Divino, maravilhoso
Entrevista para o Jornal do Brasil
26 de setembro de 1968
Por Mônica Soutello - Fotos de Jorge Renato
As vaias com que foi recebido o happening proposto por Caetano Veloso no palco do TUCA, em São Paulo, o discurso do cantor, sua recusa em participar do Festival da Canção continuam sendo motivo de várias discussões e vários contatos. Mas Caetano Veloso parece permanecer fiel às suas últimas declarações: "O que é certo é que neste Festival da Canção eu não me apresento. Para mim c h e g a."
São Paulo (Sucursal) - Na casa de Guilherme Araújo, empresário de Caetano Veloso, o telefone não pára. Os amigos e Augusto Marzagão, diretor do Festival da Canção, ligam para procurar convencer Caetano a participar do Festival. Alguns, como Gláuber Rocha, telefonam do Rio para se solidarizar com a posição de Caetano. Acham que êle não deve mesmo se apresentar no Maracanãzinho.
Caetano já está decidido: vai ao Rio só para dar entrevista coletiva à imprensa e nada de festival. É possível que êle e Gilberto Gil façam um show na Sucata. Mas isso ainda está sendo estudado.
No apartamento de Caetano, no mesmo prédio da Av. São Luís, onde mora Guilherme Araújo, o telefone também toca o tempo todo. Só que lá ninguém atende. Dedé, sua mulher, e mais três amigos estão jantando mas preferem mandar dizer que ainda estão viajando. Caetano, que acaba de sair do banho, está secando o cabelo para poder ser fotografado com a sua "cara mesmo", ou seja, aquêle cabelo armado que todos conhecem. Mas acontece que êle não tem muita paciência de ficar secando o cabelo e resolve aparecer com o "cabelo que não é dêle", todo penteado para trás. Veste uma túnica colorida já bastante conhecida - há um ano que tenho essa túnica e há um ano que ela sai nos jornais e revistas.
Caetano diz isto brincando, sorri com aquêle seu jeito de quem está pouco ligando para essas coisas e vai-se sentar numa poltrona de acrílico transparente, de costas para a mesa de pingue-pongue, onde o pessoal está comendo.
Um certo tipo de esquerda
Agora, com um ar mais sério, começa a responder às perguntas sôbre o incidente no palco do TUCA, onde foi vaiado, xingado e quase agredido fisicamente. Começa com uma frase, interrompe, pensa um pouquinho e responde:
- A gente só pode entender o incidente dentro da linha dos fatos que os antecederam. Êste incidente é mais um desde Alegria, Alegria. A vaia é a mesma desde aquela época, embora a memória curta dos brasileiros tivesse esquecido as do ano passado. A única diferença está na resposta a essas vaias. Quando as pessoas não têm oportunidade de explicar as coisas, a gente não tem oportunidade de responder. Dessa vez houve oportunidade para que êles explodissem. Eu conheço quase tôdas essas pessoas que me xingavam lá no TUCA. Elas têm guardado esta vaia há muito tempo. Realmente, no Brasil, existe um certo tipo de pensamento soit disant de esquerda, que não quer nos suportar. Talvez seja o momento de deflagrar a briga. Mas que êles eram inimigos eu já sabia.
Caetano não perde nunca aquela calma de baiano. Por isso não se pode dizer que esteja exaltado. Simplesmente o assunto o deixa animado e ele não pára de falar.
- Todo mundo sabe que a frase É Proibido Proibir foi tirada das pichações francesas. Eu próprio, agora, pouco antes da apresentação do Festival, não a considerava muito importante. Mas essa música eu já fiz e inscrevi há muito tempo, na época mesmo das agitações francesas. Por isso, achei que bastava fazer a música para divulgar a frase. Mas quando chegou o Festival, a frase já estava velha devido à própria divulgação que teve. Então, eu quis revitalizá-la, com um arranjo diferente do Rogério Duprat e uma apresentação happening.
O fotógrafo pede que Caetano mude de lugar. Ele se levanta mas continua falando, gesticulando. Fica muito tempo em pé procurando onde sentar, depois resolve se equilibrar no enorme pufe de plástico inflado.
- Entrei no Festival para destruir a idéia que o público universitário, soit disant de esquerda, faz dêle. Eles pensam que Festival é uma arma defensiva da tradição da música popular brasileira. E a verdade mesmo é que Festival é um meio lucrativo que as televisões descobriram. Tradição, bacana nenhuma.
O pessoal que está jantando cai na gargalhada. O próprio Caetano ri.
- Com tudo isto, posso dizer que eu, pessoalmente, me sinto beneficiado intelectualmente. Mas você está perguntando se houve prejuízos em têrmos materiais? Olha, certas emprêsas se assustam com coisas novas mas no fim até o susto é rendável. Como nos Estados Unidos se vendem abrigos atômicos atapetados, e na França houve uma companhia que lançou um disco com Sartre e Cohn-Bendit, falando durante a revolução de maio. Tudo se vende. Outro dia eu soube que a Philips juntou, no mesmo compacto que eu canto É Proibido Proibir, a gravação de tudo aquilo que falei no TUCA. Para mim, êste Festival foi uma vitória. Tá entendendo como é?
Caetano levanta e vai se sentar na mesa de pingue-pongue, no centro da sala de jantar. Sua comida está na mesa.
- Olha, eu estou falando muito. Mas é que eu não sei falar só um pouquinho. Na quinta-feira, à tarde, eu dou entrevista coletiva no Rio e respondo a tudo mais que você quiser. Por enquanto não posso dizer mais nada.
Daí em diante, Caetano passa a não responder às perguntas mais polêmicas. Não explica as críticas que fêz ao compositor Maranhão nem comenta a festa da vitória que Geraldo Vandré, Sérgio Ricardo, César Roldão Vieira e Maranhão fizeram segunda-feira, no cinema Belas-Artes, em São Paulo.
O assunto agora é vaia e sobre isso Caetano não nega resposta. Toma um pouco de sopa e diz:
- O que eu acho da vaia? Não acho nada. É uma coisa que se pode fazer, entre outras tantas. Uma vaia dependendo das circunstâncias, pode ter um significado completamente diferente da outra.
Um outro tipo de festival
Todos os jornais noticiaram que Caetano havia declarado que não participará mais de festivais. Mas sua resposta "não foi bem essa."
- Eu disse apenas que não tenho obrigação nenhuma de participar ou não de festivais. Posso participar, como posso não participar. O que é certo é que neste Festival da Canção eu não me apresento. Para mim chega.
No festival da Recorde, que será em novembro, êle inscreveu há alguns meses a música Divino, Maravilhoso, feita de parceria com Gil e que será interpretada por Gal Costa.
Caetano acabou de tomar a sopa e pega um cigarro. Dedé se aproxima e insiste para que êle coma a lasanha.
- Não, eu não gosto de comida italiana.
- Então come o bife que eu mandei fazer para você, tá? Você nem almoçou.
São nove horas da noite. Êle come um pouco sem vontade. Depois, acende um cigarro e explica o motivo de suas roupas diferentes.
- Existe em todo mundo um compromisso com a roupa. Por exemplo, um bancário vai para o trabalho de terno e gravata. Mas cada um dá seu toque pessoal na roupa. E êsse toque pode ser uma gravata diferente ou simplesmente ir de bege, enquanto todos os colegas vão de cinza. A minha profissão é cantar na televisão, gravar, dar entrevistas. Existe uma certa roupa codificada para cada tipo. Para o palco, tem que ser roupas brilhantes que chamem a atenção do público. A simplicidade pode ser também a maior extravagância em cena. Mas acontece que eu quero dizer: olha, estamos aqui no palco, representando, com roupas de plástico e tudo, somos artistas.