Caetano Veloso entrevista Letieres Leite, da Orkestra Rumpilezz. E vice-versa

Entrevista para o Jornal O Globo (21 de março de 2019)

Por Leonardo Lichote

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Foto: Tatiana Freitas

RIO — O baiano Letieres Leite e sua Orkestra Rumpilezz têm passado o tempo em Araras, na serra fluminense — onde gravam seu próximo disco, com lançamento previsto para o ano que vem. Nesta sexta, porém, eles dão uma pausa no estúdio e descem para a Lapa, onde fazem show no Circo Voador — é a primeira vez deles no palco. Caetano Veloso, que participará de uma das faixas do álbum (dedicado ao disco “Coisas”, lançado em 1965 por Moacir Santos), estará com eles em parte da noite.

Em suas redes sociais, onde definiu a Rumpilezz como “uma original e afiada big band erguida sobre atabaques da tradição religiosa africana”, Caetano postou vídeos de um show recente que fez com o grupo em Salvador, e completou: “No Circo, como em geral acontece, vai ser melhor”.

— Vamos cantar juntos “Coração vagabundo”, “Mistério de um povo”, “Oração ao tempo”, “Quero ver o Ilê” e “Tieta” — adianta Letieres.

A noite terá show de abertura do carioca Sylvio Fraga Quinteto, que lança em breve o disco “Canção da cabra”, feito com colaboração de Letieres. Foi Sylvio quem convidou Letieres para gravar o álbum “Moacir de Todos os Santos” por sua recém-criada gravadora, a Rocinante.

— Gravaremos sete “Coisas” do fabuloso Moacir Santos, todas rearranjadas — conta Letieres.

Leia, abaixo, as perguntas e respostas que Caetano e Letieres deram um ao outro, em entrevista dupla proposta pelo GLOBO:

CAETANO: O que você acha que a música pode fazer por aqueles que não são músicos?

LETIERES: Além entreter, divertir, celebrar, causar reflexão, informar, que são as primeiras impressões imediatas, pessoalmente eu encontro na música um fato subjetivo, extra sensorial, ao meu ver. O poder de provocar conexões ancestrais profundas nos ouvintes, independentemente de serem músico ou não.

CAETANO: A Rumpilezz, para você, se coloca em que área das relações entre raiz afro-baiana, jazz e música séria de vanguarda?

LETIERES: Uma intersecção entre todas estas áreas, um tanto menos da música de vanguarda. Mas não tem como ficar imune a estas ideias numa cidade que recebeu a energia da música de um Walter Smetak, Hans Koellreuter entre outros.

CAETANO: Na tradição da música popular brasileira, o que foi ou é mais inspirador ou definidor do estilo a que você chegou com a Orkestra?

LETIERES: A estética estrutural da música sacra afro-brasileira.

LETIERES: A sua obra aponta pro futuro, sempre. Mesmo quando se trata de uma canção que é bem popular, a estética estrutural da canção conecta com a contemporaneidade aos meus olhos e ouvidos. Como você vê este aspecto?

CAETANO: Apenas fico honrado em ouvir isso dito por você. Sempre me considerei — e me considero — um quase não músico. Além de Gil e tantos superdotados musicais que encontrei na profissão, conheci, desde a infância, talentos musicais inegáveis.

Queria homenagear Leíta, filha de Dona Cecília, que toca piano desde menina e entende as harmonias de modo instintivo. Hoje ela é fã de Milton. Eu conseguia tirar a tônica e a dominante das músicas e nada mais. Depois, vendo Gil, aumentei meu repertório de acordes. Pensei que tinha ideias (nem eram ideias musicais) úteis a meus colegas mais próximos, que os ajudaria e logo deixaria a música. Talvez essas ideias extra-musicais tenham sido usadas pelo pouquinho de música que há dentro de mim e eu tenha trazido os sonhos do que faria em cinema, em pintura, para dentro da minha música.

Acho o resultado errático. Mas também pode ser surpreendente. Há canções minhas de 1963 que agradaram a colegas como Edu Lobo, Wanda Sá, Dori, Francis Hime e hoje eu entendo mais por quê.

LETIERES: Ritmicamente, várias musicas são desafiadoras e propõem este “novo”, esta re-construção por uma via original ("Nine of ten", "13 de Maio", "Neolithic Man", "Aracaju", "Pulsar" etc. etc. Estas composições são de alguma forma iniciadas pela questão rítmica? Ou quando este fato aconteceu?

CAETANO: A forma dessas veio da decisão rítmica. "13 de Maio" foi pensada para ser em 5. "Pulsar" nasceu dos versos do poema, o ritmo foi sugerido pelos versos. "Neolithic Man" veio da ideia, mas o ritmo foi definido logo no começo. "O homem velho" também. Veio a ideia e fui pondo frases em três sobre base em quatro tempos. Tudo aconteceu de forma orgânica, mas a consciência da peculiaridade rítmica esteve quase sempre presente.

LETIERES: O seu engajamento político (em suas várias formas: estética, militante, libertária etc.) na sua arte e na vida eu percebo como um fato constante, presente e também muito inspirador pra mim. Como você enxerga isso, refletido em sua obra? 

CAETANO: Quando comecei não pensava nisso. Embora tenha feito um samba para o CPC da Une a pedido de colegas, em Salvador ("Samba em paz", que Elis gravou anos depois). Depois passei a achar que tinha política nas harmonias, no ritmo escolhido, nas estruturas, em tudo. Ainda penso mais ou menos assim.

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