Caetano Veloso: "Para a ditadura a minha música era como as armas usadas pelos guerrilheiros"
Entrevista para o Jornal ABC Cultural (8 de abril de 2022)
Por Israel Viana
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Passado e presente. Foto mais antiga: Thereza Eugênia. Montagem: ABC.
Caetano Veloso (Santo Amaro da Purificação, 1942) lembra perfeitamente o que cantou em casa em 27 de dezembro de 1968: 'Súplica', valsa gravada por Orlando Silva em 1940; 'Assum Preto', samba de Luiz Gonzaga, o "Rei do Baião", e 'Onde o Céu Azul É Mais Azul', tradicional canção que o "emocionou muito". Não celebrou nenhuma festa, foi apenas mais uma noite que passou com os amigos no apartamento em São Paulo que alugou com Dedé, sua primeira esposa. "Ficaram comigo porque foi a última coisa que cantei antes que a Polícia Federal bateu na minha porta e nos prendeu. [Gilberto] Gil estava lá porque estava namorando a irmã de Dedé, Sandra, com quem teve três filhos", disse o cantor e compositor à ABC Cultural.
Ele tinha motivos para estar com medo. Duas semanas antes, a ditadura havia decretado o Ato Institucional nº 5, resolução que legitimava a perseguição política, a prisão sem julgamento e a tortura. Veloso, aos 26 anos, estava no centro das atenções, pois acabava de lançar, junto com Tom Zé, Os Mutantes, Gal Costa e o amigo Gilberto, 'Tropicália ou Panis et Circensis', o disco que desafiou os militares e mudou o música do Brasil para sempre.
É assim que Caetano conta o que aconteceu depois no documentário que estreou no último Festival de Cinema de Veneza e na In-Edit em Barcelona, 'Narciso em Férias', sobre o episódio traumático: "Chegaram cedo à minha casa. Não sei... quando amanheceu. Eu não consegui dormir a noite toda e, quando estava começando a dormir, a campainha tocou. Eu não tinha ideia do que era isso. Gil e eu fomos colocados em uma van. Achei que seria uma questão de dez minutos respondendo perguntas de um oficial em São Paulo, mas para nossa surpresa, eles pegaram a rodovia e nos levaram para o Rio de Janeiro. Foi um pesadelo."
Os dois músicos passaram a primeira semana em uma cela no quartel das Forças Armadas do Rio de Janeiro. Em seguida, três meses de prisão que já foram descritos por Veloso em 'Verdade Tropical', a autobiografia publicada no Brasil em 1997, que foi reeditada no ano passado por Marea em espanhol e na qual se baseou o documentário dirigido por Renato Terra e Ricardo Calil. A estes seguiram-se quatro meses de prisão domiciliária e três anos de exílio que o artista descreve hoje como o período mais triste da sua vida.
Começou com uma 'performance' absurda e sinistra que assim narra: "Quando chegamos ao edifício das Forças Armadas, dois soldados levaram-nos para uma grande sala onde havia um oficial de alta patente sentado numa cadeira de estilo monumental. Ele olhou para nós por um longo tempo sem dizer nada. Pensei: 'Esse deve ser o cara que vai nos interrogar'. Então ele tocou uma campainha debaixo da mesa e dois soldados vieram. Ele disse a eles algo que eu não pude ouvir, e depois de um tempo, eles voltaram com comida. Puseram a mesa para ele e ele comeu em paz. Assistimos a todo o banquete enquanto ele nos observava. Quando ele terminou, ele ficou em silêncio por mais um tempo. Durou uma hora e não houve interrogatório. Era uma tortura psicológica. À noite, eles nos transferiram para um quartel e nos separaram."
O primeiro número oficial de vítimas desses anos só foi divulgado em dezembro de 2014 com o relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV). Ele contou 431 assassinatos e desaparecimentos entre 1964 e 1985. As Forças Armadas pouco colaboraram, então acredita-se que foram mais. Centros de tortura ilegais e oitenta empresas que espionavam seus trabalhadores para a ditadura também foram identificados. Entre eles, Volkswagen, Chrysler, Ford, General Motors, Toyota, Rolls-Royce, Mercedes Benz e Petrobras. Como resultado da Lei de Anistia de 1979, essas violações de direitos humanos nunca foram julgadas.
Entre elas, a acusação contra Caetano e Gilberto de terem publicado a música 'Che', considerada propaganda socialista de apoio à revolução cubana; de serem "terroristas culturais", por pertencerem ao 'Grupo Baiano' e outras organizações "de compositores pró-comunistas", e de cantarem uma paródia do hino nacional "ao ritmo da Tropicália" num concerto no Rio de Janeiro. O julgamento foi "surreal", garante, porque nada disso era verdade: nunca houve uma música ou álbum com esse nome, nem uma organização criminosa e, muito menos, a já mencionada zombaria, como indicam as 330 páginas de denúncias apresentadas pelo regime. O cantor e compositor, que lançou em outubro novo álbum, 'Meu Coco' (Sony), tentou explicar aos militares sem sucesso: "Quando perguntado se podia cantar o hino com a melodia de 'Tropicália', respondeu que é impossível, porque os versos do hino nacional são dez sílabas e aqueles de 'Tropicália' têm oito sílabas poéticas. Além disso, o sotaque poético é totalmente diferente".
"O que significa 'terrorismo cultural'?"
— Usaram essa expressão para dizer que o que fazíamos na cena cultural era a mesma coisa que os guerrilheiros faziam com as armas. Não se deve esquecer que toda a transcrição do meu interrogatório estava cheia de erros de português e incluía frases mal escritas e desordenadas. Houve muita confusão durante a ditadura, embora os entusiastas da direita agora defendam que foi um período mais racional do que pensamos, mas não.
“Na prisão, um sargento arriscou sua posição e arranjou para você encontrar Dedé em sua cela. É o único momento do documentário em que ele se emociona. Por quê?"
Não pude conter as lágrimas porque percebi que não havia lembrado seu nome. Aquele soldado não era muito jovem. Ele era um mulato de Salvador da Bahia que sabia que nunca iria subir acima de sua posição porque não tinha educação suficiente. Gil e eu ficamos presos até fevereiro de 1969, depois confinados em Salvador por mais quatro meses e finalmente exilados à força na Europa. Diante de todos aqueles traumas, voltei ao Brasil sem me lembrar.
"Você nunca o encontrou novamente para agradecê-lo?"
Eu nunca consegui porque não conseguia lembrar o nome dele. Não pude ir ao Rio de Janeiro procurá-lo. Eu deveria ter investigado o próprio Exército e a única informação que eu tinha sobre ele era que ele havia feito o serviço militar no quartel-general onde Gil e eu estávamos presos. Ficaria muito feliz em poder agradecê-lo pelo que fez e conversar com ele sobre a vida e o amor.
— Na época de sua prisão, você acabava de publicar 'Tropicália', que se tornou uma espécie de manifesto cultural e político pedindo mudanças no Brasil. Foi perfeito ou você mudaria algo hoje?
— Não diria que foi “perfeito”, mas com certeza foi o mais representativo do nosso movimento que poderíamos ter feito naquela época. Se eu pudesse voltar a 1968, tentaria fazer mais coisas para mudar a situação política naquela época, mas não as músicas e os arranjos musicais daquele álbum.
- Pode haver um movimento musical semelhante, que desperte a consciência desses "entusiastas da direita" sobre a necessidade de mudanças no Brasil de Bolsonaro?
- Espero que sim.
Sua vitória eleitoral em 2018 o surpreendeu?
“Estávamos preocupados com essa possibilidade. Minha empresária, Paula Lavigne, que é a mulher com quem convivo há anos, tinha certeza de que ele ia vencer, depois de observar os debates na televisão e as pessoas nas ruas e nas redes sociais. Para a maioria dos nossos conhecidos. No entanto, era impossível. Quando foi para o segundo turno, houve uma mudança na votação, mas foi inútil. É um fenômeno mundial.
"Por que você acha que isso aconteceu?"
— Por ressentimento. Acredita-se que os trabalhadores e os mais pobres tenham sido negligenciados pela esquerda, que parecia dar mais atenção à legalização das drogas, à aprovação do direito ao aborto e ao reconhecimento do movimento LGBTIA+ do que à redistribuição da riqueza e criação de oportunidades. Isso ajudou Trump a vencer as eleições nos Estados Unidos, ao qual se somou o fenômeno das redes sociais, memes e Cambridge Analytica [consultoria britânica que coletava dados de milhões de usuários do Facebook, sem o consentimento deles, e os usava para propaganda política]. O mundo está passando por uma grande mudança e as pessoas não sabem o que fazer com isso.
— Em termos de música, o tropicalismo começou com a fusão da música tradicional brasileira com o jazz e o rock. Alguma vez te incomodou ser visto como subserviente ao imperialismo dos EUA?
— É curioso, porque o rock fez, efetivamente, os nacionalistas de esquerda dizerem que éramos submissos a esse imperialismo. No entanto, o jazz já havia se infiltrado no segundo período da 'bossa nova'. As bandas de baladas cariocas, especificamente as da rua de Copacabana apelidadas de 'O Beco das Garrafas', e o famoso programa de TV de Elis Regina e Jair Rodrigues, já apresentavam uma forte influência do 'jazz'... primeiro.
"Você quer dizer que a influência vem de longe?"
— Isso mesmo, a 'bossa nova' tinha muito a ver com o 'cool jazz' [estilo criado em 1950 por Miles Davis com seu álbum 'Birth of the Cool', publicado no Blue Note], mas antes mesmo de termos cantores, compositores e intérpretes altamente influenciados por este estilo genuinamente americano. No final dos anos 50 e início dos anos 60 também havia artistas muito famosos e comerciais influenciados pelo rock, como Roberto Carlos e Erasmo Carlos, aos quais prestávamos muito mais atenção do que os Beatles ou Jimmy Hendrix. Isso é algo que sempre me chocou.
— Eles foram elogiados e você criticado...
— Sim, não ocorreu a ninguém naquela época dizer que Dori Caymmi ou Edu Lobo eram submissos ao imperialismo norte-americano pela presença do 'jazz' em sua música, mas nosso interesse pelo 'rock'n'roll', principalmente para o 'neo-rock' britânico, que descobrimos na época, causou indignação.
— Quais eram essas bandas e como seus discos chegaram ao Brasil da ditadura?
— Os discos dos Beatles e dos Rolling Stones venderam bem desde o início. Alguns de Pink Floyd, Hendrix e The Doors também. Lembro-me de ouvir Big Brother and the Holding Company [grupo de rock psicodélico formado em São Francisco em 1965] na casa do poeta Augusto de Campos quando ele voltou dos Estados Unidos, bem na época em que também nos apaixonamos por Janis Joplin em 'Verão'. Aquele arranjo da banda dele para aquela música não ficou muito bom, mas sua voz e sua interpretação foram incríveis. De qualquer forma, os que mais nos marcaram foram os Beatles.
— Antes dessas descobertas, você não ouvia música dos Estados Unidos?
- Sim. Eu adorava Ray Charles e quando criança ouvia Nat King Cole, Sinatra, Ella Fitzgerald e Sarah Vaughan. Mais tarde, quando a bossa nova se tornou legal para mim, me apaixonei pelos discos de Chet Baker e Miles Davis com Gil Evans. Em 1960, descobri Thelonious Monk, mas também a cantora gospel Mahalia Jackson. Alguns desses discos foram trazidos por meus amigos dos Estados Unidos. Em 1966, no entanto, sentimos a necessidade de continuar com o que a bossa nova havia feito e começamos a prestar atenção aos grandes sucessos brasileiros dos anos 40, 50 e 60 e sucessos pop internacionais como 'Strawberry Fields Forever '.