"Não sou branco. Nem homem"
Entrevista para a Folha de S.Paulo (27/06/2001)
Por Pedro Alexandre Sanches
Clique aqui para ler a entrevista no site original.
Foto: Ana Carolina Fernandes/ Folha Imagem
Ele está afônico, depois do edema nas cordas vocais e da gripe que o acompanharam na temporada carioca do show "Noites do Norte". Vem se reacostumando à rotina da vaia, frequente no trecho do show em que canta que "só um tapinha não dói". Diz que não é branco, nem homem, em resposta a artigo publicado no "Jornal do Brasil" da última quinta-feira, em que o jornalista Eugênio Bucci caracterizava sua recente obsessão pela questão racial como ocultamento da culpa que sentiria por ser branco e homem.
Assim está Caetano Veloso às vésperas dos 59 anos e da estréia (amanhã) de seu novo show -que deve virar disco ao vivo, o quinto em dez anos- na cidade em que ele se tornou tropicalista, há 34 anos. Ainda no Rio, voltou agora a falar à imprensa de cá (que evitara no lançamento do CD) e à Folha (com que não falava havia dois anos). Leia trechos.
Folha - Você disse recentemente que tem achado tudo chato, a não ser cantar. Qual é, em 2001, sua concepção de música?
Caetano Veloso - [Rouco" Cantar sempre foi uma das coisas de que mais gostei. Adoraria ter mais musicalidade para realmente cantar muito bem. Mas justamente agora que senti uma necessidade de focar todo meu investimento de prazer no canto fiquei com um problema nas cordas vocais. Tive um edema, inflamaram duas semanas antes do show. Primeiro o médico deu uns medicamentos, depois aconselhou uma fonoaudióloga. Estreei o show com problema de corda vocal como nunca havia tido. Quando conto isso, as pessoas que viram o show se surpreendem porque julgam que estou cantando muito bem. Mas estou fazendo um esforço muito maior para conseguir muito menos do que costumo conseguir. Fui me recuperando, quando ia recomeçar nessa última semana, eu estava zerado, mas fiquei gripado. Hoje estou muito ruim. Está me dando trabalho cantar.
Folha - Há fatores psicológicos? Com toda sua experiência você ainda fica nervoso quando estréia?
Caetano - Não, nunca tive problema de voz por causa de estréia. Não digo que não haja fatores psicológicos e que a estréia não seja um elemento a mais, mas é mais coisa minha mesmo, pessoal.
Folha - A presença de seu filho Moreno em "Noites do Norte" o aproximou do rock de guitarras?
Caetano Veloso - O disco tem muita coisa a ver com Moreno. Ele está muito presente, e Pedro Sá também. Eu estava interessado em coisas técnicas em que eles, por serem jovens, estão mais inteirados que eu. Sempre trabalhei sem a menor ambição de controle do resultado sonoro. É uma pena, porque hoje há tanto interesse por meu trabalho em vários lugares do mundo e eu não tenho uma obra bem-acabada para mostrar. Era uma anarquia total, era até um modo de resistir ao "producismo" e ao "losangelismo" que estavam na moda. Para nós era assim: vamos todos para o estúdio, a turma, e lá a gente toca.
Folha - Hoje você é o contrário disso, não?
Caetano - Eu não esperava perenidade para os discos nem reconhecimento internacional. Mas os anos foram passando, e em "Velô" (84) resolvi mudar, quis fazer um disco produzido. Daí em diante foi assim. Mas queria fazer um "negocim" mais meu e então encontrei Jaques Morelenbaum.
Folha - Você se irrita quando ele é tratado como um padronizador?
Caetano - Ele é um músico de grande capacidade, não é um homogeneizador porque o que faz em cada um de meus discos e shows é sempre muito diferente. Talvez as pessoas tenham medo do alto nível e da capacidade de Jaquinho. No Brasil todo mundo se sente incompetente porque é brasileiro, parece que tem incompetência inata. No fundo é um pretexto para que a pessoa possa ser preguiçosa e irresponsável.
Folha - Fracassomania?
Caetano - Podia ser, já ouvi, Fernando Henrique adora usar essa expressão. Nunca usei. Tudo bem, por que não? Eu defendia Pelé nos anos 70 contra todos os formadores de opinião. Havia uma obrigação de ser de esquerda, de denunciar tortura. Eu achava tudo errado, você tem o luxo de produzir Pelé e ainda vai reclamar? Tem que ajoelhar na frente de Pelé. E calar a boquinha.
Folha - Você prefere a reverência à irreverência?
Caetano - Acho altamente irreverente ter coragem de realmente ser reverente com quem merece ser alvo de reverência. Agora houve um prêmio do canal Multishow, aparece uma menina, Wanessa Camargo, e a platéia vaia. Você acha que nos Estados Unidos Celine Dion vai cantar no Oscar e a platéia vai vaiar? Lá há um número enorme de pessoas da platéia que devem pensar que Celine Dion é um saco. Mas não vão vaiar, porque Celine Dion, com aquela música intragável, vendeu trilhões no mundo inteiro, e os americanos não querem destruir a capacidade deles próprios de produzirem e se afirmarem.
Folha - Mas para cada Celine Dion eles têm dez contrapontos a ela.
Caetano - Não, para cada Celine Dion eles têm 30 Celines Dion, a maioria delas preta e todas cantando muitíssimo bem. No Brasil não há. As pessoas que têm capacidade de cantar dificilmente chegam ao estrelato aqui. Só Elis Regina chegou ao estrelato de primeiro lugar. Você tem Joyce, Jane Duboc, meninas incríveis que ficam no coro o resto da vida. São carreiras injustamente falhadas. Lá, não, porque a cada antiga Celine Dion que apareceu o que falou mais alto não foi a vergonha. Quando digo que Sandy canta bem é porque ela canta. É bom que se possa criar uma indústria competente em torno disso.
Folha - Como avalia a saúde atual da indústria fonográfica daqui?
Caetano - Houve um crescimento grande do país e uma grande subida no mercado alguns anos atrás. Depois disso houve uma queda, hoje há uma possibilidade de instabilidade porque o Brasil é um país muito instável. O governo que está aí fez muitas trapalhadas, uma em cima da outra. A crise energética é inaceitável, um presidente não pode ser surpreendido por uma questão relativa a um setor de longo prazo. Está errado, é incompetência. A perda da respeitabilidade política pela liberação de verbas para os parlamentares não votarem a favor da CPI da corrupção foi algo muito malfeito. E sobre o artigo de José Arthur Giannotti na Folha, se há uma área cinza em que a moral não deve entrar, justamente essa não deveria ser dita. Não deve ser explicada como uma mostra de maior inteligência ainda. Há algo de doentio nessa superioridade errada do lado USP do PSDB.
Folha - Em entrevista à Folha em 97, você classificava como má-fé dizer que FHC pudesse ter comprado votos de parlamentares para a reeleição. Reviu aquela impressão?
Caetano - Essas tramóias e essa zona de sombra moral de que fala Giannotti de fato existem e têm que existir. Mas para existir quem faz tem que saber fazer, tem que saber mantê-la na sombra. Não basta posar de bacana. Não falo isso para dizer que tenho a mesma opinião dos críticos do governo, nem da reação popular a ele. Há uma evidente perda de perspectiva, mas até aqui a passagem de FHC pela Presidência tem um saldo positivo e uma marca positiva na história futura do Brasil.
Folha - Voltando ao mercado fonográfico, os artistas têm precisado fazer muitos discos ao vivo e de regravações para ter sucesso.
Caetano - Olha, como isso não tem impedido que discos novos com algo novo a dizer apareçam, não vejo nenhum problema. Os discos de canções regravadas são bons, porque engrossam o caldo da memória brasileira. Antigamente, no Brasil, parecia que a pessoa tinha que ir se descartando logo de si mesma. Quanto a isso, os discos ao vivo e as revisitações de repertório são de extrema positividade. Há casos que vão para um nível baixo de comercialismo e oportunismo, de aproveitamento do que é mais fácil. Mas isso é o mercado. Eu não sou o mercado, sou um artista e sou livre.
Folha - De "Prenda Minha" para o disco inédito, você perdeu nove em cada dez compradores. O mercado não o aprisiona num modelo de valorizar só o que você já foi?
Caetano - Não, de jeito nenhum. "Noites do Norte", que é um disco difícil, vendeu mais ou menos o que meus discos vendem. O caso de "Prenda Minha" é que saiu da norma. Se 150 mil chegarem a comprar "Noites do Norte" já é muita coisa, já é um disco danado. Não posso posar de coitadinho, como não sou, nem dizer que o mercado está me estrangulando.
Talvez as coisas fiquem repetitivas. Talvez não, com certeza. Mas é uma tendência natural de quem vende, fazer o que vende mais facilmente. É claro que a gravadora tem que querer isso. Seu jornal não quer que você faça de modo a que ele venda mais? Vocês não fazem coisas muito mais abjetas do que qualquer um de nós possa fazer para que o jornal venda mais?
Folha - Você pode responder em relação a seu meio, sem comparar?
Caetano - Essa comparação é que é importante. Mas a questão é que é natural que uma empresa que vende discos queira vender discos. E que, se ela descobre qual a melhor maneira de vender discos, ela vai tender a fazer isso. Nunca vi o "New York Times" dizer que Ray Charles é um imbecil. Abro a Folha e vejo dizerem isso de mim e de Chico Buarque.
Folha - Que são imbecis?
Caetano - Praticamente. Só falta xingar a mãe da gente. O artigo sobre o disco de Chico falava mais de mim que dele. Era desrespeitoso, ofensivo, horrendo.
Folha - Você é orientado pela culpa por ser branco e homem, como afirmou texto do "JB"?
Caetano - Não sou branco. Nem sou homem. O artigo é confuso, mas me fez bem, porque tratou com muito amor o show. A questão racial é crucial para mim. O movimento negro, sob influência dos americanos, trouxe muitas coisas boas, mas também têm ameaçado muitos tesouros nossos. Essa sensação espontânea de que não se tem que pensar as pessoas como divididas racialmente é um tesouro, é algo divino, que o Brasil tem como experiência e deve ser reencontrado.
Folha - Essa postura não oculta atrás dela um homem branco, poderoso, um "senhor de escravos"?
Caetano - Joaquim Nabuco diz que cada indivíduo brasileiro é um composto de senhor e escravo. É esse composto que é nosso dever transformar em cidadão. Passando a ser cidadão, você vira alguma coisa que transcende isso.
Folha - Você tem reagido bem às vaias à música do tapinha?
Caetano - É uma centena ou duas de pessoas entre 2.000. É uma vaia danada, 200 pessoas vaiando. Me divirto um pouquinho. É surpreendente, porque havia sido cantado por Fernanda Abreu, Adriana Calcanhotto e Rita Lee, e é uma obviedade total.
Folha - As vaias de agora não vêm de você ficar intransigente na defesa de seu apreço por Sandy e congêneres e marginalizar a elite cultural que o adorava?
Caetano - Por mim... Afasto os chatos. Não quero gente chata atrás de mim.
Folha - Os chatos que pagam R$ 85 para ver seu show?
Caetano - Uma coisa não tem nada a ver com a outra, que sociologia é essa? Os dias que mais me vaiaram no Canecão foram os dos ensaios abertos, quando custava R$ 10. Era uma gente mais jovem, mais ambiciosa intelectualmente, que tem pouco dinheiro e se sente mais ameaçada por determinadas posições estéticas ou culturais. É uma vontade de dizer "eu sou mais bacana do que o resto". É do chato bacaninha que estou falando, não do burguês que tem dinheiro para pagar.
Folha - Por que em "Rock'n'Raul" você tacha Raul Seixas, que misturava repente e baião com rock, como um mero americanizado?
Caetano - Essa visão foi ele que deu. Desde a Bahia eu sabia de sua identificação imediata com o rock'n'roll e com a figura do americano. É completamente diferente do nosso pessoal. Ele às vezes conversava em inglês, teve duas mulheres americanas, andava de bota americana. Mas ao mesmo tempo era muito "baianista". Falava com sotaque carregado, só usava gírias de Salvador, isso aparecia na música. Mas pegou o pós-tropicalismo, um mundo fácil para ele quanto a isso.
Folha - Tom Zé também fez uma música sobre Raul, mas admitindo sua brasilidade, colocando-o lado a lado com Luiz Gonzaga.
Caetano - Ouvi a música do Tom Zé, vi que eles chegam ao FMI. É bacana, porque no fundo termina sendo a mesma coisa. Também entendo como enfrentamento, na minha música Raul diz "mas minha alegria, minha ironia é bem maior do que essa porcaria".