Caetano Veloso para o El País: seu novo álbum, Bolsonaro e como nós, uruguaios, somos

Entrevista para o El País (24 de outubro de 2021)

Por Rodrigo Guerra

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Foto: Fernando Young 

"Estou no meu quarto", diz Caetano Veloso, por e-mail, quando El País lhe pergunta como ele está se preparando para responder ao questionário que lhe veio de Montevidéu e com que música ele o está acompanhando. "Acordei e, ainda de pijama, começo a ler suas perguntas. Eu não escuto música enquanto faço outra coisa. Nem mesmo exercícios físicos. Eu só admito que os outros ouvem, se eu não estiver sozinho. Hoje em dia, com tantas entrevistas para responder e outras tarefas relacionadas ao lançamento do novo álbum, não ouvi nada."

Esse novo álbum se chama Meu Coco e é o primeiro com músicas inéditas desde Abraçaço e que estava em 2012; muito tempo. Isso nem significa que sua carreira tenha parado. Ele não parou de trabalhar e em todo esse tempo esteve, pelo menos duas vezes no Uruguai; em setembro de 2019, ele se apresentou na Antel Arena com seus filhos Moreno, Zeca e Tom e em 2015 no Velódromo com um antigo camarada, Gilberto Gil.

“Estou ciente da força da música brasileira, mesmo no interesse pela língua portuguesa no mundo", disse Veloso, que em seu novo álbum inclui uma homenagem à música de seu país, "GilGal". "Mas sem dúvida a bossa nova era e é mais importante do que a minha geração." Há muito do seu som clássico neste novo álbum, que é composto por todas as suas próprias músicas.

Aos 79 anos, Veloso é ouvido como vital do que nunca. Ele dedica uma canção de ninar ao seu neto de 19 meses e em "Enzo Gabriel", a um garoto com os dois nomes mais populares de recém-nascidos no Brasil. Há alguma aposta no futuro em tudo isso.

Sobre o novo álbum, como vê o governo de Jair Bolsonaro, Uruguai e sua vida, Veloso conversou, de pijama e por e-mail, com El País.

Em setembro de 2019, você chegou a Montevidéu para apresentar Ofertório, o show que concebeu com seus filhos. Naquela noite, na Antel Arena, fechou com um bis no qual cantou "Tonada de la luna llena", enquanto Moreno cantava "Amándote", de Jaime Roos. Como você pôde definir seu relacionamento com o Uruguai?

Quase sempre chego ao Uruguai depois de me apresentar na Argentina. O sotaque do espanhol de Montevidéu é, em um ouvido brasileiro, igual ao de Buenos Aires. Mas a diferença entre argentinos e uruguaios é muito perceptível. Eu amo a Argentina, que conheço e que foi o primeiro país hispano-americano a se interessar pela minha música. Mas quando deixo Buenos Aires e chego a Montevidéu, sentindo a doçura dos uruguaios, os argentinos parecem muito cheios de orgulho e autoridade. Enquanto os uruguaios são doces. Plateias e amizades parecem mais próximas, enquanto o nível intelectual é igualmente alto.

Meu Coco é seu primeiro álbum de músicas lançado desde Abraçaço. Em que ponto você sentiu que estava pronto para publicar essas músicas que representam tudo o que acontece em sua cabeça?

Comecei a pensar em gravar um novo álbum autoral no verão de 2019. A música "Meu Coco" veio até mim como o início do projeto. Tinha composto "Pardo" para Céu cantar e comecei novas canções. Eu disse que já escrevi músicas demais e que compor novas é um sinal de falta de rigor crítico. Mas eu amo músicas desde a infância, e amar músicas é amar a vocação para quantidade, proliferação. Senti a necessidade emocional de fazer um álbum com inéditas. E o fato é que, pela primeira vez, todas as músicas são apenas minhas, letras e melodias.

"Anjos tronchos" analisa as atrocidades e maravilhas da internet. Você acha que as redes sociais ajudaram na ascensão de líderes como Trump e Bolsonaro, e que permitiram o ressurgimento de discursos antidemocráticos?

O tom sombrio da música sublinha os aspectos negativos da revolução tecnológica que o laptop, a internet e os smartphones trouxeram. Mas a presença de consequências luminosas (como "poemas como jamais", onde a referência são os poemas concretos de Augusto de Campos; o último verso, sobre Billie Eilish fazendo sua música de seu quarto; fazendo amor tela a tela, sem pele, mostra que eu queria que a música tivesse densidade. Lembrei-me do livro de Eric Hobsbawm sobre o breve século XX, onde ele conta como a revolução iraniana liderada por Khomeini pode ser creditada à invenção da fita cassete: ele enviou cassetes de seu exílio europeu com discursos multiplicadores no Irã, em cópias fáceis de fazer e distribuir, o que criou um estado teocrático que modificou toda uma geopolítica. Mas há crianças pobres da Bahia ou de outros lugares do Brasil que dizem e fazem coisas na internet que são enriquecedoras e criativas.

Quando o entrevistei em 2019, comentou: "Sou visceralmente contra tudo o que aqueles no poder agora no Brasil dizem e fazem." Agora que a administração de Bolsonaro foi tão criticada por sua gestão pandêmica, que análise faz de seu governo?

Por um lado, há uma reação clara contra as posições do presidente brasileiro em relação à pandemia. Ele não recebe a vacina, ele vai à reunião das Nações Unidas sem se vacinar, mas quase todos os brasileiros querem se vacinar. Mesmo nos estados onde ele é mais amado. E, bem, todas as pesquisas agora mostram que ele perderia a eleição para qualquer outro candidato. O problema é que, como Trump, ele não aceita. E a democracia brasileira não tem a estrutura forte da democracia americana. Ele tem algum apoio das Forças Armadas, de quase todas as polícias militares, das milícias ilegais. Existem riscos.

Ao longo de sua carreira, você usou a música como meio de expressão para denunciar situações de crise sociopolítica. Qual é o papel da cultura nos tempos sombrios? Deve ser uma ferramenta de conscientização ou distração?

Não há oposição simples entre distração e conscientização. A força da música não se deve às decisões conscientes de autores e artistas que se tornam famosos. Uma melodia sem cantar, sem palavras, uma moda batida, um timbre vocal, essas coisas podem gerar consequências imprevisíveis.

Em "Anjos tronchos" e "Enzo Gabriel" aparecem olhares luminosos e otimistas, e em cada um de seus álbuns, conseguiu encontrar beleza e esperança em tempos adversos. De onde vem esse olhar? Você está ciente do papel de suas músicas como um refúgio emocional para o seu público?

Eu tenho o que chamo de otimismo programático. Porque o pessimismo justifica a irresponsabilidade. As pessoas no Brasil estão acostumadas a pensar: "Não temos coragem, nem falamos espanhol, os reis portugueses que vieram aqui eram tolos e sujos, então não temos nada a respeitar, não mantemos as fitas de entrevista de artistas importantes, nada". A Globo começou a ter um arquivo de vídeo e para mim, que tenho 79 anos, isso é novidade. Todas as cenas de televisão do tropicalismo foram apagadas. Um diretor de cinema queria fazer um documentário sobre tropicalismo e só encontrou vídeos na TV francesa e portuguesa. Nada no Brasil. E tínhamos um programa chamado Divino Maravilhoso. Nada foi preservado.

No ano passado estreou o documentário Narciso Em Férias, onde revisita os 54 dias que passou na prisão durante a ditadura brasileira. Como foi a experiência de se reunir com aquele momento sombrio da sua vida?

Os anos de 1968, 1969 e 1970 foram depressivos. Prisão, confinamento e exílio duraram três anos. Londres faz parte da prisão para mim.

Junto com o documentário, sua versão acústica de "Hey Jude" foi publicada, o clássico dos Beatles que o acompanhou durante aqueles dias desolados. Em que sentido a música ajudou você a lidar com os momentos mais difíceis da sua vida? Você tem exemplos? Imagino que os discos que gravou durante seu exílio em Londres tenham sido essenciais para se sentir perto do Brasil.

Atendi aos pedidos do produtor Ralph Mace, que se interessou por nós e me fez gravar dois álbuns em Londres. Transa é o que eu mais gosto. Mas o primeiro, depressivo, tem "Asa Branca" e "London, London", além de "Maria Bethânia". Quando fiz Transa, já havia possibilidades remotas de retornar ao Brasil e tudo melhorou com a presença de Jardes Macalé, Tutti Moreno, Moacyr Albuquerque e Aureo de Souza comigo.

Mais de 50 anos após o lançamento de "Coração Vagabundo", em que pensa quando imagina aquele jovem Caetano que estava começando na música? Quais aspectos daquele tempo foram mantidos pelo resto da sua carreira? 

Curiosamente, você mencionou "Coração Vagabundo": esta é uma música que escrevi na Bahia, ainda muito jovem, e que ainda gosto hoje. Assim, sinto que o essencial da minha pessoa tem sido capaz de ser mantido por todo esse tempo.

Está prestes a lançar Meu Coco, seu primeiro álbum em nove anos. Aos 79 anos, o que o motiva a continuar enfrentando novos desafios em cada projeto? Quais temas inspiram você ao compor?

A existência da canção. Eu gosto dos temas da vida porque eles aparecem nas canções.

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