Exclusivo: Tom Zé entrevista Gil e Caetano
Entrevista para o Jornal O Globo (30 de dezembro de 2015)
Por Leonardo Lichote
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Fotos: Mônica Imbuzeiro / Agência O Globo
RIO — Um dos fundadores da Tropicália, personagem da “foto de família” do álbum-manifesto do movimento, Tom Zé teve uma trajetória que correu paralela e distanciada das de Caetano Veloso e Gilberto Gil. Agora, quando os dois últimos celebram seus 50 anos de carreira com o CD e DVD “Dois amigos, um século de música — Multishow ao vivo” (Sony), O GLOBO propôs um reencontro dos “parentes afastados”.
— Não me lembro de ter sentado para uma conversa assim com Gil — contou Tom Zé, que durante o encontro disse, em tom afetuoso, ter medo do ex-ministro da Cultura.
Repleta de gargalhadas e de memórias que vão do sertão à chegada do homem à lua, confissões de inveja e revelações de bastidores da turnê da dupla, a conversa tocou também no atual momento político brasileiro. Para eles, a radicalização entre esquerda e direita e a presença do ódio fundamentando as relações estão entre os males que a música (“os anticorpos da nação”, como identifica Tom Zé) pode combater. Uma perspectiva que se afina à fé de que “as camélias da segunda abolição virão”, como afirma o verso da canção inédita que Caetano e Gil apresentaram na turnê brasileira de “Dois amigos”.
Tom Zé: Os olhares de um para o outro no DVD são muito engraçados. Porque, quando a gente está fazendo essas coisas, por mais que confie em quem está junto e no que está fazendo, toda hora olhamos para a pessoa para decidir se aquilo é aprovado ou não.
Gilberto Gil: Ainda mais no nosso caso. Teve um período longo da nossa trajetória que foi muito compartilhado, espelhado um no outro. Toda música que a gente fazia mostrava um para o outro.
Tom Zé: Vendo o show, me veio outra coisa. A nação tem anticorpos. Os músicos construíram uma defesa a todos os bacilos de koch que o mundo pode ter. Ninguém tem uma canção popular como a gente tem desde os tempos dos arranjadores da Rádio Nacional.
Caetano Veloso: Leo Peracchi, Radamés Gnattali...
Gil: (Lindolpho) Gaya...
Tom Zé: E mesmo os que tinham os conjuntos na rádio. A gente, quando ouvia aquelas músicas, ouvia num arranjo excepcional e não imaginava...
Gil: Que era tão excepcional.
Tom Zé: A gente achava que nasceu assim. Nenhum país tem isso. E vocês... O melhor a dizer do show é: eu também me afogo dentro d’água (risos).
Caetano: Gostei de você qualificar como anticorpos. Há algo disso mesmo. Há certas forças do organismo do país...
Tom Zé: Um tá querendo derrubar, outro tá querendo manter, mas os anticorpos estão aí, nenhum lado está livre disso.
Caetano: O show entra para fortificar os anticorpos.
Gil: Sim, o sistema imunológico.
Tom Zé: Fico arrepiado. Lembro que Alain Resnais fez um filme no qual dizia que o ser humano aprende mais de 0 a 2 anos, quando não sabe nem a língua. Fico pensando que ouvidos ele tem, como ele chupa de todo mundo talvez coisas muito mais sensíveis. Aí penso nos nossos quintais, a gente no berço com essa capacidade de percepção profunda. Por exemplo, em Irará não corre uma gota d’água e tem a chegança, uma dança dramática na qual os caras abordam navios, falam toda a linguagem de navios, ficam lutando com espada para expulsar o incréu, que na verdade já está dentro da gente, não pode mais ser expulso (risos) . A sociabilidade estava em diversos níveis, o aguadeiro que bota água no pote. E esse povo, cada um fazendo parte de uma coisa, acabava trazendo no corpo, na fala, alguma chegança... Não é o aboio, o aboio nunca me entusiasmou e nunca ouvi em Irará com tanta constância.
Caetano: Gosto muito de aboio, ouvi uns bonitos, a maioria mais do Nordeste mesmo: Pernambuco, Paraíba.
Gil: Ituaçu (cidade baiana onde Gil passou a infância) tinha muito aboio. Porque é a região entre a caatinga e o Gerais. Os tropeiros vinham para a feira, aquele fluxo de gente com as mercadorias, as passagens do São Francisco, o contato com o litoral, com a Baía de Todos os Santos vindo por ali também. Aquilo tudo criava um tráfego muito interessante.
Tom Zé: Uma escola.
Caetano: Vocês são mais sertanejos do que eu, que sou muito do Recôncavo.
Tom Zé: Onde foi que Luiz Gonzaga bebeu, Patativa do Assaré? Porque nossa música vem da cultura celta, a fundamental da Europa antes da romanização. Depois no século VII chegou outro povo de grande tradição cancionista, o povo moçárabe. E, por fim, a canção sufi da Pérsia. Mas já estou eu falando como um filhadaputa ...
Caetano: Eu estou adorando ouvir!
Gil: Não quero outra coisa (risos) .
Tom Zé: Quando vocês estavam para começar o show na Bahia antes de ir para a Europa (gravado no disco “Barra 69”) , eu estava do lado de fora do teatro, vendo pela TV a chegada do homem à Lua. Porque o negócio da corrida espacial... Não é a toa que eu ajudei a fazer “2001”. Eu pensava: “Ai meu Deus, não posso deixar Caetano e Gil”. Vocês iam começar e (o astronauta Neil) Armstrong estava descendo a escada. Aí deixei ele lá pelo terceiro degrau e entrei no show.
Caetano: Isso é bem louco. A gente não viu a descida do homem na lua porque estava fazendo o show de despedida (para o exílio em Londres) .
Tom Zé: Foi uma coisa ligada a isso que começou essa conversa toda. Nessa época, li no Arthur C. Clarke que o povo árabe era o mais culto do mundo no século VII, quando invadiu Portugal. Li que se o rei Charles Martel não tivesse impedido que os árabes ocupassem toda a Europa, então nós não estaríamos indo à Lua, mas sim às estrelas mais próximas. Foi ali que descobri que os árabes invadiram a Europa. E que depois (pelos ibéricos) foram para essa região minha e do Gil. Euclides da Cunha falava em “Os sertões” que o nordestino age como um cientista. Um dia, por acaso, porque eu nem era de leitura, fui ler Euclides da Cunha e desconfiei que ele estava falando do cara que eu atendia na loja do meu pai. Comecei a sentir uma febre que vinha de lá de dentro. Meus companheiros estavam sendo comentados num livro.
Caetano: Mas Euclides, quando bate, bate muito forte. Mesmo para quem nasceu no Recôncavo, fora desse universo sertanejo.
Tom Zé: Tenho a desgraça e a felicidade de conviver com vocês. Porque sendo humanos de vez em quando sentimos uma coisa que as pessoas não gostam, que é a inveja.
Gil: Às vezes digo: a santa inveja. Uso muito essa expressão. A inveja invadiu minha vida em muitos momentos.
Tom Zé: Pensei (vendo o DVD): “Eu não posso sofrer com isso”. Porque tenho muito medo de você, Gil. Caetano é mais caridoso comigo, mas você é outro mundo, outro universo. Aí uma hora o computador parou pra recarregar. Ficou o seu rosto congelado. Pensei: “Agora vou olhar pra ele, não vou fugir não”. Passava da testa pros olhos, dos olhos pra boca, mas como eu tenho medo! Não tem nada, Gil, a vida é assim (risos) .
Gil: Sim, estou entendendo. Com relação a Caetano, o que sinto não chamaria de medo. É respeito.
Caetano: E eu tenho muita inveja da musicalidade natural de Gil, essa capacidade inata de captar a relação entre as alturas dos sons.
Tom Zé: E o violão sinfônico.
Caetano: Sim, isso se traduz em como ele toca violão e como ele percebe a estrutura das canções. Isso, eu não tenho.
Tom Zé: Uma vez você, Caetano, me disse assim: “Quero que você venha para São Paulo porque quando der entrevista você vai abafar, vai pintar o diabo”.
Caetano: Achei que você indo para São Paulo àquela altura (no período da Tropicália) ia realmente traduzir...
Gil: Ia dizer muito do que a gente queria.
Tom Zé: Pensei: “Caetano está enganado”.
Caetano: Zeca, meu filho que segue tudo o que acontece, me mostrou que o “Pitchfork”, esse site americano de música, formador de opinião de alto nível, escolheu entre as melhores canções da década de 1980 uma única canção brasileira, que foi “Nave Maria”, de Tom Zé. É uma beleza, porque é um negócio bem original, único. E muito ousado. Ou seja, você pode ter pensado em algum momento que e eu estava errado, mas no fim das contas eu estava certo (risos) .
Tom Zé: Adorei ouvir (no DVD) aquelas duas canções. A do Gil é “Marginália II”, a sua é a primeira, de 1962.
Caetano: “É de manhã”. Você viu que Gil rearmonizou? Quando ele propôs a rearmonização, eu só pensava em você! “Isso aqui é uma traição ao que Tom Zé viu nessa canção.” Você gostava da radicalidade modal da música.
Tom Zé: Mas não era o modalismo que entrava num sofrimento nordestino. Era uma coisa joãogilbertiana em cima do nordestino.
Caetano: E “Marginália II”?
Tom Zé: Aí é a sofisticação, né?
Caetano: Um dos maiores prazeres para mim neste show é ter aprendido a pecinha que Gil fez para acompanhamento. Depois de fazer alguns shows, aprendi e faço junto com ele. Isso me dá um prazer enorme.
Gil: E eu acabei fazendo junto com você. Na minha proposta, quando fiz isso em casa na véspera do ensaio, era para você fazer aquilo e eu fazer uma outra coisa em cima, complementando. Quando eu vi que você aprendeu e fazia, veio um prazer novo pra mim naquilo que eu tinha feito. Não precisa de mais nada, já estava bonito desse jeito.
Caetano: No show, Gil botou um negocinho em “Terra” que é quase nada, mas que muda tudo. Ele é incrível. Eu toco a canção toda, como sempre toquei, mas tem esse detalhe do Gil.
Gil: Outro dia uma moça disse: “pois é, vi no show, você toca ‘Terra’”. Eu corrigi: “Não, é Caetano que toca”.
Caetano: Sim, você não faz quase nada na música. Mas ela tem razão. Você faz duas notinhas aqui, duas ali, mais três e pronto. Muda tudo.
Tom Zé: É aí que estão os anticorpos. Décio Pignatari dizia: “futebol é uma arte que todo mundo entende”. E o povo entende essa coisa profunda da música popular. Essa geração que está chegando, pra quem a ética é importante, o compromisso com o planeta é importante, eles têm que se alimentar de vocês, do Jobim... Sempre tivemos essa tradição penicilínica na música. A criança pobre fica na lama. Ela morre? Não, cria defesas.
Caetano: O Brasil está estudando o samba.
Tom Zé: Essa canção, “Odeio”, por baixo dessa letra tem outra coisa. O Nordeste agora governa o Brasil todo, a partir de um procedimento nordestino, um jeito nordestino, que acabou tendo problemas, mas se eu falo dos anticorpos é para não falar das superfícies. E “Odeio você” é a coisa mais falada pelo coração do Brasil hoje. Nunca se falou tanto “odeio você”, talvez em nenhum país. “Odeio você” está no coração de todo mundo. A pessoa olha para o lado e diz: “Deixa eu ver se eu vou odiar aquele ali”.
Caetano: Sim, o refrão ecoa. Quando ele entra, as plateias agora tomam conta dele e o endereçam (na recente série de shows no Circo Voador, a plateia completava o “odeio você” com o grito de “Cunha”, destinado ao presidente da Câmara, o que já tinha acontecido há dois anos na turnê de “Abraçaço”, mas dirigido ao então governador do Rio, Sérgio Cabral) .
Tom Zé: Quando soube que o povo gritava “Cunha”, nem liguei. Porque posso torcer para cá, para acolá. A maior precisão é a dessa coisa que tá no coração do Brasil, o “odeio você”.
Caetano: Jorge Mautner fala que é a maior canção de amor: “Odeio” (risos) .
Gil: É coragem.
Caetano: Quando Mautner ouviu, ele chorou tanto, soluçando. Aí fizeram um clipe e chamaram ele: “venha para chorar na hora”. Ele foi daquele jeito dele: “Está na hora?”. Aí botaram a câmera, quando chegava no refrão ele pingava um colírio, fazia caras de ator japonês, totalmente frio, só a máscara do choro, sem choro nenhum (risos) .
Tom Zé: Quando Gil fez e me mostrou “Eu vim da Bahia”, não gostei muito da música. Era como aquela que você fez para o CPC, “O samba vai vencer” (“Samba em paz”)... Mas hoje, é engraçado, vejo que as coisas que vocês fazem podem continuar fortes em várias outras situações. E cada vez mais fortes.
Caetano: A do CPC até hoje eu acho muito fraca, mas “Eu vim da Bahia” eu sempre gostei. Achava bonita aquelas cadências, a harmonia meio barroca.
Gil: Eu tinha um certo enjoo, tanto que acabei reduzindo a harmonia no “Gilbertos samba” (em 2014). Fiz em dois acordes, tirei tudo, um minimalismo bem exigente.
Caetano: Antes, o João Gilberto tinha gravado.
Gil: Sim, aí é que eu fiquei de bem com “Eu vim da Bahia”. Mas ainda assim eu fiz questão de fazer a redução, limpar aquilo tudo.
Caetano: Para o show, pedi pra você retornar à harmonia original.
Tom Zé: E aquela música da morte, Gil (“Não tenho medo da morte”)?
Gil: É pra nós, velhinhos.
Tom Zé: “Eu terei de estar presente”, achei isso uma maravilha.
Gil: É a diferença entre o morrer e a morte.
Caetano: É muito forte. Quando ele canta isso no show fico olhando para ele, às vezes olho para a plateia.
Gil: Depois desse show, Flora (mulher de Gil) perguntou ao meu neto Bento, de 11 anos, qual era a música de que ele mais gostava. E ele: “Não tenho medo da morte”.
Caetano: Essa música é incrível, e é muito nordestina. O modo como os versos vão: “Não tenho medo da morte/ Mas medo de morrer, sim/ A morte é depois de mim/ Mas quem vai morrer sou eu”. E é a música mais nova de Gil que ele canta no show. Há outra mais nova, “As camélias do quilombo do Leblon” (a composição inédita que os dois lançaram na turnê).
Gil: Gosto muito desse tema (a abolição da escravatura brasileira e seus reflexos, com referência ao núcleo abolicionista do título e às flores que eram um signo da campanha antiescravidão) . Quando Caetano veio com a ideia, minha cabeça me levou para o “Noites do norte”, o trabalho que ele fez quando estava lendo Joaquim Nabuco. E tem o estímulo que veio de nossa viagem a Israel, aquela paisagem árida, agreste, nordestina, aquele povo como se fosse os sem-terra daqui, mas na Cisjordânia. E a coisa da Princesa Isabel, esse resgate que Caetano coloca como exigência do papel de importância dela, a partir desse desprezo que parte dos historiadores brasileiros tem em relação à sua figura. Eu ficava me lembrando que botei o nome da minha filha de Isabela por causa dela. Caetano tinha acabado de tomar banho na casa dele em Salvador, teve a ideia da música. Quando chegou lá em casa para jantar, me contou. Falou que tinha uma parte que é parecida com Ary Barroso.
Caetano: “No tabuleiro da baiana”.
Gil: Falei: “Vamos mudar umas notas aqui”. Retoquei, era bonito.
Caetano: Gil manteve a lembrança do Ary Barroso e fez o fecho da canção: “As camélias da segunda abolição virão”. Esse negócio dos anticorpos...
Gil: O sistema imunológico do país.
Caetano: Algo tem que ter, porque as ameaças são muitas.