Dostoievski, Ariano e a Pernambucália (1999)
No final da longa, entusiasmante e cansativa excursão que acabei de fazer pelo Brasil, li, num avião, um artigo de Ariano Suassuna em que o refrão surrealista "É proibido proibir", usado por mim em uma canção de 1968, é interpretado como um argumento ateísta do tropicalismo, sendo por isso equivalente a um suposto "princípio amoral" que Sartre teria extraído da frase de Ivan Karamazov: “Se Deus não existe, tudo é permitido". Ariano dizia no artigo que ele próprio, superando a ilusão juvenil de "desvencilhar-se de Deus", tinha, ao contrário de Sartre, aprendido com a famosa frase dostoievskiana a seguinte lição: "Vejo que nem tudo é permitido, então Deus existe". Contava também que, num debate realizado no Recife, ele sugerira a "hipótese de um sujeito sair por aí atirando em travestis e homossexuais" como argumento contra a presunção de um "seguidor do lema 'É proibido proibir’", de que este se fundamentava numa "ética libertária do prazer", pois, se o assassino declarasse que agia assim por prazer, nós nos veríamos proibidos de proibir seus atos.
No avião, pensei em responder. Ao chegar em casa, a fadiga e a alegria me livraram até da lembrança do artigo. Mas aí João Cabral morreu, eu fiquei muito abalado, surgiram as revelações de uma suposta conversão religiosa do poeta ao morrer, Tom Zé escreveu sobre a bossa nova e eu voltei a pensar na conversa de Ariano.
A antipatia de Ariano Suassuna pelo tropicalismo é notória, mas, talvez porque nunca tivesse sido correspondida, nunca me levou a querer ou precisar reagir publicamente. Sempre pensei nele com respeito e carinho. Sou grato ao homem que escreveu o Auto da compadecida, e quando li, de volta do exílio, O romance da pedra do reino, lancei um sorriso cúmplice ao autor que, como eu, via no mito de d. Sebastião uma força oculta do Brasil fundando-se, e não outra prova do nosso ridículo embora estivesse claro que ele e eu nos situávamos nos extremos opostos do âmbito desse mito (e eu disse a José Almino, comentando o livro: "Prefiro Deus e o Diabo na terra do sol"). Mas agora uma resposta clara se faz necessária.
Em primeiro lugar, eu posso dizer que sou ateu, mas não se pode dizer que o tropicalismo o seja. Na noite da apresentação de "É proibido proibir", eu entrei no palco gritando "Deus está solto" e, no meio da canção, declamei o "D. Sebastião", de Fernando Pessoa (o que fiz também na gravação da canção para disco). Gil tornava-se cada vez mais esotérico, e eu próprio vivi a virada tropicalista como sendo, entre outras coisas, uma volta às questões que dizem respeito à religião, sobretudo porque eu acreditava então estar a religiosidade tão reprimida (pelos dogmas da esquerda superficial que imperava no ambiente da música popular) quanto a sexualidade.
Mas o refrão "É proibido proibir" não carece dessas ressalvas. Ele simplesmente não pode ser tomado por outra coisa que não um paradoxo irreverente, a menos que se parta de uma atitude intelectualmente desonesta. De qualquer forma, mesmo que, pérfida ou ingenuamente, tentemos tomá-lo ao pé da letra (mas como, se ele é uma letra que emenda o pé na cabeça e não pára de girar?), da idéia de proibir todas as proibições não se deduz necessariamente ateísmo. Ao contrário, se tivermos coragem de pensar como Sartre, é a responsabilidade moral do homem que implica a impossibilidade de Deus. Tudo bem, Sartre está fora de moda, mas é espantoso que um autor tão erudito como Ariano o desconheça tanto, ou o entenda tão mal. De fato, num texto escrito durante a guerra, Sartre desenvolve uma argumentação em torno da questão da moral, em que se lê: “O homem encontra por toda parte a projeção de si mesmo, tudo o que encontra é a sua projeção. A esse respeito, o que podemos dizer de mais definitivo sobre uma moral sem Deus é que toda moral é humana, mesmo a moral teológica". Quando cita diretamente a frase de Ivan é para observar: "Dostoievski escreveu: 'Se Deus não existe, tudo é permitido. É o grande erro da transcendência. Quer Deus exista ou não, a moral é um assunto 'entre homens', no qual Deus não mete o bedelho. A existência da moral, na verdade, longe de provar a existência de Deus, mantém-na a distância".
Isso quer dizer que os valores morais são responsabilidade dos homens, mesmo quando eles os atribuem a Deus (acerca de quem, aliás, há pelo menos tantas divergências de opinião quanto as há a respeito de normas laicas, pagãs ou profanas). O homem primeiro decidiu reprovar o assassinato e depois botou o “Não matarás" na boca de Deus. “Nun- ca temos desculpas" é a conclusão de Sartre quanto ao sentido de nossa liberdade e de nossa responsabilidade moral. É um dos meus textos favoritos a respeito do assunto. Como é que eu vou admitir que Ariano reduza a posição de Sartre a um irresponsável vale-tudo, ainda mais quando o quer ligar ao "É proibido proibir" que minha canção tomou dos estudantes parisienses, os quais, por sua vez, o tinham tomado dos surrealistas? Então Deus existe porque Ariano vê que nem tudo é permitido?
Que diabo de lógica é essa? É a mesma que o deixa à vontade para tomar como universal a certeza de que toda moral deduz-se da idéia de um Deus único e absoluto. Isso simplesmente é uma agressão à história e à razão. Antes do surgimento do Deus de Moisés e de Abraão, o homem já desenvolvera normas morais. E quanto ao ato de matar homossexuais simplesmente por serem homossexuais, no Ocidente não se poderia sequer imaginar tal coisa antes que Roma adotasse o Deus único dos cristãos. A frase "É proibido proibir" é uma deliberada transgressão das leis da lógica que, com sua carga de humor e poesia, não atrapalha os verdadeiros amantes da razão.
O raciocínio de Ariano é um ataque insidioso contra a razão e a lógica. Imagino a cena do debate no Recife. O tropicalista pernambucano (talvez um pupilo do meu muito querido Jomard Muniz de Britto?) dizendo a Ariano que uma "ética do prazer" fundamenta a frase “É proibido proibir", e ele vindo com aquela história do sujeito que sai atirando em travestis e homossexuais e do tropicalista impedido de proibir essa matança. Quando se terá dado tal debate? Em 1968? Em 1986? Em 1995? O fato é que Ariano está até hoje certo de que dele saiu vitorioso. Mas mesmo o silêncio atônito do tropicalista representaria, a meus olhos, uma vitória esmagadora deste sobre ele. Porque: é proibido proibir o meu amigo tropicalista de proibir que alguém mate homossexuais só porque o meu amigo tropicalista diz que é proibido proibir. Ou seja, a frase não serve para argumentações racionais. É uma boutade libertária que começa justamente por desrespeitar a racionalidade (neste particular, aliás, ela mais se aproxima das fórmulas místicas e profissões de fé religiosa do que das argumentações sartrianas: está mais para o “se Deus não existe, tudo é permitido" do que para "a liberdade é liberdade de escolher, mas não de não escolher", de O ser e o nada).
Podemos fazê-la parar de girar onde quisermos. Os surrealistas, os garotos do maio francês e os tropicalistas brasileiros nunca quisemos fazê-la parar. Mas, se fosse o caso de ter de fazê-lo, eu tomaria como definitiva a proibição de proibir alguém de proibir o assassinato gratuito de travestis e homossexuais. Porque o prazer destes não representa, em princípio, a destruição da vida ou da liberdade dos outros, enquanto o prazer do assassino imaginado por Ariano nasce exata e exclusivamente disso. Prefiro continuar crendo que Ariano jamais desejou nada semelhante a tais crimes. Mas por que a escolha do exemplo? Certamente ele partiu da pressuposição de que o tropicalista tivesse uma simpatia por travestis e homossexuais de que ele não partilhava. (Aliás, lembro de um episódio em que Ariano conseguiu que se proibisse a representação da Compadecida com um homem travestido no papel da Virgem, o que, na época, me fez pensar em quão pouco coerente com o amor ao “teatro clássico" era essa intolerância com atores travestidos...) Assim, o debate foi conduzido com má-fé. Em vez de discutir sua discussão verdadeira – isto é: se os homossexuais enquanto tais são dignos de irrestrita aprovação moral –, o tropicalista pernambucano se viu levado a discutir a lógica de uma frase que foi criada como exercício de destruição da própria lógica. Se digo que sua verdadeira discussão seria aquela, é por causa do exemplo escolhido por Ariano. Mas igualmente verdadeiro e seu seria discutir com Ariano se a afirmação cultural do Brasil reduz-se mesmo ao programa algo kitsch de estilização bairrista da arte folclórica do Nordeste como forma de restauração do medievo ibérico. Porque o verdadeiro opositor do dogma armorial é o natural rigor da bossa nova.
Tom Zé está certo. O valor do tropicalismo se resume a sua coragem de gritar que não podemos fugir às responsabilidades criadas por João Gilberto e Tom Jobim. Ariano fala com freqüência contra o tropicalismo, mas suas poucas palavras de desprezo pela arte de Jobim foram mais eloqüentes. Não apenas eu acho que a refinadíssima sutileza do estilo joãogilbertiano é a expressão de uma intuição profunda sobre a nossa singularidade de brasileiros reais de agora vivendo no mundo real de agora, sem perder de vista a realização do quase impossível em nós, como só de posse disso é que sou capaz de aceitar e mesmo admirar muito da produção do movimento armorial. E não porque Ariano creia em Deus e eu não creia - que João Gilberto crê talvez com mais firmeza –, mas porque o que vislumbro por trás da hipótese de o armorial (e não a bossa nova) ser o dominante ou hegemônico é um Brasil onde ódios irracionais como esse contra travestis sejam a norma e a lei oficiais. Quando grito, cada vez que se arma uma celebração retrospectiva do tropicalismo, "A luta continua", é isso que estou querendo dizer.
Caetano Veloso.
FOLHA DE S.PAULO, ILUSTRADA, 2 DE NOVEMBRO DE 1999.