Caetano Veloso ataca Bolsonaro e celebra amores carnais em seu novo álbum
Entrevista para a Folha de S.Paulo (22 de outubro de 2021)
por Claudio Leal
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Foto: Rodrigo Sombra. |
João Gilberto surge no centro do enigma de "Meu Coco", o novo álbum do compositor Caetano Veloso, disponível nas plataformas digitais. Em 1971, então exilado em Londres, Caetano regressou ao Brasil a convite do gênio da bossa nova para gravar um programa na TV Tupi junto com Gal Costa. No hotel, João falou do Brasil em tom poético. "Nós somos diferentes, Caîtas. Nós somos chineses."
Assumida pelo músico como "nave-mãe" do disco, o ponto de partida das demais canções, "Meu Coco" absorveu a frase enigmática de seu mestre. "João Gilberto falou/ E no meu coco ficou/ Quem é, quem és e quem sou?:/ ‘Somos chineses’."
O álbum dobra a aposta do tropicalista no país e encontra nos mitos nacionais e na formação negro-luso-indígena as razões de seu otimismo com essa espécie de China tropical. "O disco é todo de afirmação, mas está, na verdade, dentro de um momento de negação do que pode haver de bonito no Brasil", diz o músico, em entrevista pelo Zoom. "Embora não haja um tom irônico explícito no disco, a situação em si contém uma ironia."
Os quase dois anos de tristeza política e pandêmica não alteraram essa crença. "Você sabe que eu acho que o Brasil é uma oportunidade. É um país um tanto peculiar. E é muito grande. É peculiar e muito grande", ele se empolga, relembrando os momentos decisivos da mensagem brasileira ao mundo.
"Seja Pelé no futebol, no futebol que se desenvolveu naquele período em que Nelson Rodrigues viu como superação do vira-latismo. Ou a bossa nova, quando João Gilberto impressiona as pessoas nos Estados Unidos, quando Tom Jobim se torna um dos músicos mais importantes do mundo. Quando você vê Glauber chegar aos festivais da Europa e causar daquela maneira. Parecem esboços de uma coisa que o Brasil contém e que poderá, deverá fazer. Quase que uma aceitação de um dever que a oportunidade apresenta à gente."
As 12 faixas de "Meu Coco" articulam profecia, nomes —muitos nomes—, amores carnais e leituras do mundo e da cultura brasileira. Sua linha profética surge em "Meu Coco" e "Enzo Gabriel", enquanto a canção-ensaio "Anjos Tronchos" reflete sobre a ascensão macabra de "palhaços líderes" e ilumina as utopias dentro da distopia digital. Com cara de hit, "Não Vou Deixar" enfrenta o desmonte de seu projeto Brasil nos anos Bolsonaro.
As três canções românticas não se distanciam do eixo organizador do álbum. Em "Ciclâmen do Líbano", suaviza o canto árabe. A beleza negra é soberana em "Pardo" —antes gravada por Céu—, de sugestão homoerótica, e "Cobre", de "tua pele é o cobreado/ da Bahia de nós dois/ grei de escravizados e opressores/ reis do estado que virá depois".
O afeto de avô colore "Autoacalanto", dedicada a seu neto Benjamin, um alento nos meses de isolamento social. A revisão crítica de nossa cultura, uma marca de sua obra, comparece em "Gilgal" e "Sem Samba Não Dá". No meio de amores e presságios, há o fado "Você-Você", dividido com a cantora portuguesa Carminho.
A pedido de Maria Bethânia, sua irmã, "Noite de Cristal" foi cantada pelo músico numa live e agora fecha o disco. "Mas eu miro teu cristal/ e vejo e peço dias/ de outras cores,/ alegrias/ para mim/ pra o meu amor/ e meus amores".
Em Salvador, no verão anterior à pandemia da Covid-19, Caetano Veloso já entoava os versos de "Meu Coco" e se preparava para incorporar os dançarinos do Balé Folclórico da Bahia à definição de seu timbre. No Rio de Janeiro, trancado em casa por mais tempo do que o previsto, recalculou a rota inicial e entrou em estúdio acompanhado pelo músico e técnico de som Lucas Nunes, da banda Dônica. Com a guitarra de Pedro Sá e o sintetizador de Nunes, "Anjos Tronchos" é a única faixa que remete à sonoridade dos três álbuns do ciclo de "Cê".
"Anjos Tronchos" autoriza um paralelo entre seu olhar recente sobre os fenômenos tecnológicos e a velha preocupação de Gilberto Gil, seu irmão tropicalista.
"Gil tinha mais interesse por esse tema do que eu. Ele escreveu muitas coisas sobre esses negócios desde aquele período [do tropicalismo] e ao longo dos anos. E eu, não. Fiquei mais interessado agora. Foi meio surpreendente pra mim o negócio dos ‘anjos tronchos no Vale do Silício’. Não uso muito internet, não tenho smartphone, não vejo rede social, não estudo o assunto." Apesar disso, as ideias brotaram e originaram uma canção densa.
No álbum, Caetano reafirma sua visão integradora do mito negro Zumbi dos Palmares à princesa Isabel, que promoveu a abolição da escravidão, em 1888. É como se ressoasse um refrão de seu disco com Jorge Mautner, em 2002 –"Zabé come Zumbi/ Zumbi come Zabé". "Não é conciliação", ressalva o tropicalista. "É uma dialética necessária, que o Brasil tem que assumir. Zabé come Zumbi, Zumbi come Zabé. Então, o final de ‘Meu Coco’ é Zumbi com Zabé."
A colaboração de Márcio Victor, da banda de pagode Psirico, contribuiu para a força percussiva do álbum. "Eu, primeiro, não pensei necessariamente em percussão. Podia ser até eletrônico, tanto que a levada da canção ‘Meu Coco’ é dura, propositadamente dura, com um corte do riff rítmico. Eu tinha vontade de fazer um negócio que soasse estranho", diz Caetano, outra vez próximo da sonoridade de "Livro", de 1997, e "Noites do Norte", de 2000.
"Terminou a percussão tendo uma presença maior. Ficou mais parente do ‘Noites do Norte’ do que do disco mais artificioso que eu pensava em fazer antes da pandemia começar."
Caetano elogia o arranjo orquestral de "Meu Coco", assinado por Thiago Amud, compositor além de tudo afinado com o batimento sebastianista da canção. Para o disco, ele também convocou antigos colaboradores, como Vinícius Cantuária —ex-integrante de A Outra Banda da Terra, grupo que o acompanhou entre 1978 e 1983—, o maestro Jaques Morelenbaum e o baterista Marcelo Costa. Pretinho da Serrinha, presente em três faixas, então o provocou. "Mas não tem um samba em seu disco pra eu tocar?", perguntou. Da pergunta nasceu "Sem Samba Não Dá".
O fraseado de briga amorosa de "Não Vou Deixar" tem um sentido político explícito ao alvejar os retrocessos do governo Jair Bolsonaro. "Não vou deixar, não vou, não vou deixar você esculachar/ com a nossa história/ é muito amor, é muita luta, é muito gozo, é muita dor/ e muita glória."
Ao comentar a canção, Caetano expõe uma leitura diferente da ascensão da extrema direita em vários países. "O que eu vejo nisso, também, é uma demonstração de uma certa fragilidade do conservadorismo. Porque eles eram a maioria silenciosa. Não podem mais ser silenciosos, não querem mais e não podem mais. É perigoso, muita turbulência tem acontecido e acontecerá, mas uma vitória de uma atitude conservadora no mundo que seja estável não é possível".
Apoiador da candidatura presidencial de Ciro Gomes, em 2018, o músico afirma que não se sente bem com os atuais ataques do pedetista ao ex-presidente Lula. "Não me parece que venha a ser tão eficaz como ele e talvez João Santana pensem. E, depois, não me agrada a agressividade contra Lula, porque Lula é uma figura na história do Brasil que eu não consigo não admirar e não sentir afeto. Tem uma beleza nessa manifestação da maioria do povo brasileiro de querer elegê-lo."
Caetano faz, entretanto, uma ponderação. "Isso não quer dizer que a melhor coisa que poderá acontecer com o Brasil será Lula voltar à presidência. Não sei. Há um pouco de volta ao passado, gostaria que o Brasil desse passos pra frente. Mas o tom do Ciro nesse último período a mim não me agradou."
"Enzo Gabriel", o nome e a canção, enfeixa seu fascínio duradouro pelo futuro do país. "Foram batizados muitos milhares de brasileiros com esse nome ‘Enzo Gabriel’. Então eu pergunto qual será o seu papel na salvação do mundo?", ele conta. "A gente está passando por um período difícil, que nega muito tudo o que pode ser bonito numa canção ou na vida. E, quando a pergunta vem, é feita por um eu lírico que ainda está ligado à ideia de missão salvacionista do Brasil."