Caetano canta de Enzos a câimbras, desafia Bolsonaro e muda aposentadoria

Entrevista para o SPLASH-UOL (22 de outubro de 2021)

Por Pedro Antunes

Clique aqui para ler a entrevista no site original.

Foto: Fernando Young / Montagem: Pedro Antunes.

Caetano Veloso cogitou a aposentadoria algumas vezes. Pensou em pintar algumas telas ou até escrever contos, quem sabe. Sentiu este desejo antes do exílio para Londres, quando endureceu a ditadura militar no Brasil, em 1969, e recentemente, também.

Nestas duas oportunidades, as canções falaram mais alto e mais forte, rasgaram um caminho para fora e se tornaram discos. De 1971 veio "Transa", disco histórico. Em 2021, nasce o "Meu Coco" (Sony Music), igualmente histórico.

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Na entrevista a seguir, Caetano Veloso detalha à coluna como nasceu "Meu Coco", os rompantes de aposentadoria (e como mudou de ideia), ataca Bolsonaro (a quem chama que é pior do que "câimbra") e conta como se renovou musicalmente assistindo ao programa TVZ, do Multishow, que ouve rap, funk, trap e até sertanejo graças ao filho Zeca Veloso.

Lançado como single, "Anjos Tronchos" propôs uma ligação sonora direta entre "Meu Coco" com "Abraçaço", o último álbum da sua trilogia com a banda Cê. Pra mim, soou como se aquele mesmo eu-lírico/narrador do disco de 2012 viajasse no tempo e desse de cara com nosso mundo, 9 anos depois, extremamente mais tecnológico. E essa figura experimenta a toxicidade da web, do choque de ver "palhaços líderes macabros" no poder, enfim? A intenção era fazer a transição com este single? O que "Anjos Tronchos" indicava da narrativa geral de "Meu Coco"?

À medida que ia gravando, estava decidido a lançar a canção "Meu coco" antes, como single. Depois fiquei inclinado a lançar "Não vou deixar". Quando a turma da divulgação da Sony propôs "Anjos Tronchos" fiquei surpreso e, logo, intrigado, fascinado, querendo ver como soaria essa faixa de sonoridade Banda Cê, toda executada por Pedro Sá, no lançamento de um disco que sai quase 10 anos depois do Abraçaço. Essa sua visão de que o single é como se o eu lírico da trilogia Cê tivesse viajado no tempo termina sendo parte da resposta positiva à minha questão sobre a escolha da equipe da Sony.

Fiz a observação sobre a trilogia Cê, sobre "Meu Coco" se conectar com as músicas daquela fase, mas entre "Abraçaço" e este novo disco, você se aproximou artistica-musicalmente dos filhos, Moreno, Zeca e Tom - os dois últimos, inclusive, cresceram desde o longínquo 2012 e hoje são também artistas adultos. De que maneira aquela turnê ao lado deles e a convivência artística com as crias impactou no que ouvimos em "Meu Coco"?

A convivência com meus filhos, dentro o fora do mundo da música, impactou e impacta minha visão de mundo, minha ideia de sentido das coisas, tudo. A temporada do Ofertório foi período de grande felicidade para mim. E, embora pedidos de vários lugares do mudo para mais apresentações, segui a vontade de Moreno e Tom: já estava de muito bom tamanho a atividade da família sobre os palcos. Zeca e eu teríamos mais vontade de continuar, ir à Austrália, ao Japão, à China, voltar a algumas capitais brasileiras. Mas dei voto de minerva pelo encerramento da temporada porque vi que Mo e Tom tinham razão. Parar com o Ofertório contribuiu para que eu sentisse necessidade de fazer um disco meu. E o que veio a se "Meu Coco" se desenvolveu a partir de conversas com Zeca, que é meu conselheiro na observação do que se passa na música hoje, aqui e no mundo. Os três cantam o "Zabé" do final da canção título comigo; Moreno fez toda a percussão de candomblé de "Gilgal" e Tom toca violão comigo em "Autoacalanto".

"Meu Coco" não nasceu como um "disco pandêmico", mas como tantos outros, foi um disco gestado durante este período. Se não estivesse "preso no Rio", como escreveu no texto de apresentação do disco, como este álbum soaria. O que imaginava para ele?

Imaginava pesquisar mais com Zeca e já tinha a intenção de definir timbre e sotaque da levada de "Meu coco" a partir de gravações com os dançarinos do Balé Folclórico da Bahia. A feitura do disco começaria junto com a feitura do primeiro clipe, que seria o dessa canção. Preso no Rio, adiei tudo sem saber para quando. Demorei a voltar a ser capaz de compor. Quando retomei, sem poder começar por ir à Bahia gravar vídeos com a turma do Balé, comecei por ir ao estudiozinho que Paulinha construiu aqui em casa em 2018.

Chamei Lucas Nunes (colega da banda de Tom) para fazer o básico comigo (ele é excelente músico e sabe lidar com mesa de gravação). Não sei o que sairia de um disco que começasse por um vídeo e ideias audaciosas assim. Mas Lucas e eu começamos por gravar uma base para "Meu coco" e fomos chamando Marcio Victor, Vinicius Cantuária, Marcelo Costa pra fazer percussão, cada um de uma vez, com teste e máscara. Depois Jaquinho, Letieres e Thiago Amud. Este, como é o mais novo, merece comentário especial: o arranjo que ele escreveu para "Meu coco" tem a beleza dos textos das letras que ele escreve, das melodias e harmonias que ele estrutura e das orquestrações que ele faz para suas canções próprias canções.

Compor um álbum com a morte invisível à espreita, com a existência desse vírus da porta para fora de casa, mexeu com "Meu Coco" em qual medida?

Não poderia deixar de mexer, por indiretamente que fosse. Difícil mensurar. Mas a chegada da pandemia mudou tudo já desde o princípio.

Embora todo o contexto de pandemia, ouvir cada uma dessas músicas, principalmente pensando em "Não Vou Deixar", "Meu Coco" e "Sem Samba Não Dá", nos dá uma sensação de otimismo. É um álbum otimista em meio ao caos

Há meu otimismo programático, que é parte da luta contra o vício da irresponsabilidade que nós brasileiros cultivamos já há tempo demais.

"Superaremos cãimbras, furúnculos, ínguas...", diz "Meu Coco". Alguns deles é o presidente? Ou é pior que um incômodo furúnculo?

O presidente que nós temos é o pior que poderíamos imaginar. Mas ele é parte da cãimbra que nosso corpo histórico-social sofre. "Não vou deixar" é o que diz a voz de pessoas como Fernanda Montenegro.

O verso final de "Enzo Gabriel" diz: "Mas já verás o que é nasceres no Brasil." E, em um exercício de imaginação maluco, o que estão vendo esses meninos nascidos no Brasil de 2018/2019?

Essa pergunta, com um compromisso salvacionista, é feita num tom de melancolia que só não é irônica por causa do tom grave e enfático da sanfona de Mestrinho no solo. É uma pergunta mesmo. O que fará daqui a 18 anos um bando de meninos que receberam esse nome agora? O que fará um ou o que farão uns dentre eles?

Sinto este como um disco acolhedor. De abraços, mesmo. De trazer para a roda gente da nova geração, de Duda Beat, Anavitória à Marília Mendonça e Simone e Simaria, de unir filhos, netos e toda a grande prole. Sou um grande defensor da nova geração de artistas brasileiros, do pop ao funk - e por vezes apanho dos "conservadores musicais" que dizem que a música brasileira boa acabou nos anos 70. Qual é a intenção de trazer essa geração para os holofotes?

Vejo muito TVZ no Multishow. Ouço funk e trap e sertanejos também com Zeca no smartphone dele. Ao escrever "Sem samba não dá" para Pretinho da Serrinha (ele tinha me perguntado se não haveria um samba no meu novo disco), deixei os nomes virem à cabeça sem pensar antes. Sou tropicalista. Em 1967 comecei a precisar detectar os sinais de vitalidade que viessem da cultura de massas e lutei contra o preconceito contra áreas de expressão que eram desqualificadas por julgadores sub-sofisticados. O que me chamou a atenção ao ouvir a lista que canto foi que, entre os sertanejos, preferi as mulheres. Não que eu não admire algumas duplas masculinas (e que Zeca não me mostre coisas fascinantes cantadas por homens), mas, deixando a cabeça solta, foram as mulheres que se impuseram. Mas o disco como um todo não celebra só o que aparece no TVZ: Thiago Amud e Chico Buarque são cruciais. Um é citado apenas na ficha técnica da canção que abre o disco; o outro, em algumas canções. Mas tem que se saber deles pra se entender a presença de Glória Groove ou Duda Beat. Bem, adoro que Simone e Simaria sejam baianas. Canção tem mesmo a ver com quantidade e intensidade.

Ao mesmo tempo em que "Meu Coco" cita estes novos artistas, também temos um encontro com heranças nele, não é? Tem Portugal e candomblé. Tem Milton Nascimento, Gilberto Gil, Gal Costa, João Gilberto. É também uma passagem de bastão, de conectar gerações, de alguma maneira? 

Portugal e candomblé. Sem isso, não dá para começar. E eu sempre gostei do clima de congraçamento dos criadores de música popular do Brasil. Volta e meia ele se sobrepõe à competição. Chico aparece (não é a primeira vez) como o signo/síntese da nossa força cultural. Tudo embarcará na arca de Zumbi e Zabé.

O texto de apresentação do álbum começa com essa frase que, pra mim, é tão humanamente linda. "Muitas vezes sinto que já fiz canções demais." Em algum momento você pensou que talvez fosse hora de parar de fazer canções? Você imaginaria como seria, realmente, aposentar-se desse ofício de fazedor de canções? 

Muitas vezes na vida. Quis deixar de fazer canções para fazer filmes ou escrever. Voltar a pintar? Pensei pouco. No tropicalismo, cheguei a me decidir a concluir algumas contribuições e deixar de lado a canção. Mas veio a prisão e o exílio e eu me senti muito mais fraco do que me sentia antes. A canção era mais forte do que eu e tornou-se forte demais na definição do meu futuro. Agora eu tinha pensado em não compor quase mais nada. Terminei fazendo meu primeiro álbum só de composições minhas, letras e músicas.

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