‘Abraçaço’: a melancolia do medalhão rebelde Caetano Veloso
Entrevista para o Jornal O Globo (30 de novembro de 2012)
Por Leonardo Lichote
Clique aqui para ler a entrevista no site original.
Foto: Michel Filho
RIO - A guitarra marcada de “Odeio” é uma das marcas mais fortes — de uma das canções mais fortes — do álbum “Cê”, lançado em 2006. Seis anos depois, ela ecoa nos primeiros segundos de “A bossa nova é foda”, primeira faixa do novo CD do baiano, “Abraçaço” (Universal). A ligação explícita é uma piscadela indicando uma ponte entre os discos da trilogia que, iniciada em "Cê" e seguida por "Zii e zie" (2009), chega agora à sua conclusão — definindo o fim da fase Banda Cê, formada por Pedro Sá (guitarra), Marcelo Calado (bateria) e Ricardo Dias Gomes (baixo).
O trajeto traçado pelo artista e o trio de jovens músicos desde o primeiro até agora pode ser descrito como o que vai do rancor de “Outro” (primeira de “Cê”) ao amor puríssimo de “Gayana” (última de “Abraçaço”), do indie-rock de 2006 ao violão que guia o disco que chega semana que vem às lojas. Ou da raiva à melancolia, como descreve o compositor:
— O “Cê” é mais pau duro — diz, em referência aos versos “Feliz e mau como um pau duro/ Acendendo-se no escuro”, de “Outro”. — Tem até esse tema da amargura agora, que tinha no “Cê”. Mas o “Cê” era mais alegre. “Abraçaço” tem uma melancolia que não tinha antes. O “Cê” tinha raiva, até angústia, mas não melancolia. Tinha a canção “Minhas lágrimas”, que era triste. Mas “Estou triste” (do novo disco, de versos como “Porque será que existe o que quer que seja?/ O meu lábio não diz, o meugesto não faz/ Eu me sinto vazio/ E ainda assim farto”) é a mais triste da trilogia. A canção “Um abraçaço” é bonita e melancólica. É muito simples, ela quase não existe, mas tem emoção. E essa emoção é cheia de melancolia, marcada pela melancolia.
A canção trata de um desencontro que se prometia encontro (“Você não se deixou ficar/ No meu emaranhado/ Foi parar do outro lado/ Do outro lado de lá de lá”). Mas se em outros tempos Caetano já transformou o tema em alegria rock (“Eclipse oculto”), agora ele escolheu o caminho da dor.
— Nem me lembrei de “Eclipse oculto”, mas tem a ver. Tem um “não deu certo” na letra de “Um abraçaço”: “Tudo que não deu certo/ E sei que não tem conserto/ Meu silêncio chorou, chorou”. Em “Eclipse oculto” era “Nosso amor não deu certo/ Gargalhadas e lágrimas” — canta animadamente, rindo.
Na canção, abraçaço (despedida que Caetano usa às vezes nos e-mails) é o que ele manda para a musa — como a única coisa que restou a ele fazer após o desencontro. No nome do disco, traz uma ideia mais ampla:
— Abraçaço é uma palavra muito bonita e tem essa reverberação, parece um eco, mais ainda quando escrito, esse a-ce-cedilha duas vezes. É como se fossem círculos concêntricos de abraços, que vão se expandindo. Não é apenas grande ou maravilhoso como é um golaço, por exemplo. É expansivo. No disco, o abraçaço abarca desde cena íntimas até o fato que "o império da lei há de chegar ao coração do Pará".
“O império da lei” é uma das canções do disco que abandona a melancolia e abraça a contundência. Composta em homenagem a figuras como Dorothy Stang, missionária assassinada em 2005 no Pará, a música é um pedido de justiça — sobre uma batida marcada da Banda Cê que faz referência aos festivo ritmos paraenses. Caetano a compôs inspirado no filme “Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios”.
— Vendo o filme, fiquei muito emocionado e pensando nessa situação do interior do Pará, que a gente acompanha pela imprensa há muitos anos, com a sensação de que o império da lei ainda não pôs seus tentáculos ali de modo firme. No filme, Dona Onete canta sobre uma batida, eu queria essa batida para essa música. Falei com a banda e eles entenderam logo. No filme, a batida estava discreta, eu queria trazê-la para a frente. Queria algo bem forte pra ser um brado mesmo. Pelo ritmo, tem um certo caráter de canção de festa, mas é nitidamente um brado de luta — afirma Caetano, que louva a parceria com a Banda Cê. — Adoro essa banda, tocar com ela. É miraculoso. Nunca tive com eles 10 segundos de atraso, de dizer uma ideia e esperar para que ela se resolva. Quando vai, já é. É incrível. mais do que qualquer outra banda com a qual eu já tenha tocado.
Marighella também é homenageado com uma canção no disco. Citando livro (“Marighella, o guerrilheiro que incendiou o mundo”, de Mario Magalhães), filme (“Marighella”, de Isa Grinspum Ferraz) e música (“Mil faces de um homem leal”, dos Racionais MC's) lançados recentemente, Caetano acredita que se chegou a um momento de olhar novamente para o personagem, descrito na canção como “Um mulato baiano/ Muito alto e mulato”.
— É o tempo natural da respiração histórica a respeito da memória de Marighella. Jorge Amado passou a vida sonhando em ver um monumento a Marighella em Salvador, mesmo apoiando Antonio Carlos Magalhães — lembra o músico. — Pedaços desse monumento inexistente são o livro, o filme, a música dos Racionais e a minha canção, que são completamente diferentes. A dos Racionais é uma típica peça de hip hop. A minha parece uma canção de protesto da época das canções de protesto. E eu quis que fosse assim. É uma resistência da canção.
A raiva com que se refere aos assassinos da missionária e do guerrilheiro nas letras aparece também quando ele se dirige à musa de “Funk melódico”. Sobre a batida do gênero, Caetano evoca a “mulher indigesta” do samba de Noel Rosa (“Merece um tijolo na testa”, rima o Poeta da Vila) para se dirigir a uma personagem que “produz raiva, confusão, tristeza e dor”, provando que “o ciúme é o estrume do amor” (citação ao Vinicius de Moraes e seu verso “O ciúme é o perfume do amor”).
— Nas três canções, a raiva é muito forte. Mas com a mulher há uma conversa que é de outra natureza, isso é suavizado (“Nem com cheiro de flor/ Bateria em você”). Com esses outros caras (os assassinos, que, no caso de Marighella, eram o poder militar da ditadura) não tem conversa.
O interesse de Caetano pelo funk carioca — que ele já cantara em shows e já usara para compor “Miami maculelê”, gravada por Gal Costa — divide espaço no disco com outro gênero popular. “Quando o galo cantou” se inspira no pagode romântico.
— O funk me interessa mais como construção estética, é algo muito sofisticado. Mas gosto do pagode romântico por aquela brincadeira rítmica, uma corridinha na letra, que faço um pouquinho na canção, mas diferente do que os pagodeiros fazem. Não queria uma imitação. É mais uma homenagem, até mais no dizer a expressão “pagode romântico” na letra — avalia Caetano. — Mas o principal é que Tom, meu filho, adora os dois gêneros, como bom jogador de futebol.
Outro gênero que Caetano envolve em seu “Abraçaço” é um velho conhecido. Nos versos cifrados de “A bossa nova é foda”, é como se ele cantasse novamente para a bossa nova, como fez em 1968 em “Saudosismo”: “Eu, você, nós dois/ Já temos um passado meu amor”. Mas agora o passado inclui MMA e Bob Dylan. O americano, aliás, aparece na letra como “o bardo judeu romântico de Minnesota” — João Gilberto é “o bruxo de Juazeiro”, e Carlos Lyra, “o magno instrumento grego antigo”. Chamados pelo nome, apenas lutadores como Minotauro, Victor Belfort e Anderson Silva.
— João Gilberto sempre gostou de boxe e gosta de MMA. Numa entrevista a Tárik de Souza quando voltou ao Brasil, a imagem que usou para descrever seu estilo foi “um golpe de caratê”. Gosto muito disso — diz Caetano. — Esse tipo de luta tem uma formação que é semelhante a da bossa nova. O amálgama foi feito no Brasil, os Graice com o jiu-jitsu... E hoje o maior número de lutadores dessa categoria é de brasileiros. A bossa nova foi uma criação assim, um golpe de caraté com uma capacidade brasileira encarnada no João Gilberto de fazer determinadas misturas impiedosoamente bem achadas. Todo mundo pensa que a bossa nova é passarinho, mar azul, doce, suave. Mas não é. É um gesto de grande força combativa e foi vivido conscientemente assim pelo seu inventor.
O show de “Abraçaço” chega aos palcos em março de 2013. Encerrando uma trilogia que estabeleceu novos parâmetros para sua música numa idade em que muitos artistas se ocupam em — na melhor das perspectivas — apenas depurar seu estilo, Caetano procura driblar o papel de mito intocável da música popular brasileira. Papel que vem sendo intensamente reafirmado nos tributos aos seus 70 anos e em homenagens como o prêmio Pessoa do Ano do Grammy Latino, que ele acaba de ganhar.
— Não queria homenagem por fazer 70 anos. Mas algumas coisas aconteceram. Procurei descaracterizar as manifestações como tendo sido pretextadas pela data redonda. Acho um pouco chato isso, parece que só o que você tem é uma idade. É uma tolice, não gosto. Mas sabe o que podia ser feito e não foi? Um esforço pelas redes sociais para descobrir quem no mundo tem a edição inglesa do meu primeiro disco gravado em Londres. Porque a edição brasileira tem um corte em “A little more blue”, feito pela censura. Eu fazia uma menção à (atriz argentina) Libertade Lamarque e eles pensaram que eu estava pedindo liberdade para Lamarca (risos). Queria essa gravação original nem que fosse em MP3 — diz o baiano, que comenta o atrito entre os papéis do mito (que alcançou a perfeição) e do artista (que é movido pela busca). — Enfrento essa questão. Sou um medalhão rebelde, essa ideia já me ocorreu.