Caetano e Teresa Cristina conversam sobre as contradições de Noel Rosa

Entrevista para o Jornal O Globo (9 de março de 2018)

Por Leonardo Lichote

Clique aqui para ler a entrevista no site original.

Foto: Guito Moreto

RIO — Depois de se dedicar a Cartola em disco e show ao lado de Carlinhos Sete Cordas, Teresa Cristina agora volta a se juntar ao violonista para um mergulho em outro mestre. Com direção musical de Caetano Veloso, “Teresa Cristina canta Noel” (Uns/ Altafonte) — que ela lança nesta sexta-feira em formato digital, e que chega aos palcos nos dias 21 e 22, no Teatro Net Rio — representa, porém, mais do que simplesmente um novo repertório.

Compositor branco, de classe média, com olhar de cronista afiado que cruzava as vivências das ruas e dos meios intelectuais, Noel explicitou em sua música tensões de um país que se dividia entre atraso e modernidade. E nem sempre se concordava sobre o que era cada um, como mostra a polêmica do “bacharel” Noel com o “malandro” Wilson Baptista — uma troca de canções nas quais eles se provocavam mutuamente.

Abaixo, uma conversa franca de Teresa com Caetano sobre a genialidade e as contradições de Noel. Conversa que começa com a lembrança dos comentários de Caetano, no show “Obra em progresso” (2008), sobre o que identifica como teor racista de “Feitiço da Vila” — que Teresa não gravou exatamente por isso.

CAETANO: A crítica à bossa nova liderada pelo (crítico José Ramos) Tinhorão era de que ela era uma apropriação indébita de uma criação do povo, o samba, pela classe média. Noel era isso. E não tinha vergonha de dizer. Aquela coisa de bacharel, bairro com nome de princesa, que transformou o samba num feitiço decente, diferentemente do feitiços dos pretos (referências à letra de “Feitiço da Vila”)... E ainda tem aquele “na Vila não tem ladrão”. É muito explícito.

TERESA: Não gravei “Feitiço da Vila” porque preciso de mais tempo pra lidar com isso que Caetano falou no “Obra em progresso”. Quando ouvi aquilo, lembrei que a gente fazia sambas na casa da Memélia, mãe do Chico (Buarque). Uma vez, começamos “O teu cabelo não nega”, e ela: “essa não, essa música é racista”. Me deu uma vergonha por nunca ter pensado naquilo.

CAETANO: Já ouvi muitas vezes reclamarem de “O teu cabelo não nega”, mas “Feitiço da Vila” não só não reclamam como não querem que eu observe isso. E é uma observação histórica. Não é que Noel fosse um indivíduo especialmente racista. Mas é que a cultura mediana era, e até hoje é, racista. Tem um lado racista e classista no respeito a Noel. Ele marcou a entrada da classe média no samba, e documentou isso nessa música e em outras. Ele diz que a discussão se o samba vem do morro ou da cidade não importa, porque o samba nasce do coração. O que é uma opinião bem classe média. Muito boa, mas bem classe média.

TERESA: O show se chama “Batuque é um privilégio” porque esse verso redime Noel nesse sentido. Tem dois versos dele que queria usar em camisetas. Um é esse. O outro é “Feche a porta da direita com muito cuidado” (risos).

CAETANO: Noel era uma figura muito venerada na minha casa. Não existia long-play, mas tinha essa caixa da Aracy com capa de Di Cavalcanti, e dentro tinha uns 78 rotações com canções de Noel. Meu pai tinha admiração enorme por ele, dizia que “Três apitos” era a música mais bonita que existia. Eu ficava prestando atenção, porque a letra de “Três apitos” é muito bem bolada. Eu menino ficava muito impressionado. Porém, minha grande virada foi João Gilberto. E logo no primeiro disco ele vai em Ary, Marino Pinto, Dorival. E assim nos seguintes. E Noel nunca estava. Aquilo pra mim era instigante. Wilson Baptista ele cantava. Porque a briga de Noel com Wilson vinha de um lado playba do Noel. Ele era contra os sinais do malandro, fica querendo um mundo mais respeitável pro samba. Eu achava que João insinuava uma afinidade maior com Wilson. Depois vim a conhecer João, e ele falava: “Caetas, em Juazeiro não se conhecia Noel Rosa, isso foi inventado aqui no Rio”. Porque de fato foi um gesto de Lúcio Rangel. Ele que fez esse negócio de revalorizar o Noel. O que foi muito merecido, porque só Chico escreve como ele letra de música. É sempre a sílaba caindo no lugar certo. Depois João gravou “Palpite infeliz”, gravação que é uma maravilha. E é uma canção que resolve o problema do “Feitiço da Vila”, supera. Aí falei: “Agora sim, João”. “É, Caetas, mas é porque é Vadico” (risos). Pior que não é!

TERESA: “Palpite infeliz” faz parte da polêmica com Wilson Baptista. Canto no show.

CAETANO: Você não gravou “Feitiço da Vila” e gravou a parceria de Noel e Wilson (“Deixa de ser convencida”). Muito politica você (risos).

TERESA: Quis fazer isso porque de algo ruim saiu um tesouro. A música original (”Terra de cego”, da qual Noel pegou a melodia para escrever a letra de “Deixa de ser convencida”) era ofensiva ao Noel. Ele pegou a melodia, e botou uma letra linda. Mas queria dizer que tô amando ver esse Noel que você tá falando, um olhar diferente do meu. Noel pra mim entrou por Monarco, que tem uma admiração imensa por ele, e por Bethânia, primeira cantora que ouvi cantando Noel.

CAETANO: Ela gravou um compacto duplo só de Noel. Isso veio do meu pai.

TERESA: Quando comecei, era um deleite cantar Noel. Mas havia umas canções que não me deixavam à vontade, como “Mulher indigesta”, que nunca cantei. Mas me alegrava no Semente cantando Noel. Ele tem um feitiço. Mesmo na noite mais caótica, muitas vezes com pessoas que não gostavam de samba mas que achavam que o Semente era um lugar onde eles tinham que estar. Mesmo nessas noites, quando se jogava Noel, o clima se resolvia. Mas nunca persegui Noel, tipo “vou gravar”. Mas esse momento com Carlinhos, o show do Cartola, me mostrou um lugar onde gostei de me ver. No teatro, cantando samba com as pessoas sentadas. Tem quem fale: “Por que você parou de cantar no bar?. É como se o samba não merecesse estar ali. Nessa turnê que fiz com Caetano, cantando Cartola, tocamos em lugares que eu pensava: “tô aqui cantando samba nesse lugar”. Aquele palco de Barcelona...

CAETANO: O Palau de la Música. É lindo mesmo.

TERESA: Carlos Cachaça e Cartola falam: “conseguiu penetrar no Municipal” (“Tempos idos”). Para eles era importante.

CAETANO: O mais interessante nisso tudo é Teresa. Porque ela tem um histórico no samba que não passa por Noel.

TERESA: Escolhi gravar Noel porque tenho essa ligação com samba de terreiro, que é o que mais gosto de cantar. E Noel vai pra outros lugares. Eu queria ver como ia me sair cantando Noel.

CAETANO: Pra mim ficou assim como refrescado. Porque como a base dela é outra, o samba de terreiro, ela refresca Noel todo. E o violão de Carlinhos é incrível.

TERESA: E tem a coisa de a obra de Noel ser atualíssima. “Cidade mulher”, ver o Rio como uma cidade mulher. Porque o Rio nunca foi tão maltratado pelos governantes. Sempre morei no subúrbio, já vi situações críticas de violência, mas agora tá mais que ultraviolento. Tá o esculacho. E tem canções de Noel que me representam hoje. “Seja breve” pra mim Noel fez pro Temer. Em “Onde está a honestidade?”, quando ele fala: “O seu dinheiro nasce de repente”... Isso já o incomodava. A forma como falava do almofadinha, da coisa de o Rio querer ser francês... Ele era de classe média, isso devia ser algo que ele via, que o incomodava. Quis trazer esse olhar atual. Gosto muito de fazer roteiro. Tem músicas que tô cantando só no show, como “Três apitos”. Essa tá num lugar muito alto. A maneira como ele se deleita com aquela mulher que vai pro trabalho... Tem a ver com aquela música do Caetano, “Dama do cassino”, que fala de uma mulher livre. Quando Noel fala da mulher que “Sem meias vai pro trabalho/ Não faz fé com agasalho/ Nem no frio você crê”, é um jeito de falar dessa independência da mulher desejada, uma mulher que não obedece a ninguém, nem ao frio. Essa e “Cidade mulher” redimem Noel dessas outras que eu não gosto.

CAETANO: Como a do tijolo (“Mulher indigesta”, do verso “Mas que mulher indigesta/ Merece um tijolo na testa”), que citei em “Funk melódico”. Não lembro mais a motivação pra essa canção. Mas me lembro que “Dom de iludir” fiz respondendo a Noel. Dizia que era uma canção transfeminista, porque a mulher dizia: como é que você vai querer que a mulher vá viver sem mentir? (risos). Lembrei de uma coisa curiosa. Uma vez eu e Chico fomos cantar juntos e propus “O X do problema”. Quando cantei “Você pode crer/ Que palmeira do mangue/ Não vive na areia de Copacabana”, ele disse: “Não é, é ‘pode ver’”. Depois descobrimos que Aracy canta “pode crer”, mas tem uma gravação dela com “pode ver”. E você agora canta “ver”, Teresa.

TERESA: Eu gravei “pode ver”? Fiquei na dúvida. Se gravei “pode ver” vou falar que foi influência do Chico (risos).

CAETANO: É, essa parte não foi Caetano, foi Chico! (risos)

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