Caetano Veloso: 'Minha vida teria tomado outro rumo, não fosse a prisão'

Entrevista para o Jornal O Globo (06/09/2020)

Por Maria Fortuna

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Quando se encontrava preso, na cela de uma cadeia, foi que viu pela primeira vez as tais fotografias... da Terra, avistada do espaço. E olhar pela segunda vez, 52 anos depois, as mesmas imagens que o inspiraram a compor uma de suas mais belas canções, “Terra”, provoca um gatilho que faz Caetano Veloso chorar.

A cena está em “Narciso em férias”, filme em que o compositor revisita sua prisão pela ditadura militar em 1968. Quatorze dias depois de decretado o AI-5, Caetano e Gilberto Gil foram tirados de suas casas, em São Paulo, por agentes à paisana que os conduziram, sem explicação, a uma viagem de camburão rumo ao Rio de Janeiro. O destino eram duas solitárias do quartel do Exército na Rua Barão de Mesquita, na Tijuca.
'Subversivo e desvirilizante'

Realizado pela Uns Produções e coproduzido por Paula Lavigne e Videofilmes, de Walter e João Moreira Salles, o documentário tem direção de Renato Terra e Ricardo Kalil (de "Uma noite em 67") e é o único filme brasileiro selecionado para o 77° Festival de Veneza. A exibição, na sala principal do evento e dentro da seção oficial Out of Competition, acontece segunda-feira, 7, simultaneamente ao lançamento no Globoplay.

Outra passagem emocionante do longa surge quando Caetano narra um dos momentos de maior tensão do 54 dias em que ficou encarcerado. Soldados armados o tiraram da cela e o mandaram caminhar sem olhar para trás pela Vila Militar de Deodoro, na Zona Norte. Aos 26 anos, achou que ia morrer ali. O medo era tanto que ele agradeceu o que veio em seguida mesmo diante de um atentado ao símbolo de sua liberdade: os caracóis de seus cabelos foram tosados em estilo militar por um barbeiro que o esperava numa salinha — a foto foi parar no cartaz do filme.

Quando Caetano lê os autos do interrogatório diante da câmera, ficamos sabendo que só ali, após um mês preso, ele soube o motivo de sua detenção. Tinha sido acusado pelo apresentador de TV Randal Juliano de cantar o Hino Nacional no ritmo de sua música “Tropicália” em um show na boate carioca Sucata — o que ele e testemunhas negam.

No relatório, parte dos arquivos secretos mantidos pela ditadura e descobertos pelo pesquisador Lucas Pedretti (incluindo essa foto do músico de cabelos raspados, que ilustra o cartaz do filme e esta página), Caetano é descrito como “cantor de música de protesto, de cunho subversivo e desvirilizante”. Nesta entrevista, ele explica por que concorda com a definição. E diz:

— Minha vida teria tomado outro rumo, não fosse a prisão.

Como foi mergulhar nessas memórias de dor 52 anos depois? Diferente de quando você as descreveu no livro "Verdade tropical"?

Escrever é diferente de falar. E, quando escrevi, a situação política do Brasil era muito diferente da atual. Um dos motivos de o filme ser feito foi minha vontade de lançar o capítulo "Narciso em férias" como um livro autônomo, que agora tinha sido atendida pela Companhia das Letras.

Gosto do texto. No filme, as falas são respostas a uma entrevista. Mas o modo como foram feitas as perguntas por Renato Terra e Ricardo Calil, a locação escolhida por Paula Lavigne, a fotografia de Fernando Young, e a montagem final de Henrique Alqualo fazem do filme algo de qualidade tão alta quanto a do texto. Sem modéstia.

Defensores do regime militar dizem que a ditadura no Brasil não foi um período tão violento. Como o seu relato contraria essa afirmação?

Se tivermos em conta os que foram torturados e mortos, as famílias que não tiveram acesso aos corpos dos seus "desaparecidos", nossa prisão não é senão um sintoma da doença terrível que tomou conta do Brasil em 1964, sobretudo a partir de 1968, com o AI-5.

Qual é a importância do seu depoimento neste momento em que pessoas negam a ditadura?

Durante a ditadura nossa prisão, nosso confinamento e nosso exílio não podiam ser noticiados na imprensa. No xadrez em que fiquei na PE da Vila estava Perfeito Fortuna; no do Gil, Ferreira Gullar, Paulo Francis, Antonio Calado. Geraldo Vandré era procurado. Militares me diziam que, se o achassem, o matariam. Tinham um ódio violento por causa daquela canção "Pra não dizer que não falei de flores", que falava de "soldados armados, amados ou não".

Um sargento me chamou e fez questão de dizer que tinha feito parte do grupo que atacou fisicamente os atores de "Roda viva", de Chico Buarque, embora isso dificilmente fosse verdadeiro. Os que fizeram isso eram semelhantes a manifestantes de extrema direita que hoje fazem marchas com tochas e xingam médicos que realizam um aborto legal em menor estuprada. Deve haver pessoas que, embora não fossem capazes de fazer uma coisa nem outra, acreditam que a ditadura foi boa para combater o crime e a corrupção. Muitas delas podem ver no meu relato que a ditadura era caótica e criminosa.

O que significa o fato de o único filme brasileiro selecionado pelo Festival de Veneza falar sobre esse assunto neste momento do país?

Essas inflamações da extrema direita são um fenômeno mundial. Talvez o tema seja sentido como oportuno por eventos internacionais. Mas eu creio que o essencial para o convite de Veneza foi o valor estético do filme. Seu tom direto e sua forma límpida.

No longa, você lembra uma frase que Rogério Duarte te disse: "quem é preso, é preso para sempre". Como essa prisão influenciou na pessoa que você é? Essa memória sempre povoou as suas reflexões ou houve momentos em que ficou mais apagada?

Minha vida teria tomado outro rumo, não fosse a prisão. Passei um período com medo de batidas à porta e até de som de telefone. Com o passar do tempo, e psicanálise, esses medos passaram. Não penso frequentemente no que vivi na prisão.

Achava estranho ser uma coisa de que quase ninguém sabia. Me concentrei para escrever sobre isso em "Verdade tropical". A frase de Rogério me volta à cabeça. Mesmo hoje. Eu tinha planos de passar a fazer filmes e deixar a música para os verdadeiros músicos. Com a prisão, perdi a força para realizar tão séria mudança.

Conta também que passou a ter superstição com canções como "Súplica", "Assum preto" e "Onde o céu azul é mais azul", que havia cantado na noite anterior à prisão. Elas passaram a ser avisos de mau agouro e você não podia mais cantá-las. Já fez as pazes com elas?

Ia fazer. Prometi cantá-las para o filme. Mas os diretores acharam que o material da entrevista continha tudo o que precisavam. Não sei se voltou uma gota da superstição. Mas "Onde o céu azul é mais azul" me deu vontade de chorar. Me dá ainda. Tenho pena da música, de eu não ter querido mais cantá-la nem ouvi-la. Por duas vezes as lágrimas me vieram aos olhos ultimamente à mera menção de seu título.

Após ler o relatório com o seu interrogatório, diz concordar com a afirmação de que era um "cantor de música de protesto, de cunho subversivo e desvirilizante". Por que?

Claro que há humor nisso. A frase dos interrogadores é muito ridícula. Mas "subversivo e desvirilizante", dito por eles, faz pensar em atitudes anti-machistas. E dá vontade de desfazer o sentido sempre positivo de "viril" e entrar no clima de Tabata Amaral, cujo livro acabei de ler anteontem.

Você canta "Hey Jude" no filme, uma música que, quando surgia no rádio da prisão, te dava a sensação de que a vida ia melhorar ("eu via os portões se abrindo", você diz). Ela continua representando o mesmo para você?

Nunca tinha cantado "Hey Jude". É uma música que não acho que deva ser gravada por mais ninguém: só na gravação dos Beatles ela existe de fato. Cantei ali, pela primeira vez e interrompendo para comentar. Acho que a gravação que fiz para a playlist ou EP do "Narciso em férias" não vale a não ser como complementação do documentário. A música representa uma lembrança do período e é uma peça Beatles que, como canção gravada, só tem sentido com eles.

Quando te mandaram caminhar reto pela Vila Militar sem olhar para trás, teve medo de morrer. Já sentiu isso outras vezes na vida?

Sempre tive medo de morrer. Desde criança, temo doenças mortais. Gostava de pensar na possibilidade de viver até os 60 anos, coisa assim. O assunto ficava bem longe de mim. Mas, volta e meia, a ideia da possibilidade de uma criança ter uma enfermidade letal me apavorava. Chegava a tirar minha felicidade toda. Hoje tenho menos medo da morte. Acho que considero um pouco feio morrer cedo. Não vou morrer nunca, por meu gosto.

Mas, como todo mundo morre, não ficarei tão desesperado se tiver de morrer na idade em que estou. Quero viver até mais de 100 anos. Quero ver mais e mais meus filhos e os filhos deles. Quero também fazer alguma coisa realmente relevante no mundo da criação. Mas, como? Uma figura da indústria cultural? Adoraria fazer algo que a salvasse e a destruísse. O que, em bom hegelianismo, chama-se superar.

Ainda querendo saber do Caetano profundo: Como percebe esse momento de pandemia que a gente está vivendo? Como tem se sentido diante dele?

As epidemias virais vinham se dando com maior frequência e força nas últimas décadas. A enorme mobilidade das pessoas pelo mundo, os desafios da medicina (ganhei um livro de uma obstetra que se chama "Poderá a Humanidade sobreviver à medicina?"), as infecções hospitalares e as mutações das bactérias que se tornam mais resistentes aos antibióticos são assuntos que voltam frequentemente às conversas, aos ensaios, às notícias.

Bastou uma subida no grau de letalidade (e talvez de contágio) de um coronavírus para que se mudasse a rotina de vida no mundo. Ouço negacionistas que amam teorias conspiratórias que tomam a pandemia como uma farsa. Como se este fosse o único aspecto farsesco das mídias. Obedeço minimamente os protocolos sugeridos pelos infectologistas. Não me identifico com quem acha que descobriu a verdade oculta no deep state e atribui a Soros ou Gates ou a planos de vacinar para destruir e/ou controlar as populações. Estou em casa desde março. O que menos me ocupa é o medo de contrair a doença.

Quando o governo impediu Médicos Sem Fronteiras de atenderem indígenas do Mato Grosso do Sul para contar o avanço da Covid-19, só me vinha a música "Um índio" à cabeça: "E aquilo que nesse momento se revelará aos povos/ Surpreenderá a todos não por ser exótico/ Mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto/ Quando terá sido o óbvio". Como vê o índio da música e o índio brasileiro hoje?

Isso é um assunto difícil. A música me veio num nascer de manhã insone, no apartamentinho em que eu vivia com Dedé e Moreno no final da praia do Leblon. Eu adoro "Tristes trópicos". É um belo livro. E me fascina a luz que o Marechal Rondon pôs sobre o mundo indígena.

Eu tinha ido a Brasília porque um amigo me chamou para ver algo que ele achava impressionante e que dizia respeito à presença de extraterrestres entre nós. Fomos no breu da noite para uma zona deserta do cerrado. Tudo resultou em frustração. Não tanto para mim, que não sinto atração por médiuns que falam com alienígenas. Tinha havido alguma luz, um iô-iô luminoso desses que são vendidos na frente do Duomo de Milão, e um papo evidentemente falso com o médium. Esqueci o assunto. Quando fiz a canção, uma semana depois, não estava nem me lembrando disso. Me dei conta quando, o dia já claro, a música estava pronta. Tomei susto.

Sempre me comoveu a celebração do 2 de julho na Bahia: há uma procissão com a imagem de um índio e uma índia (em Santo Amaro, só a índia), chamados "os Caboclos". É uma parada grande, com bandas marciais de escolas. É a festa da Independência na Bahia: Dom Pedro deu o grito às margens do Ipiranga, mas na Bahia houve guerra — e só vencemos em julho do ano seguinte. Os caboclos têm uma capela no largo da Lapinha, em Salvador. Só saem de lá no 2 de julho. O índio, ou caboclo, também esteve presente no primeiro candomblé de que tomei conhecimento: Edith do Prato recebia Sultão das Matas. No Recôncavo, os candomblés de caboclo são numerosos.

Gosto muito de ler Eduardo Viveiros de Castro, mas não tenho essa visão antropológica como parâmetro para definir meus pensamentos a respeito de política. Mas pensar a tradição romântica do índio como símbolo nacional num tempo de crescimento populacional das nações indígenas que falam outra língua que não o português, ver lideranças indígenas ganharem protagonismo político, tudo isso mexe com minha alma.

Tenho muito orgulho de que Viveiros e Déborah Danowski tenham citado a frase mais radical da minha canção no livro "Há mundo por vir?": "Mais avançado que a mais avançada das mais avançadas das tecnologias". Adoro o refrão, com Mohamed Ali e Bruce Lee, Peri e os Filhos de Ghandi. Zé Agrippino, que não gostava de quase nada, gostava de "virá que eu vi".

Vejo Sultão das Matas em Ali e a origem asiática dos povos americanos em Bruce Lee. Os Filhos de Ghandi, asiático mais escuro, são os pretos da Bahia. Sou preto. Sou português. Sou índio quando leio "Metafísicas canibais". Amo o texto de Montaigne sobre nós. Fiz a música para os Doces Bárbaros, decididamente para Bethânia cantar. Gravei depois meio em reggae. É coisa demais para eu pensar. Peça para eu parar.

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