Caetano: ‘Sou um liberal de extrema esquerda’

Entrevista para o Jornal O Globo (12/06/2007)

Por João Paulo Cuenca

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No outro lado do mundo, um amigo japonês me mostra orgulhosamente seus discos na estante: tem todos do Caetano. Coloco o “Transa” na vitrola e passamos horas conversando sobre as diversas e profícuas fases do “Veroso”. No dia seguinte, tomo café numa biboca em Ikebukuro e quem canta “Nature boy” no som ambiente? Caetano. Nas lojas de disco em Tóquio, vejo em destaque seu último álbum, “Cê”, cuja turnê será imortalizada em DVD nesta terça-feira, aqui, no outro lado doutro mundo, na Fundição Progresso, Lapa, Rio, a partir das 22h30m (o ingresso custa R$ 25, com carteirinha).

Assim que botei os pés no Rio, recém-chegado do Japão onde João Gilberto e Caetano Veloso são mais famosos do que Pelé e Garrincha, a pedido da Megazine redigi estas perguntas ao homem-ícone que foi Caetano, é Caetano e será Caetano, ainda que os três, às vezes, sejam bastante diferentes, mas ainda assim caetanos como só Caetano pode ser — e para sempre será.

JOÃO PAULO CUENCA: Estive num dos antológicos shows do “Cê”, no Circo Voador, e observei que a média de idade do público presente se aproximava da sua quando lançou o “Transa”, em 1972. Pude ouvir, inclusive, algumas desavisadas senhorinhas reclamando da juventude da audiência, e também do volume da guitarra e da “crueza” das canções. Como você vê este reencontro com um público mais jovem — e o conseqüente possível afastamento das senhorinhas?

CAETANO VELOSO: No Circo Voador, o público era mesmo predominantemente jovem. Mas isso foi por ser no Circo Voador. Nas casas de show convencionais, tinha mais gente de meia-idade (e da minha idade), embora, como sempre, houvesse um número considerável de gente moça. Conheço algumas pessoas mais velhas que estranharam esses aspectos do novo som e do novo repertório. Mas são poucas. E tem muito jovem fã de rock que não quer ir me ver, nem assim nem assado. Quando fiz o disco, teve quem me dissesse que eu podia ganhar a garotada — e teve quem me dissesse que eu podia perder parte do público que tenho, de qualquer idade. Acreditei mais na segunda hipótese. Mas, ao fim e ao cabo, acho que não houve mudança substancial.

CUENCA: A partir de que momento você decidiu formar essa banda, seguindo a direção musical e a poética rock que veio a desaguar no “Cê”? Esta guinada deu-se por influência estética, mo(vi)mento existencial ou os dois?

CAETANO: É sempre um movimento natural, resultado de fatores diversos. “Cê” começa no “Noites do Norte” (“Rock‘n’Raul”, “Ia”) e no “A foreign sound” (“Come as you are”, “Nature boy”), onde estão as primeiras colaborações com (o guitarrista) Pedro Sá com características de novo som de banda. Eu vinha conversando com Pedro sobre rock e invenção e chegamos a planejar fazer um disco de uma nova banda de rock brasileira, sem meu nome e sem que minha voz fosse reconhecível. Depois, decidi fazer um disco com minha cara, mas mantendo algo da idéia de criação de uma nova banda de rock. As canções precisavam ser minimamente adequadas a isso. Acho que criamos, com Marcelo (Callado, baterista) e Ricardo (Dias Gomes, baixista), uma banda relevante no cenário rock brasileiro atual. E eu, seguindo um conselho de Moreno (Veloso, filho de Caetano), cantei de modo a ser bem identificável. Isso resulta bonito no show porque os arranjos não embolam com a voz, são contrapontos que soam rock e me deixam cantar relaxado.

CUENCA: Pergunta protocolar: você pode adiantar alguma “surpresa” no set list?

CAETANO: Tenho cantado algumas músicas que são surpresa até para a banda nos bis dos meus shows.

CUENCA: Num movimento circular, o bairro da Lapa no último século se reinventou algumas vezes e hoje em dia é o epicentro de certa boemia carioca que se reúne em torno de novos grupos de samba, choro e rock. A escolha da Fundição para a gravação do DVD tem relação com este clima ou estou fazendo ilações fantasiosas?

CAETANO: Para mim, tem tudo a ver. Amo a Lapa e o que acontece lá hoje. É muito bonito que ali seja, como você diz, um lugar de samba, choro e rock.

CUENCA: “Cê” abre dizendo que “você não vai me reconhecer quando eu passar por você”. Você, como Dylan ou Bowie, acredita que o artista deve ter a liberdade de trair o público? Aos 64, dá gosto ir contra o que esperam?

CAETANO: Nunca pensei em termos de “trair”. Mas acho que o artista não deve procurar ser o que o público pensa que ele é.

CUENCA: Sobre o seu processo criativo: você pode falar um pouco sobre como as letras e canções de “Cê” chegaram a você? O que tem te inspirado recentemente?

CAETANO: Faço as canções que posso fazer. Desta vez, compus pensando no que a banda faria. Esboçava no violão. As letras vieram do desejo de criar textos curtos, mas intensos. Experiências da vida e observação da realidade deram os temas. Já disse que todas as minhas músicas são autobiográficas: mesmo as que não são, são. Quando canto “odeio você”, estou mostrando que entendo melhor agora como o ódio é a outra face do amor. Muitas imagens físicas vêm de memórias recentes e muito vivas (os golfinhos, as cores, as pessoas). Outras (como em “Um sonho”) vêm da fantasia. “Rocks” é claramente um comentário com humor sobre eu estar formando uma banda com pinta roqueira. E o desaforo “você foi mor rata comigo”, uma homenagem à linguagem do meu filho Zeca e seus amigos de 15 anos. Ecoa, com graça, os temas de uma separação, mas não é, em nenhuma medida, um complemento do diálogo da minha separação real. Isso também acontece em “Outro”. Mas “Não me arrependo” e “Waly Salomão” se referem diretamente a fatos concretos.

CUENCA: Como você se posiciona politicamente num mundo cada vez mais polarizado entre cada vez menos disfarçados reacionários de esquerda e de direita? Aliás, esta pergunta puxa outra: é necessário se posicionar?

CAETANO: Nunca achei necessário para um artista tomar posição política. Se você ouve um disco de Baden (Powell) tocando violão você não pergunta se ele é de direita ou de esquerda. Não sei se Ella Fitzgerald votava democrata ou republicano. Mas sou de uma geração que se acostumou a expor suas idéias políticas. De minha parte, exponho as minhas com todas as confusões, complicações e ingenuidades esperáveis de um temperamento artístico. Assim, sou um liberal de extrema esquerda, um ateu místico, um individualista que ama a sociedade e um irracionalista apaixonado pela razão.

CUENCA: Em 1969, você saiu do país como exilado político. Hoje em dia, entre os jovens que saem do Brasil, o exílio é de outra natureza. Seja econômico ou existencial, fato é que muitos abandonam a terra natal por desesperança pura e simples. Qual seria seu recado aos que partem acreditando que “a única saída para o Brasil é o Galeão”?

CAETANO: O Galeão é que não é: tem que ser Guarulhos. É Cumbica e não Tom Jobim. Os vôos para o mundo partem de Sampa. O Brasil é um país grande, sempre foi ensimesmado. Não acreditávamos no mundo exterior. Os exilados econômicos e existenciais quebraram essa máscara, nos fizeram ver o Brasil como parte de um mundo real. O problema do Brasil não é de esperança: é de responsabilidade. Sentindo-nos no meio de uma realidade mundial — como periferia econômica e cultural, como parte de uma historia maior e complicada — podemos talvez melhor assumir o gesto bonito que temos a oportunidade de fazer: reequilibrar os hemisférios, abolir o conceito de raça, destruir a hipocrisia sexual, fazer justiça sem lançar mão da guerra, pensar o bem comum a partir da liberdade.

CUENCA: Você acha que, quase quarenta anos depois do seu histórico discurso no Festival Internacional da Canção em 1968, a juventude continua “não entendendo nada, nada, nada, absolutamente nada”? Estou pessimista demais, ou a imbecilidade continua reinando no Brasil? Eles, que “estão por fora”, tomaram a dianteira?

CAETANO: A imbecilidade é mais visível na Fox News do que no Brasil. Mas não há pessimismo que esteja à altura da crueldade nas favelas, da corrupção no poder oficial, das pequenas ditaduras que se armam e perpetuam em toda parte. A questão não é se “eles” tomaram a dianteira. É se vamos fazer o Brasil mudar tanto quanto precisa para tornar-se o que é.

CUENCA: Qual o livro que você vai ler e o disco que você vai ouvir quando terminar de responder essas chatíssimas perguntas?

CAETANO: As perguntas não foram chatíssimas. Vou me deitar e continuar lendo “My life in CIA”, de Harry Mathews, alem de reler uns capitulos de “Trabalhos de amor perdidos”, de Jorge Furtado — livro que todo o mundo devia ler. Quando acordar, vou pôr no toca-CD o disco do Animal Colective que comprei hoje.

CUENCA: Por fim, Caetano: como você está se sentindo agora? É possível ser um brasileiro feliz em 2007?

CAETANO: Estou OK. Às vezes, até feliz por uns bons minutos. O fato de ser ou não brasileiro não determina a capacidade de felicidade de uma pessoa. Apesar do mito mundial a respeito da nossa alegria (quando eu era menino, eu juro, todos estavamos convencidos de que eramos um povo triste — e ficávamos muito contentes com isso: os estrangeiros que hoje nos acham alegres não nos viam e eu acho que é por isso que Maiakovski imaginou aquele cara). Para terminar esse assunto, cito Bob Dylan: “A felicidade não está entre as minhas prioridades”.

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