Músico e escritor falam sobre "ismos"
Entrevista para a Folha de S.Paulo (29/08/1996)
Por Sérgio Dávilla
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Leia, a seguir, trechos da entrevista com o músico Caetano Veloso, autor da trilha de "Tieta", e o escritor João Ubaldo Ribeiro, um dos roteiristas do filme de Carlos Diegues.
Folha - "Tieta" é cinema novo?
Caetano Veloso - As virtudes de "Tieta" não são glauberianas.
João Ubaldo Ribeiro - É, Glauber não facilitou as coisas.
Caetano - Ele não tinha talento para fazer um cinema narrativo. O negócio dele era outro. Era menos do que isso, mas era também muito mais do que isso.
João Ubaldo - Outro dia eu vi uma imagem, não sei se de Cacá, que dizia que alguns artistas eram faróis e outros eram iluminados por esses faróis. Glauber era farol.
Folha - E Cacá Diegues, é farol ou é iluminado?
João Ubaldo - Não sei. Não vi o filme direito, quero ver de novo.
Caetano - Eu, que já tinha visto o filme várias vezes, vi também a primeira versão, que durava 3h40. Sofri muito para aceitar os cortes.
Folha - Você cortou músicas?
Caetano - Também, claro.
João Ubaldo - Isso é uma das coisas que me irritam nesse trabalho de roteirista -cortar. Eu sou romancista e me chateia escrever aquele negócio de "Entra", "Abre a porta", "Olha com ar irritado", "Fulano: 'Saia daqui, sua vaca!', dando-lhe uma banana". (Risos) Agora, Cacá é um verdadeiro Tolstói, produz um "Guerra e Paz" por dia. Mandava para minha casa uma maçaroca todo dia.
Caetano - O cinema brasileiro agora dá um passo no sentido de poder fazer filmes narrativos, com elegância de narrativa, beleza de diálogos e eficiência rítmica.
João Ubaldo - E que pegue o povo para ir ao cinema, né não?
Caetano - Exatamente. Porque o cinema se afirmou popularmente como uma arte narrativa. Naturalmente, o cinema todo não é narrativo nem deve ser, mas o cinema novo basicamente é de narrativa enigmática. Porque o cinema que foi sugerido sobretudo pelo jeito do Glauber é um cinema mais de poesia do que de prosa.
João Ubaldo - Bela distinção.
Caetano - O Ubaldo chegou aí nesse momento. Naturalmente, há trechos de boa narrativa no cinema brasileiro, mas o forte não foi esse, do cinema novo para cá foi justamente o contrário.
João Ubaldo - Bela distinção, gostei mesmo. Se você bebesse, te ofereceria várias brahmas. (Risos) Eu tenho uma tendência acentuada a ser velho caturra. Caetano não, sempre na modernidade... (Risos) É um homem do seu tempo. Eu não, sou um homem do meu tempo. (Risos)
Caetano - Mas é que música popular e cinema são show business, e você é um homem das letras. É verdade também que os cineastas têm mais respeitabilidade intelectual do que os músicos populares. (Risos) O meu gueto é terrível. O Glauber escreveu um romance, nunca vi ninguém reclamar; Chico Buarque escreveu um romance, só faltaram apedrejar. Ou seja, minha área é o esgoto da vida cultural.
João Ubaldo - Já vi várias vezes uma tentativa de colocar você "no seu lugar", escrevendo "o 'cantor' Caetano Veloso"...
Caetano - Mas como eu sou puta, minha área é de nenhum respeito, então é assim que ajo (exalta-se), vou ao "Fantástico" e dou o grito, no programa de televisão, da maneira mais desproporcional, deseducada e adequada à situação.
Folha - O cinema brasileiro renasceu com "Carlota Joaquina" e chega ao auge com "Tieta"?
Caetano - Precisamos nos desvencilhar dessa perspectiva. Isso é muito pouco. Essas forças de criatividade no cinema vêm de muito antes. Não pode ser "o cinema morreu com Collor e está renascendo". Estamos vendo o resultado do esforço geral de o brasileiro tentar fazer cinema. Não existe um país que produziu um filme como "Deus e o Diabo na Terra do Sol".
João Ubaldo - Glauber dizia assim: "João Ubaldo, a CIA quer nos impor as coisas, a CIA quer nos impor o negrismo, o viadismo, o mulherismo, que não levaram a porra nenhuma!" (Risos) Ele achava que essas reivindicações eram uma maneira insidiosa do imperialismo de transferir as lutas de classe.
Caetano - É chatíssimo esse atraso de ficar imitando os EUA e de achar que essas modas americanas têm que fazer sentido aqui. Precisamos prestar atenção às nossas próprias soluções para essas questões de raça e de sexo.
Folha - Voltando a "Tieta"...
Caetano - "Tieta" é cheio disso tudo. (Risos). Eu acho o nível das atuações altíssimo, em termos mundiais. A Marília Pêra, nesse filme, tem um momento em que a platéia fica em silêncio, aquele silêncio típico de quase medo, como se fosse uma atriz no palco.
João Ubaldo - Ninguém está chamando ninguém de Camões nem Cervantes, mas é uma coisa bonita, prova que nós somos tão competentes quanto qualquer outro povo para fazer uma coisa decente.
Folha - O merchandising do banco Real no filme não é exagerado?
Caetano - Quando você vê o super-homem cair numa Coca-Cola, quando você vê "De Volta para o Futuro", que mostra o funcionamento de uma tampa da Pepsi-Cola e o menino passa a se chamar Calvin Klein no meio do filme, ninguém reclama. O Real apareceu quando o filme ia afundar por causa do Econômico! "Tieta" não ia existir! Não, tá muito certo! Vê se americano vaia quem faz o teatro, quem faz os parques, quem bota o nome? Não, isso é viadagem.
Folha - Não é uma questão de merchandising, mas de merchandising malfeito.
Caetano - Vocês vivem nos jornais dando lição de neoliberalismo dia e noite, só falta dar porrada na cabeça da gente. Vou te dizer uma coisa: o Rio é mais bonito que São Paulo urbanisticamente porque é uma cidade que foi planejada, organizada, tratada, cuidada e mimada pelo Estado! Os cariocas que são hoje antiestatais de uma maneira imitativa são ingratos com essa realidade histórica! São Paulo é uma cidade caótica porque seguiu apenas o capital! E fica todo mundo: "O mercado, o mercado". Quando se apresenta o mercado, porrada! É incoerente! Mas isso é conversa para subintelectuais de miolo mole, que é o que nós somos, jornalistas e compositores de música popular. (Risos)
Folha - O que é, afinal, o "ipsilone" de que tanto falam no filme?
João Ubaldo - Nada. É uma brincadeira de Jorge Amado que Cacá... É uma besteira.
Caetano - Como se fosse uma posição...
João Ubaldo - Uma posição ou um ato qualquer... Eu ainda peguei um tempo em que você beijar uma moça em certas partes da anatomia era considerado uma coisa extraordinária, inaudita...
Caetano - Às vezes, uma coisa abominável, uma vergonha, quem fazia não podia dizer.
João Ubaldo - Em Itaparica ainda tem o termo "chuparino".
Caetano - É, é um xingamento.