitando aqueles da época do feitiço, isto é, o bissexual Assis Valente e nessa linha, as canções gays “veladas” de um Ismael Silva, por exemplo; ou aquelas do feitiço, não da vila mas a da pisado no despacho de Geraldo Pereira…
acho prudente não “problematizar” á partir de “palavras chave” canções belissimas em sua poesia em si…
Diga Sempre Que Eu Não Presto ou Incompatibilidade de Gênios
Não vou falar da incompatibilidade do gênio de Caetano Veloso com o de Noel Rosa, apesar de desconfiar que ele prefere a obra de Geraldo Pereira. Eu também prefiro, apesar de, como todos aqui, considerar Noel uma voz indispensável. Prefiro Geraldo porque ele me define melhor o samba. Mas Noel talvez me defina melhor o brasileiro.
Caetano realça sua acusação, nesse vídeo, com um tom quase solene e uma moldura de silêncios. É evidente que sublinha a gravidade do que está dizendo. O Sandroni rebate muito bem, tem minha simpatia, mas estão bem os comentários do Salem, se bem que.. benevolentes com nosso loquacíssimo poeta, artista-açu, o qual teria podido, se quisesse, reduzir a coisa toda a uma observação-mirim sobre a difusão dos preconceitos que cercavam a cultura negra à época do “Feitiço da Vila”.
Pra começo, não nos esqueçamos que se está falando de uma obra marcadamente satírica, onde licenças são de praxe. E de um desafio entre bambas. Não há, dos sertões da Bahia pra cima, peleja onde o roto não esculhambe o esfarrapado, mirando em todos os alvos caricaturáveis que este possa oferecer. Pensem em Zé Limeira: quem quereria conter aquela liberdade num rótulo? Mas o mano foi incisivo, pegou pesado, o que me faz, malandro velho, folgado, pensar na existência de algum viés. Vamos lá.
Vila Isabel, reduto a meio caminho entre a Quinta imperial e o Estácio, num tempo em que se dava as costas pro mar, foi o primeiro bairro planejado do Rio. Nasceu moderna. Pois é, não vi ninguém mencionar aqui (seria sociologia demais?) a característica industrial da Vila, que era em grande parte uma vila operária mesmo, de uma grande fábrica de tecidos. Não tem nada disso de aristocracia, de que fala o Bryan McCann: eram só crianças indo à escola pública, de roupinha limpa, pano novo. Tudo bunitinho. Bacharel é falsa pista, a marra do Noel talvez fale mais é do brio daquela gente, na conexão íntima que tinha com a industrialização alvissareira. Coisa não muito diferente do alento otimista que nos pariu a bossa-nova.
O Sandroni se aproxima adequadamente das acepções da palavra feitiço. Fascínio da Vila. A distinção entre oferenda e mágica daninha é fundamental. Oferendas são dádivas, coisa sagrada. Feitiços, malefícios de feiticeiros, são cobranças peçonhentas, do que às vezes nem é devido. Se Noel, cabreiro, não soube distinguir uma da outra (êpa, é dificil saber mesmo, mano), isto não faz do Feitiço dele uma obra manchada pelo racismo, ora. Pulgão atrás da orelha, Caetano? Vá se catar!
P.S.: Prá não parecer injusto, deixo claro que chamo “Incompatibilidade de Gênios” de sambinha sem pejorar, pelo contrário. A modéstia melódica dele fala do apito no samba, onde a nota é mais ritmo que melodia, beleza. Mas acho o espírito tutelar deste grande sambinha despretensioso, mesmo. A letra lhe dá vulto. Ótimo, cantado pela Clementina.
Nasci em Vila Isabel em 1952, portanto quinze anos após a morte de Noel, e lá morei até os 25 anos de idade e posso lhes afirmar que era um bairro bem rico socialmente. Havia todas as classes médias: da mais baixa, da classe operária, ao pequeno empresário e ao profissional liberal, que geralmente morava em boas casas. Edifícios de apartamentos eram raros até a década de 60.Não havia a mais remota possibilidade de um homem com a inteligência e a sensibilidade de Noel invocar sua origem e o bairro onde nasceu para forjar letras musicais de cunho racista ou preconceituoso.Portanto, me inclino a defender o ponto-de-vista do Carlos Sandroni.
Me desculpem mas vcs estão esquecendo do ponto vital do texto do Sandroni que cita que Caetano usa 2 linhas de uma estrofe com 2 linhas de outra e isso pra mim é indefensável, faz toda a diferença.
Pode ser. Mas os versos “lá não tem cadeado no portão porque na Vila não tem ladrão” dão sim a idéia de um bairro pacífico em contraponto com os bairros da bandidagem. Ora, os bairros de classe-média cariocas eram habitados por brancos. E o morro, por pretos. Como fã de Noel me sinto muito à vontade pra reiterar a minha opinião nesse embate que já tá pra lá de Marrakesh. Feitiço da Vila é no mínimo um samba revelador da negociação social e racial de uma época. Isso não quer dizer que o “homem” Noel Rosa foi um sujeito racista. Só isso.
Legal o debate sobre a obra de Noel; pena que de repente parece se apagar o Noel de “classe média” aquele que fala de “quanto a você da aristocracia, que tem dinheiro mas não compra a alegria”, canção que ganhou brilho na voz de Chico Buarque, ou então aquele Noel da “emancipação feminina”, o malandro folgado, que diz que “a mulher não se deve obrigar a trabalhar”, mas que ela não reclame da falta de vestido e do jantar escasso “que não dá pra dois”; Noel é muito legal, as temáticas de vagabundos (João Ninguém), mulheres nas fábricas (três apitos), afirmação social (filosofia), o do carnaval, aquele que tomou vermute com amendoím, o das pastorinhas. Agora, se alguém souber de uma canção de Noel que ele use a palavra “preto” ou “escurinho” a exemplo de Geraldo Pereira “o escurinho era um escuro direitinho”, me avisa.
Provavelmente há mais preconceito embutido na interpretação feita por Caetano — e em todos as demais reações que derivaram dela, inclusive a minha própria — do que na iluminada (sem preconceito) letra de Noel, propriamente dita.
Ai, o politicamente correto…
Noel e Chico Buarque são os maiores gênios da Música brasileira em todos os tempos. Nada se compara a eles. Bossa Nova; o pessoal do samba exaltação; os negros (Ismael, Wilson , Cartola, Geraldo Pereira), apesar de grandes compositores, são inferiores a Noel e Chico.
Cumpre salientar, que Noel ganhou as duas batalhas com Wilson. A primeira batalha musical, Noel deu Xeque - mate com Palpite Infeliz. Na segunda, como Wilson não conseguiu, com Conversa Fiada, responder ao clássico Feitiço da Vila de Noel, apelou para a desrespeitosa “Frankeintein da Vila” ficando antipatizado com o público.
Parabéns ao Carlos. Defendeu bem ao Noel. Noel nunca foi racista. O que eu entendo na letra de Feitiço da Vila é um desprezo de Noel pelo Camdomblé e pelos despachos de encruzilhada (ele achava isso uma bobagem), o que está longe de ser racismo.