Que mistério tem Caê?
Entrevista para a Revista Elle
Por Ronaldo Fraga
1 de dezembro de 2017
Fotos: Bob Wolfenson
Caetano Veloso é talvez a unanimidade mais controversa da cena cultural do Brasil. Amado por sua música, o cantor e compositor não pode ser definido em termos absolutos e resiste a classificações simplistas. Entre memórias e grandes novidades, ele é ao mesmo tempo um imortal da canção e um artista jovem, incentivador da novidade. Depois de 20 anos, ele relança seu livro Verdade Tropical, um misto de biografa e tese cultural,e acaba de montar o show Caetano Moreno Zeca Tom Veloso, em que se apresenta com seus três filhos.
Recentemente impedido de cantar em uma ocupação do movimento MTST, ele remarcou o show para o dia 10 de dezembro, quando se apresentará no Largo da Batata, em São Paulo, em apoio ao movimento ao lado de nomes como Criolo, Maria Gadú e Péricles. Caetano aderiu ao movimento #342Artes, capitaneado por sua companheira, Paula Lavigne, apoiado por dezenas de artistas e que se posiciona contra a censura.
Para a ELLE, ele se conecta com o artista britânico David Hockney, por ser também, em essência, um criador de novas perspectivas. Algumas delas, ele revela em entrevista ao estilista Ronaldo Fraga, um admirador de sua obra (que serviu de trilha para vários desfiles do designer), convidado para investigar os mistérios desse homem múltiplo.
Por quê você resolveu relançar seu livro Verdade Tropical nesse momento e como foi o processo de revisão da primeira edição? Em que parte do processo, você sentiu a necessidade de escrever um novo capítulo?
Na verdade, embora eu é que tenha, numa entrevista a um jornal, relembrado à editora que o livro completava 20 anos e que seria bom reeditar, eu não tinha nenhuma ideia de escrever nada. Quando a turma da Cia. das Letras topou a sugestão, veio a proposta de escrever uma nova introdução. Pensei que fosse escrever rapidinho, mas, quando fui tentar, me enrolei.
Muita coisa mudou desde que lançou a primeira edição. Como é rever sua própria história? Tem algum trecho que o emocionou de uma forma diferente agora?
Tive que reler o livro todo, coisa que nunca tinha feito. Pra ser sincero, nem sei se li todinho mesmo. Mas achei a parte da prisão o que tem de melhor. Os primeiros capítulos, achei mais fracos. Gosto mais de quando falo de Torquato, de Augusto de Campos, de Gil e da complexidade do que a gente encontrava ou buscava. O final do livro é fraco: eu tinha ficado esgotado de tanto escrever e reviver tudo aquilo. A narração da experiência em Nova York deve ter informações erradas porque eu não estava mais capaz de redigir nem de lembrar. Mas o capítulo sobre o disco Araçá Azul é bacana.
Tanto o livro quanto o show deixam evidente a presença das mulheres na sua trajetória. Você sempre foi cercado por mulheres fortes: dona Canô, Maria Bethânia, Paula Lavigne. Como a convivência com elas moldou seu olhar para questões do feminino? Você é feminista?
Desde pequenininho. Em Santo Amaro, eu já achava estranho as mulheres ficarem em posição de submissão e não poderem sair à noite sozinhas, entrarem num bar. Na adolescência, já me irritava a opressão da sexualidade feminina. Nós, os homens, éramos encorajados a buscar o sexo, e as mulheres não podiam expressar seu possível interesse por isso. Cresci numa casa cheia de mulheres: além de minha mãe, o sobrado dos Correios era habitado por duas irmãs e três sobrinhas de meu pai. E meus pais tiveram duas filhas antes de ter o primeiro varão. Então a não-aceitação do esquema da situação dos gêneros na sociedade foi um assunto que cresceu comigo. Antes dos 20, li O Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir, e foi uma iluminação. Mas em Verdade Tropical as menções a meu pai são em maior número que as feitas a minha mãe. E eu me lembro de Maria Ester Stockler, uma pessoa que eu admirava e respeitava muito, ralhar comigo, quando leu o livro, dizendo que o livro era “o Clube do Bolinha”: só têm protagonismo os homens, não só meu pai, mas todos os amigos e figuras influentes são do sexo masculino. Tenho de concordar, embora ache que ela esqueceu a importância definidora de tudo que está em Bethânia, no corpo do livro.
O show com seus filhos veio de uma vontade de ser feliz, como você mesmo colocou. Essa felicidade vem de estar em família? O que significa vida em família na sua casa hoje? Na sua infância era muito diferente?
Era diferente. Nós almoçávamos e jantávamos todos numa grande mesa, com meu pai e minha mãe numa mesma cabeceira. Meus filhos cresceram no Rio, onde as pessoas comem em horários diferentes e as crianças comem na cozinha. Mas o sentimento de família é, em mim, o mesmo. E percebo que,apesar de todas as diferenças, é também o mesmo nos meus filhos. Moreno sempre teve uma ligação mais frequente e mais articulada com meus pais e meus irmãos do que Zeca e Tom. Mas todos têm uma ligação muito forte comigo e, através disso, se sentem pertencentes a essa família grande e distante. Com a família da mãe dele, Moreno também tem ligação sempre realimentada. Zeca e Tom também veem sempre os avós e tios maternos. Uma coisa que sempre fez tudo poder funcionar naturalmente foi o fato de Dedé (Gadelha, sua primeira mulher e mãe de Moreno) gostar de Paulinha (mãe de Zeca e Tom) desde que nós a conhecemos. Quando tive vontade de fazer show com meus filhos, pensava na luz que percebo em nossas relações, na imensidão do meu amor por eles três e na maneira especial com que cada um deles se relaciona com a música. Eu nunca me senti um músico talentoso. E não esperava que eles fossem ouvidos musicais excepcionais. Mas sentia que qualquer coisa que a gente faz tem uma luz especial. Houve dias que sofri muito, temendo que tivesse botado fé numa coisa que talvez só eu visse – e talvez estivesse pondo os meninos em risco. Felizmente, tive coragem de ir em frente (eles me ajudaram muito com a atitude totalmente desgrilada): o show estreou e as pessoas que importam viram o que há de luz ali. Na verdade, muitas pessoas viram. Muitas pessoas são importantes. Pessoas são importantes. Por tudo isso é que eu disse que não somos uma família de músicos, e sim músicos de família.
Como é seu olhar para a produção artística dos seus filhos? Você nunca teve medo de intimidá-los com sua trajetória?
Sinceramente, nunca tive medo de intimidá-los. A soltura deles no palco comigo é a grande beleza musical do que fazemos. Todos os três produzem música muito verdadeira, muito pessoal e inspirada. Moreno tem o dom da singeleza e da claridade sonora e poética. Zeca tem uma alma imensa, que vem na voz dele e nos motivos musicais e verbais que ele desenha. Tom é talvez o mais músico de nós quatro: gosta de tocar, tem consciência do sentido das alturas, dos tempos, das relações entre as notas. Canta como quem não quer ser cantor, mas foi quem me ajudou a desvendar as vozes de O Seu Amor, a música de Gil feita para os Doces Bárbaros, que ele escolheu pra a gente abrir vozes. Minha alegria é que tudo isso vem à tona nas apresentações. Só por duas vezes, ficamos mais nervosos do que inspirados: na segunda noite no Net-Rio e no dia em que Bethânia veio nos assistir. Coincidiu que também era o primeiro dia em que Dedé veio. Mesmo nesses dias, houve gente que só viu muita luz.
Seus filhos já nasceram sabendo quem era Caetano. Onde, na relação entre pai e filho, os conflitos foram mais difíceis? O que foi mais fácil ser/viver: Caetano filho ou Caetano pai?Existe um lugar nessa relação que tenha semelhança?
Eu me lembro de meu pai caminhado para a Cachoeira da Vitória, em Santo Amaro (BA), comigo e com Moreno. Desde que eu era menino, a gente fazia esse passeio. Era um caminho lindo e misterioso. À medida que fui crescendo, fui ficando capaz de andar pela tubulação dos filtros da Aquária Santamarense, que às vezes ficava a uns 2 m de altura do chão. Quando chegamos a um ponto em que isso acontecia, meu pai pegou Moreno no colo e foi por baixo, enquanto eu me equilibrava no tubo lá em cima. Meu pai disse: “Vamos por aqui, Moreno, meu tempo já passou e o seu ainda não chegou, agora é a vez de seu pai”. Moreno cresceu dentro desse clima equilibrado e firme de meu pai. Os outros dois também têm muita ligação comigo. Eu punha os três pra dormir. Moreno e Zeca adoravam que eu cantasse, mas Tom não gostava disso. Mesmo assim, gostava de dormir nos meus braços, contanto que eu ficasse calado. Como pai, gosto de me identificar com a firmeza moral de meu pai, mas com muito mais proximidade e dengo com os filhos. Eles cresceram carinhosos e íntimos. Gosto imensamente de conversar com cada um deles. Zeca mora comigo e às vezes ficamos horas conversando. Moreno passou a infância e parte da adolescência grudado comigo. Tom era quase exclusivamente jogador de futebol. Eu, que nunca tinha me interessado por futebol (que meu pai adorava), acordava de manhã cedo pra ir aos jogos quando ele, menino, estava no Fluminense (embora ele seja Flamengo apaixonado). Eu ia ao Engenho de Dentro, à Barra da Tijuca, ao Méier, a mil lugares do Rio de Janeiro só pra estar com Tom nos jogos. Na pré-adolescência, ele começou a se ligar em música: Cézar Mendes tocava violão pra ele e começou a ensiná-lo. Em pouco tempo, ele estava ouvindo João Gilberto e Ella Fitzgerald e tocando com Cézar na casa de Paulinha. Um pouco mais, e ele entrava em minha casa no Leblon com um bando de garotos de 16 anos, todos tocando piano e violão divinamente bem: eram os meninos que hoje compõem a Dônica. Nunca tive conflito com nenhum dos meus filhos.
Também já li que você credita parte de sua erudição aos seus irmãos mais velhos, que liam muito, falavam francês. Isso em uma cidade do interior da Bahia. Qual a chance de encontrarmos um “novo Caetano”, com tanto repertório, num país que trata a educação da forma como vem tratando?
A educação pública era muito melhor nos anos 1940 e 50. Meu irmão Rodrigo me deu os discos de João Gilberto, a revista Senhor e os livros de Clarice Lispector, que ele sabia que eu adorava. Mas meus primos Sousa Castro é que eram cultos e liam muito. Também meu cunhado Antônio Mesquita, que era namorado e se tornou marido de Mabel, sabia francês e lia Balzac no original. Mas meu pai, os amigos dele e Layrton, que se casou com minha irmã Clara, sabiam muita poesia boa de cor: Augusto dos Anjos, Castro Alves, Arthur de Salles, Olavo Bilac. Conhecer poesia era um hábito.
Na canção O Homem Velho, de 1984, você escreve: “Os filhos, filmes, discos, livros como um vendaval/ espalham-no além da ilusão do seu ser pessoal/ mas ele dói e brilha único, indivíduo, maravilha sem igual/ já tem coragem de saber que é imortal”. Como Caetano se vê desde já? Um imortal?
Nessa letra, eu digo que o homem velho já tem coragem de saber que é imortal, isto é, que um homem é sempre imortal. Eu me sinto assim.
Certa vez, você levantou a questão do racismo na música Feitiço da Vila, de Noel Rosa. Hoje, as mais famosas marchinhas de Carnaval estão sendo consideradas racistas e homofóbicas. Você levantaria essa lebre novamente nesses tempos atuais? Há alguma música em sua obra que, se lançada hoje, levaria pedradas? Ou você mesmo se censuraria?
O racismo em Feitiço da Vila é óbvio. Eu falei no assunto porque (o crítico) José Ramos Tinhorão tinha escrito que a bossa nova era um sequestro do samba pela classe média, que estaria se apropriando, ilegitimamente, da criação do povo pobre e preto. Quem fez isso, cedo e de forma teoricamente assumida em algumas das suas letras, foi Noel. Ora, a Vila Isabel era um bairro de classe média, Noel começou a estudar medicina e na letra do Feitiço ele diz que, “tendo nome de princesa”, a Vila “transformou o samba num feitiço decente”. E que esse feitiço é “sem farofa, sem vela e sem vintém” e que “nos faz bem”. Ou seja, o feitiço dos pretos, com farofa, vela e vintém, nos faz mal e não é decente. Numa estrofe que ele escreveu e não aparece em gravações, ele termina dizendo que na Vila “não tem cadeado no portão porque na Vila não tem ladrão”. Mas isso pra mim não diminui Noel. Era mais normal no tempo dele dizer-se esse tipo de coisa. E ele se tornou, merecidamente, um ícone intocável da nossa música. É uma observação realista que eu fiz e que só pode nos ajudar. Eu não faria nada como censurar marchinhas por serem homofóbicas, machistas, racistas ou o que for. E muito menos apoiaria uma censura a Noel. Sou contra censura. E não me identifico com essa onda de patrulhar tudo. Eu falei de Noel como quem fala de um autor superior numa coisa que eu amo acima de tudo, que é a feitura de canções. Em outro samba, ele diz que “a Vila não quer abafar ninguém, só quer mostrar que faz samba também”. Ele entendia claramente o que tinha dito no “Feitiço”.
Você tem a mesma opinião de outrora em relação à cota racial? Num país como o nosso, com uma enorme dívida com os afro-descendentes e um sistema educacional injusto, a cota não diminuiu a distância entre brancos e negros?
Mesmo quando eu aderi à problematização da política de cotas, eu disse que o fazia “com um grão de sal”. Não me arrependo, mas hoje sou muito mais favorável às cotas raciais. Acho que temos mesmo que forçar certas coisas para ir desfazendo a herança da escravidão. Sempre ponho em discussão, dentro de mim, a onda de copiar as fórmulas norte-americanas para tratar a questão racial entre nós. Antes de a discussão política no Brasil se tornar racializada, eu torcia por isso, esperava que o exemplo deles nos estimulasse. Mas, à medida que o modelo norte-americano foi se tornando dominante e que toda a experiência social brasileira, da vivência brasileira, foi se negando, vi muita imposição de soft-power norte-americano sobre nós. Essa discussão não acabou dentro de mim, mas acho que as cotas são uma coisa boa. Apesar de todas as discussões que o tema exige e merece.
A releitura de uma obra de Ligia Clark em 2017 causou reações mais fortes do que quando foi lançada, originalmente, durante a ditadura. Quantas décadas o Brasil voltou?
Há um refluxo. No mundo todo. Os avanços foram muitos e os modos dos grupos de vanguarda do comportamento se tornaram mais e mais vocais e estruturados, várias áreas da sociedade pensaram que todos os preconceitos, as amarras e as limitações tinham desaparecido para sempre. Mas não é assim. Fui amigo de Lygia Clark e, mais ainda, de Hélio Oiticica. Convivi com hippies em Londres no final dos anos 1960, vi uma multidão de mais de 100 mil pessoas nuas numa praia de Ilha de Wight. Mas entendo que força conservadoras reapareçam. Eu não vou me submeter a elas, mas sou velho o bastante pra não me surpreender demais com essa regressões.
Ao longo de sua carreira, você rompeu muitas vezes padrões estéticos e de moda quando apareceu. Hoje, você se veste de forma mais tranquila. A moda enquanto instrumento de comunicação deixou de ter importância e de despertar certo fascínio em você ou ela simplesmente deixou de fazer sentido?
Eu me fascino com roupas pouco convencionais. Outro dia o Fioti, irmão do Emicida, me deu um conjunto da grife deles, uma calça preta com traços brancos, com o fundo bem longo, e com as pernas estreitas. O casaco compunha um visual hip-hop. Usei no programa do Luan Santana. Fiquei feliz de estar com aquela roupa. Mas nunca escolhi roupa pra mim. Quando era novinho, era minha mãe. Quando me casei, era Dedé. Depois que me separei, passou a ser Paulinha. No tempo do tropicalismo, tinha Guilherme Araújo, que incentivava o uso de roupas extravagantes. Dedé ajudava. Regina Boni tinha uma loja de roupas chamada Ao Dromedário Elegante e começou a desenhar e confeccionar roupas pra gente. Visto qualquer coisa. Mas não saio pra comprar.
Você não parece sentir o peso da idade. A fonte da longevidade e criatividade vem do inconformismo?
Sinto o peso da idade. Detesto o fato de meu cabelo ter ficado liso. Tenho muito menos resistência. Quando viajo, faço os shows, mas quase não vejo as cidades. Antigamente o show era só um detalhe da turnê. E componho muito menos.
O seu encontro com a coreógrafa Pina Bausch, como foi?
Li certa vez sobre a beleza que foi dançar um tango com ela, sendo conduzido por ela. O tango não foi nenhuma beleza. Eu não acertei dançar. Mas o encontro com Pina foi um deslumbramento desde o primeiro dia. Ela era uma pessoa especialíssima. Fiquei apaixonado pelo trabalho dela. Monique Gardenberg nos apresentou e, não sei por quê, ela gostou de mim. Conversamos logo e desde então a gente se viu no Rio, em Nova York e em Wupertahl. Fui duas vezes ao festival que ela organizava. Uma vez, ela pôs as bailarinas atrás de mim, refazendo a cena das moças de biquíni deitadas na pedra de uma espécie de Arpoador, do balé dela sobre Portugal, enquanto eu cantava Garota de Ipanema.
E ser reverenciado por Madonna recentemente?
Acho que Madonna apenas quis prestar reverência à minha idade e ao meu prestígio após tantos anos de trabalho com música.
Os olhos de Caetano ainda brilham pelo quê?
Por muitas coisas!