Caetano relança 'Verdade tropical' num Brasil com ‘esboços de opressão à criação artística'

Entrevista para o Jornal O Globo (25 de outubro de 2017)

Por Leonardo Lichote

Clique aqui para ler a entrevista no site original.

Foto: Fernando Young

RIO - Há 20 anos, Caetano Veloso lançava “Verdade tropical”, livro no qual seu olhar atravessava sua própria história até ali — e, em paralelo, a vida cultural e política do Brasil ao longo do século XX. Agora, em celebração aos 50 anos da Tropicália, a obra ganha nova edição pela Companhia das Letras. Além da nova capa, o compositor apresenta um capítulo inédito, “Carmen Miranda não sabia sambar”, no qual avalia o livro à luz de críticas feitas a ele nessas duas décadas.

Nesta entrevista, Caetano afirma, inequívoco: “O Brasil pensa que é menor do que é” (referindo-se sobretudo à atual produção do axé). O mesmo Caetano, porém, escreve, no novo capítulo: “o Brasil está em perpétua convulsão e há coisas demais sugerindo que não temos por que ser otimistas”. É desse lugar — entre a consciência da grandeza do país (afirmada no funk e em Chico Buarque) e a preocupação com o futuro de um Brasil no qual se mostram “esboços de opressão à criação artística, ameaças ou mesmo ações de censura” — que ele conversa com O GLOBO.

Por e-mail, Caetano — que grava nesta sexta-feira, em São Paulo, o DVD do show que faz com seus filhos Moreno, Zeca e Tom — trata das conquistas da Tropicália; do impeachment de Dilma Rousseff e da permanência de Michel Temer no poder apesar dos escândalos; de sua posição sobre biografias chapa-branca; dos perigos do moralismo.

As perguntas foram enviadas ao artista antes da ação que ele moveu contra o Movimento Brasil Livre (MBL) e Alexandre Frota, que o acusaram de pedofilia (por ele ter começado a namorar Paula Lavigne quando ela era adolescente). Procurado novamente, o cantor informou por meio de sua assessoria que o único comunicado sobre o assunto seria a nota que Paula postou nas redes sociais (“Deixemos para o Judiciário decidir sobre os ataques incessantes de quem não tem conteúdo a oferecer, apenas ódio”, diz o texto).

No texto inédito "Carmem Miranda não sabia sambar", você trata de diversos aspectos pontuais — de sua crítica ao “erre” retroflexo até a polêmica leitura de Roberto Schwarz para o livro (em ensaio de 2012, o crítico ataca aspectos ideológicos do livro, apesar de defender seu valor literário). Em termos gerais, sua avaliação é sintetizada em “VT me parece menos respeitável como um livro entre livros do que pôde parecer a Roberto Schwarz, embora eu ache graça em muitos aspectos da minha prosa e reconheça haver nele mais verdade do que o crítico supõe”. Em que aspectos o livro mais o agrada?

O melhor capítulo do livro é o que narra minha prisão durante a ditadura. Mas as avaliações críticas de “Araçá azul” têm força. E as descrições (e interpretações) do que senti na viagem de auasca são muito ricas. Também gosto dos retratos de Bethânia, de Torquato, de Augusto de Campos. Aliás, o único ponto em que concordo plenamente com Schwarz é a valorização dos retratos. O critério que o leva a ver no começo do livro uma superioridade sobre os capítulos posteriores em termos de compreensão da realidade não faz sentido para mim. No início, o narrador é quase tão ingênuo quanto conta que era àquela altura da sua vida. Depois, quando ele ganha complexidade, fica melhor. Bem, no capítulo final eu estava ficando cansado de escrever aquilo: há muito menos cuidado e concentração. Infelizmente eu me acho hoje mais parecido com o escritor do último capítulo: minha memória não é tão viva para trazer à luz a palavra exata no momento exato.

Nesse novo capítulo, você explica sua identificação com a esquerda. Você escreve, entre outras coisas, que essa identificação “só faz exacerbar-se no clima dos meses recentes, em que o horror dos conservadores finge se dirigir à corrupção quando é nojo e medo dos pobres, pretos e desorganizados, além de impaciência com estes” e “o Brasil está em perpétua convulsão e há coisas demais sugerindo que não temos por que ser otimistas”. Como você identifica estas convulsões com as que se davam no Brasil de 1967/1968/1969, solo no qual brotou a Tropicália? E como as ações que inspiraram a reação do #342artes se relacionam com isso?

Tive participação indireta no planejamento do #342artes (movimento em resposta aos ataques sofridos pela exposição “Queermuseu” e pela performance “La bête”). Participei com convicção porque de fato acho que não podemos ficar inertes diante de esboços de opressão à criação artística, ameaças ou mesmo ações de censura. Quando escrevi a nova introdução estávamos longe disso: tínhamos o impeachment de Dilma e as óbvias ações para destruir o PT. Nunca fui petista. Votei em Lula contra Collor no segundo turno: meu candidato era Brizola. E voltei a votar nele em 2002, quando ele virou presidente. Cheguei a chorar de emoção dentro da cabine de votação. Eu tinha dito que achava que tinha chegado o momento de Lula. E estava certo. Pensar que aquilo estava mesmo acontecendo me comovia. Pensei em meu pai (eleições sempre me lembram meu pai: essa foi especial quanto a isso). Eu achava — e acho — que Lula seguir-se a Fernando Henrique tinha um significado de grande importância. E tinha. Mas não me surpreenderam as notícias sobre o mensalão e a corrupção maior que se desvelou depois. Aprendi aos 12 anos, quando Getúlio morreu, a não ser moralista em política. Não me entenda mal: acho que devemos ser exigentes eticamente. E vejo a novidade de poderosos empresários e políticos serem presos como um avanço da nossa sociedade, que, em princípio, só prendia pobres, quase todos pretos. Mas o Palocci, que foi o talento centralizador das vitórias econômicas do governo Lula, sempre teve cara de pilantra para mim. Ser de esquerda significa reconhecer que nosso maior problema é a desigualdade. E achar maneiras de superar a estrutura social que se perpetua no Brasil desde a escravidão. Em 1964 o golpe servia às forças que precisavam desesperadamente manter essa estrutura e às forças internacionais que defendiam os Estados Unidos contra os países comunistas. Nunca fui fã dos países comunistas. No tempo da Tropicália, quando o governo militar tinha endurecido com o AI-5, eu admirava Guevara e os desejos de luta direta contra a ditadura. Quando escrevi VT, já reconhecia não apenas o horror do resultado das revoluções socialistas (que sempre viram autocracias), mas também a ingenuidade política dos que preparavam uma luta armada entre nós. Com isso, valorizei os princípios liberais. Mantenho minhas críticas e grande parte do respeito pelos valores liberais. Mas perdi qualquer entusiasmo com o liberalismo real.

As conquistas da Tropicália estão consolidadas hoje?

O tropicalismo quis desfazer a hierarquia do gosto no mundo da música popular. Claro que “Terra em transe” de Glauber, o Oswald montado por Zé Celso, os poemas popcretos de Augusto de Campos, as obras ousadas de Hélio Oiticica e Lygia Clark não só nos influenciavam e/ou estimulavam, como também eram algo intelectualmente superior à nossa rebeldia de cantores de rádio. Nessa nossa área, conquistamos uma anarquia que pode ser saudável ou meramente entrópica. O fato é que gosto de funk e de axé e que admiro grandemente Michel Teló e Ludmilla. Quando digo axé não quero dizer que ouço álbuns inteiros de músicas que saem sob essa rubrica. Estou falando de maravilhas conseguidas pelo casamento ocasional entre algumas cantoras de trio elétrico e a música dos blocos afro. Estou falando de algumas canções de Gerônimo, de uma marcha do Chiclete que me faça chorar, de pagodões como “Firme e forte” do Psirico, de álbuns como o último de Igor Kannário, da música do Muzenza sobre Bob Marley, de momentos divinos da Timbalada. Isso daria uma antologia de arrepiar. O Brasil pensa que é menor do que é. Chegar a poder ver coisas assim é uma vitória da Tropicália. Mas, claro, tudo pode ir pelo ralo a qualquer momento.

Nos 50 anos da Tropicália, o fragmentado ideário do movimento ainda põe soluções (e questões) para o Brasil? Ou é algo atrelado a um momento específico e que sobrevive apenas como História?

Aquilo foi ligado ao momento. Mas deixou sugestões que podem ser úteis para mim e para você quando formos ouvir Anitta, Ana Cláudia Lomelino ou Thiago Amud. Faz tempo que não reouço Thiago Amud, aquele disco “De ponta a ponta tudo é praia-palma”. Tem gente que só quer saber do fato de Caminha ter pedido ajuda ao rei para um parente.

No novo capítulo, você escreve: “Ainda por cima, li em algum lugar que, com a internet, a capacidade média, nas pessoas, de concentração para leitura desceu para oito segundos. Como podem se sustentar esses meus períodos caricatamente proustianos?”. Você considera que essa mudança trazida pelo hábito da internet colocou o alcance de seu livro (e de outros proustianos ou não) realmente em xeque?

Nunca penso em crise dos livros. Os livros sempre me pareceram eternos. Claro que isso pode dever-se à minha idade. Li alguma coisa sobre a capacidade de concentração ter mudado com o hábito de usar smartphones e logo pensei em meus períodos longos. Quis fazer uma piada com isso. Afinal, falo em Proust, Sartre e Lévi-Strauss, mas nem preciso dizer que, ao escrever a nova introdução eu estava também influenciado pela Rita Lee escritora. Não é por acaso que ela é citada logo no segundo parágrafo.

“Lula e Dilma foram os únicos que deixaram o Ministério Público e a PF trabalharem em paz por muito tempo”. Essa afirmação, extraída do texto inédito da reedição de “Verdade tropical”, é tida hoje no Brasil como quase uma provocação. O que a frase diz de Dilma, de Lula, do Ministério Público, da PF e de todo o processo político no qual o Brasil está metido desde a campanha eleitoral que acabou elegendo Dilma?

Fernando Henrique tinha o Engavetador Geral: toda a imprensa sabia disso e comentava de vez em quando. Mas ninguém estava querendo tirar FH do poder. Exceto, é claro, o PT, que vivia propondo impeachment. Depois que Dilma foi apeada, Jucá já estava exigindo que se estancasse a sangria. Temer achava que podia confiar nisso — e o fato de ele não ter caído, apesar de papo no porão com Joesley, mala de dinheiro com Loures, tudo, não pode deixar de parecer que ele estava certo. Lula e Dilma, com toda a enrolação em que se meteram, parece que não tiveram essa preocupação, nem muito clara nem muito urgentemente. Minha frase não quer dizer muito mais do que isso. Não pretendo mudar o que se sabe a respeito do impeachment de Dilma. Sou da turma que viu algo como um golpe paraguaio em câmera lenta. Mas sei que muitos não pensam assim. E não tenho muitas certezas a respeito. Apenas repito que os brasileiros têm o direito, talvez o dever, de desconfiar de moralizações que podem esconder evitação do enfrentamento do problema da desigualdade.

No texto, você aponta uma utopia num futuro em que a canção realizará sua potência de anunciar "as novidades do Brasil": "Quando as forças do mundo se renderem às canções de Chico Buarque". Partindo dessa projeção utópica, que futuro seria esse?

É. Tem momentos em que escrevo mesmo como maluco. O fato é que na hora em que estava escrevendo me lembrei de uma homenagem a Tom Jobim feita em Nova York. Como alguns outros artistas brasileiros, fui convidado para cantar junto a grandes músicos de jazz. Notei a falta de Chico. Reclamei com os organizadores. Eles não sabiam explicar. Afinal, Chico foi um dos maiores parceiros de Tom e é um dos maiores nomes da nossa música de todos os tempos. O que eu senti ali se repetiu em alguns outros momentos em que vejo a grande beleza das canções de Chico como que entranhadas no Brasil. Só ele tem a limpeza prosódica de Noel Rosa. Na hora em que estava escrevendo, senti que a obra dele é tão entranhada em nós que o mundo ainda não pode vê-la direito. Eu queria dar a medida do que seria o Brasil afirmado na história do mundo, com luz e grandeza. E essa medida era Chico. Pouco depois vim a ouvir a parceria dele com Cristóvão Bastos, com aquelas palavras, aquele piano, aquele baixo de Jorge Helder...

Você conta no novo capítulo do livro que, no texto original de "Verdade tropical", quase se definiu como "um homossexual que teve, até ali, sobretudo atividade erótica com mulheres". E conclui, hoje, que o ser humano "é sexual", simplesmente. O que te aproximou daquela afirmação identitária mais marcada em 1997? E o que agora o leva a essa compreensão mais fluida?

Na verdade no texto original de "Verdade tropical" eu me defino assim como agora. Luiz Carlos Maciel é quem notou que eu dizia, afinal de contas, que não era nem homo nem hétero nem bi. O que conto na nova introdução é que Maciel não sabia que eu tinha escrito algo como o que você cita num capítulo exclusivamente sobre sexo que não entrou no livro. Ou do qual só entraram as partes essenciais. O que digo é que hoje acho que é mais certo dizer "somos sexuais" (na verdade ouvi isso do psicanalista MD Magno) do que dizer "sou homo" como alguns mulatos claros dizem "sou negro". Mas isso está melhor explicado lá no novo texto.

“Minha opinião sempre foi: não quero que haja somente biografias chapa-branca”. “Bem, embora os caminhos não fossem sem acidentes, o resultado foi o que eu desejava: a lei brasileira já não diz que biografias dependem de autorização de biografados”. As duas frases do ensaio inédito refletem uma imagem oposta àquela que foi colada em você e em seus colegas do Procure Saber à época da polêmica — vocês foram tidos como "censores", como você mesmo lembra. Por que isso se deu, essa percepção de que você pensava o oposto do que efetivamente pensa?

A frase “não quero que haja só biografias chapa-branca” foi dita por mim a meus colegas no primeiro dia em que se propôs lutar pela permanência da lei que exigia autorização de biografados. Todos os meus colegas sabem disso. Numa reunião, Chico chegou a pôr em discussão a legitimidade da associação quando ela tivesse de responder por um grupo em que alguém tivesse opinião oposta à expressa por ela. E citou minha discórdia com relação ao caso das biografias. Eu disse que prometia não atrapalhar e tentar ajudar a explicar as nuances dos argumentos deles. Mesmo assim, deixei claro em meus artigos para o Globo que eu não lutava pela causa. Tentei explicar o equilíbrio difícil entre liberdade de expressão e direito à privacidade — que foi o que Paulinha Lavigne defendeu no “Saia justa”. Quando a imprensa decidiu me taxar de censor, juntamente com Gil e Chico (era mais emocionante escolher medalhões que sofreram censura), não reagi com a fúria de sempre: fui claro o quanto pude em meus artigos, mas não ia brigar com a imprensa e soar como alguém que desqualifica os amigos. Na verdade eu os entendo, mas sempre discordei da ideia de que só autorizada pelos biografados ou por seus descendentes é que um livro sobre a vida de Roberto Marinho, Roberto Carlos ou José Sarney poderia ser escrito e publicado.

O "Verdade tropical" é atravessado pelo impacto de João Gilberto em sua vida — e na vida do Brasil. No novo texto, você evidencia isso ao abordá-lo a partir de uma perspectiva quase religiosa. Surgiram outros deuses depois dele no país? Algo no Brasil recente ou contemporâneo tem a capacidade de mover o país como João moveu, ou próximo disso? Quem ou o que teria transformado a cabeça de um Caetano jovem hoje? Seria um compositor de canção popular, um cineasta, um funkeiro, um romancista, um youtuber?

Eu tinha 17 anos quando ouvi João Gilberto. Mas ver “La strada” aos 15, ler William Saroyan aos 14 e Clarice Lispector aos 18 foram experiências também transformadoras. Assim como João Cabral e Guimarães Rosa. Nada depois pôde ter o mesmo impacto. Bem, algumas cenas de Glauber, uns filmes de Goddard, o “Rei da vela” de Oswald por Zé Celso, a poesia concreta paulista, a leitura precoce de “As palavras”, de Sartre (e de “Tristes trópicos”, de Lévi-Strauss), a leitura tardia de “Em busca do tempo perdido” de Proust (e de “A montanha mágica” de Thomas Mann — eu tinha lido “Morte em Veneza”, mas isso não me pareceu nem de longe tão importante) foram também coisas grandes que aconteceram na minha vida. Depois disso, muita admiração e encanto, mas nada tem a mesma capacidade formadora que essas experiências tiveram. Na minha idade, mais difícil ainda.

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