Os antigos olhos escuros estão de volta

 Entrevista para o Jornal O Globo

9 de maio de 1974

Ainda não faz uma semana que Caetano chegou ao Rio, com Dedé e Moreno, para ficar por três ou quatro meses, "enquanto tiver coisas para fazer por aqui". Alugou um estúdio em Santa Teresa e pensa em mudar-se do apartamento do Leblon, "porque Moreno precisa de um lugar um pouquinho maior e mais aberto".

No estúdio - ao lado da casa de uma família baiana, conhecida - o grupo ensaia todas as tardes, para o show que será levado no Teatro Tereza Rachel. Os músicos são os mesmos que acompanharam Caetano no MAM, da última vez que ele se apresentou no Rio:

- Perinho, que faz arranjos e é da guitarra; Tuzé, da flauta; Moacir, no contrabaixo; Enéias, bateria; e Bira, percussão. De novo, no grupo, só Mozart, que é mineiro e nós conhecemos aqui. Um nome que promete. É pianista, também. 

Os velhos baianos

Caetano vai descendo as escadas, saindo do estúdio. Está tranquilo e aprende a gostar de Santa Teresa - "isso aqui é maravilhoso". Tem planos para os meses que vai passar no Rio e fala com rapidez sobre eles:

- Meus objetivos profissionais, agora, são muito "objetivos". Tenho o show para fazer, depois vou produzir um disco para Gal - eu mesmo propus isso, porque quero ver se faço um trabalho com ela - e estou trabalhando também com Bethânia para o seu próximo show. Não vou produzir. O Fauzi Arap é quem vai fazer. E ela, junto com ele, me pediu para acompanhar o trabalho, fazer músicas. Estou ligado ao trabalho.

Gal está fazendo circuito universitário em São Paulo, e, quando voltar, Caetano já terá estudado a produção de seu próximo disco. Os baianos se reúnem, de novo, no Rio. Caetano pára e faz uma revisão do que foram esses dez anos de trabalho do grupo e do resto do pessoal, enfim, a música popular brasileira.

Circuitos, uma opção

Os circuitos universitários, que surgiram timidamente, a princípio, e são procurados, hoje, por todos os artistas, não representam, para Caetano, uma opção definitiva em termos de mercado de trabalho. Significam, sim, uma opção capaz de desobrigar o artista com a televisão:

- Porque eu vejo os circuitos como uma possibilidade a mais. Acho que isso nasce do fato de o Estado de São Paulo ser muito grande e muito rico em relação aos outros estados brasileiros. E de ter muitas universidades, muitas cidades com faculdades. Então, lá, naturalmente, tinha que acontecer isso. É uma coisa que tem muito nos Estados Unidos: as pessoas cantarem em universidades, e cantarem programadas por universitários. 

Ele fez circuito no ano passado e descobriu que os universitários entravam como organizadores ou organizadores-coadjuvantes, quando o trabalho de organização era dividido entre a produção e uma empresa de turismo de São Paulo:

- Na verdade o circuito que eu fiz, como o que Gil fez, era exatamente isso. Uma transa comercial de uma empresa de turismo com os universitários do interior. Transação de passagens, excursões, coisas assim, que eles faziam com os universitários do interior que se mostravam interessados em ver os artistas. Mas eram também espetáculos de todo o público, na cidade. Não eram espetáculos universitários no sentido em que foi o de Milton Nascimento e Gonzaguinha, que eu vi na PUC, aqui no Rio. Marcadamente universitário. Nesses circuitos de São Paulo - em ginásios de esportes, clubes - é "o Circo Chegou". Mais organizado pelo universitário do que para o universitário. 

Televisão e público

Sentindo-se desobrigado com a televisão, há muito tempo, Caetano Veloso acredita que essa liberdade surgiu "mesmo sem circuito universitários". E que o músico brasileiro durante certo tempo dependeu bem mais do veículo do que de cinco anos para cá, "porque a Tv, hoje em dia, não é mais um veículo onde a música seja importante":

- Música em televisão, atualmente, é um dado acidental. A gente tem na televisão muitas novelas, noticiários - quase não vejo, comprei agora porque gosto de cores no vídeo - e filmes. A televisão, agora, é mais jornalística. Tanto que tem o Fantástico, que e uma espécie de resumo da televisão; um pouco de teatro e música, tudo num tom mais jornalístico. É como se fosse uma reportagem sobre o artista. 

- Os músicos são muitas pessoas. Umas diferentes das outras. E a televisão - que é um sistema - tem muitas complexidades. Houve uma espécie de desinteresse recíproco. Vem mais do público, do todo, da alma do país, esse problema.

Quando trabalhava na Record - na época a estação de televisão mais importante do país - Caetano percebia que os músicos e cantores dependiam de "passar pelos canais competentes da televisão".

- Então tinha que haver festivais e programas de horário nobre. Você fazia o festival, se desse certo ganhava um programa. Assim foi com Chico, com Elis, com Nara, um pouco com Geraldo Vandré, com Gil e quase foi comigo. Mas, na minha hora, já começou a quebrar tudo. Tive um aborrecimento e saí da Record. Cheguei a ter, com Gil, um programa - Divino Maravilhoso.

Dos novos

Sem planos imediatos para discos, Caetano descobre, nos compositores que surgem, talento e força. Ele acredita na criatividade dos que estão surgindo, e até pensa em, futuramente, gravar músicas de alguns deles:

- Eu me interessei muito pelo Válter Franco e gostei muito do disco dele. Gosto de Raul Seixas. O disco dele é bacana. Raulzito tem pique. Nesses últimos tempos apareceu muita gente nova, e boa. Apareceu Sérgio Sampaio, Gonzaguinha. O Ivan Lins é bacana. Tem uma música dele que está tocando. Ouço muito no rádio do carro, lá na Bahia: "Quero de volta o meu pandeiro,/ meu camarada,/ quero de volta o meu pandeiro." Eu e Gil estamos apaixonados por uma música que diz: "chega de enganar a nega/ chega de enganar a nega..." E o Jorge Mautner é genial.

Da época em que Caetano apareceu já se passaram dez anos. "Os novos", em sua opinião, "estão aparecendo agora, numa fase em que a música popular brasileira tem um número muito grande de coisas interessantes". Daí não se poder exigir que "surjam com força". 

- Os Secos e Molhados, por exemplo, são um acontecimento incrível, vendem discos desbragadamente. São um produto perfeito para o mercado brasileiro. Tem muita criatividade ali. Fui ver o show, na Bahia, duas vezes. Adorei Ney Matogrosso. Hoje a gente esnoba porque tem muita coisa no Brasil, mas como é que não se vai prestar atenção num sujeito que dança bem, tem um pique incrível, uma voz única e que canta bem com esta voz? É sintoma de mercado rico.

Da cegueira aos três olhos

Para ele, destacar-se, em uma época como a atual, "é duro". Caetano Veloso admite que o sucesso alcançado logo de início, por ele, Gilberto Gil e tantos outros, tem origem no adágio de que "em terra de cego, quem tem um olho é rei".

- No tempo em que eu e Gil apresentamos Alegria, Alegria e Domingo no Parque e fizemos aquela zoeira que quase se tornou escândalo nacional - o que se chama surgir com força - era difícil, porque precisava ter coragem. As pessoas ficavam possessas porque a gente tinha usado guitarra elétrica. Qualquer coisa era escândalo. Era uma fase fechada, antes do tropicalismo. 

Para os novos o panorama mudou. Assim pensa Caetano que vê compositores e cantores ousarem, tentarem novidades, sem timidez:

- Válter Franco faz um long-play de estreia. Onde é que se viu isso? Antigamente você ia fazer um disco todo tímido. Lembro o meu primeiro disco, que se chama Domingo. Eu e a Gal. É uma coisa medrosa. Está escrito na contracapa: "estou fazendo este disco porque é uma oportunidade, mas não estou mais nessa". Quase que estou pedindo desculpas. Válter Franco, no entanto, faz um Lp de estreia, com tudo o que queria fazer, sem concessões.

Ao reconhecer que não só a coragem dos novos e o fato de isso ser possível, agora, no mercado brasileiro e na indústria fonográfica nacional, "são fatos incríveis", ele acredita que o mais importante é que discos desse tipo têm saído bem feitos:

- Antigamente era uma terra de cego. De repente todo mundo tem três olhos. É mais difícil aparecer com força. Eu acho que não interessa ser bacana. Esse negócio de liderança. Por exemplo, sou um artista entre os outros e me sinto muito bem assim.

Uma fase e outra

Para Caetano Veloso não houve uma fase de criatividade menor na música popular brasileira. Ele contesta os que acreditam que, após o aparecimento dos que ficaram - ele, Gilberto Gil, Chico Buarque, Milton Nascimento, Edu Lobo e outros - a MPB passou por fases críticas, sem novos talentos, exceto fenômenos isolados como Paulinho da Viola - que surgiu com os outros e se popularizou um pouco mais tarde:

- Houve uma fase que me pareceu meio dura, que corresponde à fase que nós passamos em Londres. Foi dura para nós e dura para todo mundo. Tanto fazia estar em Londres - eu e Gil estávamos lá, o Chico estava em Roma, Geraldo Vandré estava na Itália, Edu estava nos Estados Unidos, Francis Hime também - como em qualquer outro lugar. Era duro para quem estava aqui, também.

- Foi uma fase muito apertada. Não tinha muita criatividade. Ficou uma coisa meio presa. Durante a época que a gente ficou fora, quem estava trabalhando aqui era a Gal. que tinha ficado, o Milton Nascimento, com o Som Imaginário. Na parte mais criativa era esse pessoa. Eles tinham que aguentar uma barra incrível. O Milton até se queixou, numa entrevista: "Poxa, a gente ficou aqui sozinho". E eu acho que ele estava muito certo em se queixar de ter ficado só, porque realmente era uma barra.

Caetano data o tempo em que tudo começou a mudar:

- Desde que o Milton gravou Clube da Esquina e Chico gravou Construção - uso os dois discos como marcos de uma nova era de muita criatividade - tudo recomeçou. Tanto do ponto de vista dos que já trabalhavam há dez anos e que voltaram a fazer coisas lindas como dos que surgiram nesses dois anos. Jorge Ben, nessa fase que se chama de menos criativa, gravou o Lp Ben. Se um país lança um disco desses num ano, não precisa mais nada. Hermeto Pachoal voltou dos Estados Unidos e formou um conjunto. E o Paulinho da Viola, nessa fase, fez discos incríveis. O Paulinho tem uma tranquilidade muito grande. Mesmo nessa fase, conturbada para todos, e difícil, manteve o mesmo ritmo de produção. Gal se virou. Ficou uma presença, e Milton esquentando com o Som Imaginário. 

















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