Caetano necessário: cantor e compositor baiano se mantém contemporâneo
Entrevista para o Correio Braziliense (30 de outubro de 2021)
Por Irlam Rocha Lima
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Foto: Fernando Young
Caetano Veloso tinha acabado de gravar um disco, acompanhado pelo clarinetista baiano Ivan Sacerdote. Para lançá-lo, se apresentou em 8 e 9 de fevereiro de 2020, no Teatro Castro Alves, em Salvador. O show seria o ponto de partida de uma turnê que eles fariam por várias capitais brasileiras, inclusive Brasília. Com o advento da pandemia, o projeto foi cancelado. Logo depois, de volta ao Rio de Janeiro, o eterno tropicalista não perdeu tempo e, durante a prolongada quarentena, passou a compor canções, pensando num novo trabalho.
No estúdio que a mulher e empresária, Paula Lavigne, mandou construir em sua casa, na Avenida Niemeyer, na Zona Sul carioca começou a trabalhar. Neste processo em que teve ao seu lado Lucas Nunes, guitarrista da banda Dônica (da qual faz parte Tom Veloso, filho do compositor), e que durou alguns meses, emergiu Meu coco, álbum de 12 faixas — o primeiro de composições inéditas, desde Abraçaço, de 2012 — cujas letras, de alguma forma, refletem a pluralidade e a beleza do país, mesmo num momento difícil de grandes dificuldades.
Uma das primeiras músicas a ser criada foi Autoacalanto, feita para o neto Benjamim, filho de Tom. E foram surgindo outras tantos como Ciclamem do Líbano, Cobre, Enzo Gabriel, GilGal e, obviamente, a faixa título — um samba, a bela canção romântica Cobre, o funk Não vou deixar e o fado Você, que tem a participação da cantora portuguesa Carminho e do bandolinista brasiliense Hamilton de Holanda. A elas se juntam Noite de cristal, gravada por Maria Bethânia em 1988; e Pardo, faixa do novo CD de Céu.
Todas foram gravadas no primeiro semestre deste ano, contando com a participação de instrumentistas de diferentes gerações — do veterano violoncelista e arranjador Jaques Morelembaum ao jovem violinista Thiago Amud. Em Não vou deixar, veemente, Caetano, contundente manda o necessário recado: “Não vou deixar, não vou deixar, não vou deixar você esculachar com nossa história / É muito amor, é muita luta, é muito gozo / É muita dor, é muita glória”.
Como fizera em outras das suas composições, em algumas das inéditas do Meu coco, Caetano Veloso homenageia o nome de colegas de ofício, do passado e do presente; e de gêneros musicais diversos, fazendo referência a Noel Rosa, Ary Barroso, Tom Jobim, Chico Buarque, Marília Mendonça, AnaVitória, Glória Groove, Baco Exu, Djonga e Ferrugem.
Entrevista / Caetano Veloso
Até que ponto a presença do neto Benjamim em sua casa foi motivadora durante o processo de criação das canções?
Pelo menos até o ponto de eu compor e gravar Autoacalanto.
Ter ficado tanto tempo sem lançar um álbum de composições inéditas lhe provocava que tipo de sentimento?
Eu não pensava nisso. Fiz o show com meus filhos, que resultou numa turnê de cerca de dois anos (e que ainda recebe convites). Canções inéditas deles e a convivência com eles em palcos pelo mundo todo eram novidade mais do que suficiente para mim. Antes disso, fiz outra turnê internacional, com Gil, onde havia ao menos uma canção inédita: As camélias do Quilombo do Leblon. Entre Abraçaço e Meu coco, senti mais que, ao longo dos anos, tinha feito canções demais. Quase que me educava para não compor mais muitas coisas.
O fato de Meu coco ser diversificado em termos de gêneros foi algo projetado com antecedência, ou isso ocorreu de forma natural enquanto as músicas iam surgindo?
O mero fato de eu ter que adiar a feitura do disco e ficado em casa isolado, não me levou a encontros que produzissem uma banda, uma formação sonora. Também a (minha) verve de compor caiu nos primeiros meses de 2020, com a pandemia. Fui retomando aos poucos e terminei decidindo fazer o disco em casa, com Lucas Nunes, amigo de meu filho Tom. Daqui, chamamos arranjadores diferentes para orquestrar canções. E as canções também nasceram diferentes. Não eram mais tão dentro do estilo das do verão baiano. Também sou tradicionalmente um autor de coisas diversificadas, sem um gênero preponderante. Desde o tropicalismo, que meus discos exibem mais colagens do que uniformidade. Claro que Jaques Morelenbaum tem um maior número de arranjos. Ele é o mestre que colaborou comigo por décadas. Mas me orgulho também de ter chamado Thiago Amud, jovem compositor, letrista, melodista e arranjador carioca— e o grandioso baiano Letieres Leite (que faleceu recentemente). Sem falar nas percussões de Márcio Victor, Vinicius Cantuária e Marcelo Costa. Tem os tambores do candomblé tocados por meu filho Moreno em GilGal, amparando a minha voz e a voz divina de Dora Morelenbaum.
O convite para Lucas Nunes, da Dônica, para trabalhar com você na produção foi por causa dos conhecimentos técnicos ou da musicalidade dele?
Da combinação das duas coisas. Ele é da turma de Dora, Tom, Zé Ibarra, Julia Mestre. Turma novíssima de grande brilho musical.
No disco você cita, em tom de homenagem, vários colegas de ofício, de diferentes gerações e estilos. É uma forma de reforçar todo o espectro da música brasileira?
Um amigo me disse que o disco deveria se chamar Nomes, Nomes. Achei engraçado e pertinente. Nomes são um tema meu de há muito. Clever boy samba, que compus em Salvador antes de Coração vagabundo ou De manhã, tinha Brigitte, Belmondo, João Gilberto, Orlandivo... Agora, eu deixei vir à tona os nomes que passaram por meu coco. Não é uma escolha pensada. Ouço coisas diversas, vejo TVZ, além de ter na cuca todos os Arys e Noéis e Caymmis, os Pixiguinhas e Jorge Bens, Djavans. E registrar uma peculiar centralidade de Chico em minha geração.
Na condição de vovô, é contundente ao criticar, utilizando a letra do rap Não vou deixar, os desmandos que ocorrem no país atualmente. A crítica é direcionada a alguém especificamente?
A quem nos oprime.
Seu gosto pela canção popular o acompanha desde sempre, ou se acentuou de uns tempos para cá?
Meu gosto pela canção popular está comigo desde que eu me entendo por gente. Pequeno, eu já sabia cantar tudo o que ouvia no rádio. Fiquei foi amarrado profissionalmente a ela. O que pra mim é uma sorte. Meu talento é limitado, se comparado a colegas meus, mas a vocação é forte.
Que contribuição deu ao disco a Hamilton de Holanda, músico formado pelo Clube do Choro de Brasília, ao acompanhá-lo tocando bandolim, como se fosse guitarra portuguesa, no fado Você-Você, com a participação de Carminho?
Hamilton deu contribuição imensa. Grande músico, ele tratou o violão base que eu apresentei como guia para o que ele fizesse com tão grande cuidado e inspiração que tudo o que eu tinha feito ali foi salvo e enriquecido pelo talento dele. Minha decisão de chamá-lo, em vez de um guitarrista lusitano de fado, tornou a canção mais bonita e mais profunda. Hamilton é um dos maiores músicos do Brasil. De agora e de sempre.
Você chegou a estrear o show de lançamento do disco com o clarinetista Ivan Sacerdote, no Teatro Castro Alves, em fevereiro de 2020, que daria início turnê nacional, mas foi impedido por conta da pandemia covid 19. Vai haver turnê do Meu coco?
Acho que agora terei de pensar em apresentar um show referente ao disco Meu coco. Ainda não sei como será. Há formações diversas no disco. Até o ano que vem, devo achar o jeito de levar algo do novo repertório aos palcos.
Da angústia à reflexão
O Brasil e o brasileiro estão sob análise. A dicotomia de pensamento tem limitado as discussões e reflexões, muitas vezes mostrando o pior que o ser humano traz em seu caráter. Há uma secessão que marginaliza os que pensam de maneira independente e que está provocando uma nova visão da nossa gente, enterrando a imagem da alegada índole pacífica.
E onde entra Caetano Veloso nessa história? Polemista, com opinião sobre tudo e uma visão única da paisagem social e política, o compositor está de volta — nove anos depois — com um punhado de canções próprias que, sim, têm influência do período de recolhimento forçado, mas que antes de tudo são reflexões bem mais amplas.
Meu coco é a faixa que dá título ao disco e que funciona com espécie de fio condutor para o que vem em seguida, puxando uma fieira de sacadas. A miscigenação das diversas combinações de raças, conceito já condenado pela ciência, funciona como fator de união do país. A melodia é caótica, apressada, transgressora; tem tempos diferentes, com um arranjo que remete aos tempos de Rogério Duprat.
Em Anjos tronchos ele reflete sobre a condição da dependência das novas tecnologias e o domínio de candidatos a tiranetes e/ou tarados argentários. “Anjos já mi ou bi ou trilionários/ Comandam só seus mi, bi, trilhões/ E nós, quando não somos otários/ Ouvimos Shoenberg, Webern, Cage, canções”, canta na música lançada antes como single.
A miscigenação racial se encontra com a mistura de ritmos, gêneros e estéticas musicais em Sem samba não dá, em que o compositor iguala manifestações sem qualquer preconceito, enfileirando artistas. É um disco de observação, com versos de qualidade, arranjos impecáveis e melodias fluidas que superam até a falta de rima e não obedecem a cânones consagrados das canções — ou seja, não é um disco para tocar no rádio.
É um Caetano inquieto, um artista que ainda tem necessidade de expor seus pontos de vista e que o faz de maneira forte, criativa e provocadora. E sempre ligado à sua época, mas ainda desafinando os coros colocados nos cantos do ringue, trocando a angústia pela reflexão.