Caetano Veloso: otimismo “programático”, o “canalha” do Bolsonaro e a vida fora das redes
Entrevista para o Clarín (20 de novembro de 2021)
Por Cesar Pradines - Tradução Livre
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Foto: Fernando Young
Passados nove anos, Caetano Veloso lançou Meu Coco, uma obra discográfica que nos lembra o seu extraordinário requinte como compositor e aquela soberba engenhosidade melódica que mantém ao longo do tempo. Sua música descreve uma ponte delicada que une mundos íntimos com mudança social.
Talvez nas respostas do artista encontremos a gênese dessa modernidade perene que sua música tem, as tensões naturais entre o comprometimento e a evasão de suas composições, seu distanciamento daquele mundo de redes sociais em que não acredita, e aliás, seu posição política frente ao presidente do Brasil, Jair Bolsonaro.
Veloso não hesita em defini-lo como uma figura antidemocrática e aponta com a força de um compromisso: "Meu otimismo em relação ao Brasil é programático porque o pessimismo nos isenta de responsabilidades".
Aos 79 anos, com uma carreira de quase 55 anos e 55 discos, Caetano Veloso é um dos grandes artistas contemporâneos; um dos criadores dos anos 60 do Tropicalismo, vibrante movimento musical de protesto com o qual ele e Gilberto Gil, Maria Bethânia e Gal Costa, entre outros, enfrentaram a brutalidade da ditadura militar brasileira.
O artista, que conquistou 14 prêmios Grammy Latino - o mais recente foi de Melhor Gravação do Ano, nesta quinta-feira, 18 de novembro, pela música Talvez, junto com seu filho Tom - e dois Grammys na categoria de Melhor Álbum de World Music, gravou Meu coco, disco em que polirritmia e aventura são parte fundamental, em tempos de quarentena, em seu estúdio caseiro.
A modernidade sempre esteve perto
- Modernidade é um elemento que você sempre incluiu em sua música sem perder sua essência. Como se propôs a trabalhar em Meu coco, já que há uma importante variedade e intensidade de músicas e como bem destaca, “cada música tem sua própria e intensa vida"?
- Quando criança, em uma pequena cidade do interior do estado da Bahia, me interessava por coisas que se chamavam modernas. Um conto de William Saroyan, uma sandália aberta no pé de um homem, uma mulher fumando um cigarro, um filme sem história convencional. Quando adolescente, li Clarice Lispector e me apaixonei.
Pintei quadros que representavam ruas, árvores e igrejas e comecei a pintar abstrações. Eu tocava piano mal e cantava tudo que ouvia no rádio, mas quando surgiu a Bossa Nova entendi tudo o que me interessava naquele termo: "moderno". Eu tinha 17 anos.
Agora, por exemplo, convidei um jovem cantor e compositor carioca, Thiago Amud, para escrever um arranjo orquestral, porque adoro o que ele faz nos discos próprios, através de melodias, letras e arranjos. Cada música do álbum tem uma história semelhante e são totalmente diferentes.
Cada música, um mundo diferente
- Meu coco nos mostra o que se passa em sua cabeça, fantasias, nomes, homenagens a amores antigos... Como surgiu a escolha desses personagens ou situações; Quais valores foram necessários para trazê-los para a música?
- Comecei com nomes de mulheres, nomes que em algum momento foram escolhidos por milhares de pais para suas filhas. A partir daí, fui alcançando nomes de pessoas famosas no mundo da música e que definem a essência do Brasil, como Nara, Bethânia, Elis.
As canções de amor, no entanto, foram feitas para pessoas cujos nomes não são ditos. Outros nomes são representativos de filhos de gente da minha geração, meio hippie, meio contracultural, como Moreno, Zabelé, Manhã ou Amora. Então fiz uma música somente sobe o composto Enzo Gabriel, o nome mais escolhido para meninos nascidos em 2018.
E no samba sobre samba (Sem samba não dá) há nomes de cantores muito populares hoje, que vão do funk ao sertanejo, do pagode à bachata tocada no estilo brasileiro. No fado falo do uso de "você" ou "tu", que separa o Brasil de Portugal e também levo os nomes de antigos compositores da nossa música como Ary (Barroso), Noel (Rosa) e Chico (Buarque).
No final das contas, com tantos nomes, as músicas não são iguais. Cada uma cria um mundo diferente.
Uma dialética que não quer sua síntese
- Uma leitura possível sobre Meu Coco é que ele tem um aspecto claro comprometido com a atualidade, a política e o peso perigoso das redes sociais e por outro lado, há também uma evasão necessária que, como você também destacou, pode ser a apenas salvação. Você compartilha dessa visão sobre o equilíbrio entre compromisso e evasão do álbum?
- Não gosto muito da palavra evasão. Mas eu sei que as canções proliferam porque servem a algo que pode ser chamado assim. Desde criança, adoro canções, e elas podem ser banais e profundas ao mesmo tempo. Não acho que encontrei (ou mesmo procurei) um equilíbrio entre essas dimensões.
Talvez haja uma tensão entre esses dois domínios que se chocam, como no início de uma dialética que não encontrou sua síntese. Nem parece desejá-la.
- No momento de compor Anjos Tronchos, sentiu que a questão da tecnologia o ultrapassava. Qual foi a sua resposta a este tópico? Você investigou o comportamento das mídias sociais? Qual é a sua atitude em relação a elas hoje?
- De verdade, eu não olho as redes sociais. Não me sinto nesse mundo. Não estudei o assunto e fiquei surpreso que me saiu uma letra inclusive extensa e cheia de reflexões sobre o assunto. Eu nem uso smartphone.
Eu tenho um laptop e só troco e-mails. Eu assisto ao YouTube para ver coisas de música. E às vezes eu olho a Wikipedia. Sou um velho que sabe pouco sobre essas coisas das redes sociais e que quase não acredita na realidade desse mundo.
- Como surgiu a ideia de incluir Noite de cristal (faixa do álbum Maria, de Maria Bethânia, em 1988) em Meu coco?
- Bethânia me pediu para gravar. A música nunca foi muito conhecida. Não me lembrei e não encontrei a gravação que ela tinha feito nos anos oitenta. Sob o título veio outra coisa no YouTube ou não sei o quê.
Então a Bethânia me enviou em PDF, e lá eu percebi que era muito bonita e gravei. Como o Carlinhos Brown, que gravou com a Bethânia com a Banda do Olodum, repeti esse caminho e fechei o disco chamando a ele, a Brown.
Otimismo programático e autocracia
- Qual a sua posição diante da chamada “cultura do cancelamento” e do olhar inquisidor e moralizante exercido a partir de uma correção política pretendidamente progressista sobre a produção artística atual e passada? Acha que isso põe em risco a liberdade criativa de que um artista necessita para se expressar?
- Como não olho as redes sociais, não sei com precisão quase nada sobre o que se move na internet. Quando ouço as pessoas falarem sobre "cancelamento", me sinto mal. Em todo caso, não creio que se imponha uma "inquisição" digital que decida sobre a produção artística. Tudo é mais complexo. Complexo o suficiente para deixar os "canceladores" sempre um pouco perdidos.
- Em entrevista há algum tempo, você destacou que suas expectativas otimistas em relação ao Brasil eram mais uma responsabilidade do que uma esperança. Você ainda acha que o otimismo deve ser sustentado como uma responsabilidade ou é hora de ser severo, sem sutileza, sobre o futuro?
- Existem muitas razões para sermos pessimistas. Cultivei um otimismo programático porque o pessimismo muitas vezes nos isenta de responsabilidades. Isso fica especialmente claro no Brasil, onde a ideia de que somos um erro de origem serve para que as pessoas não levem em conta o que fazemos, o que poderíamos fazer, o que deveríamos planejar.
Realmente, me parece que a enorme mudança pela qual o mundo está passando não acontecerá sem fortes turbulências. Mas não acredito que os Tradicionalistas (como caracterizados no livro de Teitelbaum) terão sucesso em sua tentativa de levar a história de volta a um passado cujos princípios morais são conhecidos.
- Você acha que o Brasil pode estar se aproximando, ou talvez já esteja de alguma forma, daquela época em que você foi acusado de terrorismo cultural?
- No Brasil um canalha chegou ao poder celebrando os piores momentos da ditadura militar. O homem que agora é presidente do país disse que o maior torturador daquela época é um grande herói. Mas ainda vivemos sob leis democráticas.
O secretário da Cultura (não temos mais ministério da cultura) fala coisas que mostram desprezo pelos criadores. Embora seja uma luta contra os não democratas, não é um estado totalmente autoritário.
Criatividade como antídoto
- Como você se sente em relação à música atual no Brasil diante dessas forças que promovem a ignorância e o mau gosto?
- Desde 1966, com as ideias que criaram no tropicalismo, não respeito muito os critérios de quem quer ser sofisticado (e que tantas vezes são sub-sofisticados) e usam critérios para apreciar o que é de bom ou mau gosto.
Assim, há figuras fortes entre as celebradas em Sem samba não dá que podem ser consideradas exemplos de mau gosto, mas que me parecem criativas e instigantes, ora pela qualidade do trabalho, ora pela simples vitalidade.
A música sempre foi muito forte no Brasil. Existem muitos artistas talentosos que apoiam ou apoiaram o grupo que está no poder, por razões diversas e complexas. Mas a criatividade é fatalmente antagônica às autocracias.
- Em relação à pergunta anterior, você acha que sua música continua apresentando uma batalha?
- Sim.
Como é o Meu Coco, tópico por tópico
Composto durante a quarentena de 2020 em que Caetano Veloso ficou preso no Rio de Janeiro, Meu Coco mostra uma jornada à frente desse maravilhoso compositor e cantor. Doze temas que ilustram claramente o momento deste gigante artista.
“Muitas vezes sinto que já fiz músicas demais. Falta de rigor? Supervisão crítica? Deve ser. Quem gosta de música gosta da quantidade”, diz Caetano quase a se desculpar.
Meu Coco, nave-mãe do álbum, tem os arranjos orquestrais do compositor e pianista carioca Thiago Amud e letras que fazem um tour de nomes um tanto aleatório; Anjos tronchos é uma música reflexiva que trata da onda tecnológica; e Sem samba nao dá é um samba cruzado com música sertaneja com o acordeão de Mestrinho.
Você-você é cantada em dueto com a fadista portuguesa Carminho e o sábio bandolim de Hamilton de Hollanda; Nao vou deixar é baseada em uma célula de rap enquanto a letra é uma rejeição à opressão política em tom de conversa amorosa; já Pardo trata do uso de palavras dentro da questão racial .
Cobre é uma romântica canção de amor que fala da cor da pele que concorre com o reflexo do sol no mar do Porto da Barra no final da tarde, com arranjos de Jaques Morelenbaum que também tratou da Ciclâmen do Libano, com aquela fraseado do Oriente Médio salpicado de Webern.
Gilgal se tornou realidade com o ritmo de candomblé de seu filho Moreno e a voz da talentosa Dora Morelenbaum; enquanto Enzo Gabriel responde à surpresa de ter sido o nome mais escolhido para batizar recém-nascidos em 2018 no Brasil. Noite de Cristal, gravada por Maria Bethânia em 1988, passou a fazer parte deste disco a seu pedido.
Finalmente, Autocalanto merece um parágrafo separado. Uma peça tranquila inspirada nas vocalizações do seu neto, agora com um ano e meio, que cantava sozinho no berço para adormecer. Ou seja, uma espécie de auto-canção de ninar em que Caetano imita as vogais quase sonolentas do neto acompanhadas pelo violão do filho Tom, pai daquele neto.
Veloso contou assim: “Foi assombroso. Cantava até adormecer, mas foi ainda mais quando soube pela minha nora que o bebê de uma amiga faz o mesmo e quando a Carminho me disse que o filho faz o mesmo, pensei: este é um fenômeno geracional".