1956: O ano que Caetano Veloso foi nosso

Entrevista para a Revista Rio In (Janeiro de 2014)

Por Fabio Seganttini


Caetano Veloso foi sim, nosso, no ano de 1956, e morou no bairro de Guadalupe, Zona Norte do Rio, durante um ano, entre janeiro de 1956 e janeiro de 1957, dos 13 as 14 anos de idade.

Do bairro, o cantor ainda guarda a recordação de uma época onde andava de trem, ia escondido para o Muquiço e queria ser pintor. Das músicas que ouvia e cantava em casa que eram sucesso nas rádios e da primeira vez que viu um programa de televisão.

Vejam como exclusividade a entrevista deste ícone da música popular brasileira nos concedeu sobre este período.

Rio In: Caetano, muitos moradores do bairro de Guadalupe ainda não acreditam que você tenha morado aqui no ano de 1956. O que dizer para essas pessoas que ainda desconfiam sobre a veracidade desta informação que, inclusive, é omitida no seu site oficial?

Caetano - Vou falar com as pessoas que são responsáveis pelo meu site oficial para que consertem isso. Absurdo haver essa lacuna. Morei em Guadalupe de janeiro de 1956 a janeiro de 1957, um ano inteiro, e justo na passagem dos meus 13 para os meus 14 anos. Meu endereço era Rua 1, quadra 6, casa 22. A casa ainda está lá e ainda pertence às filhas de meus primos com quem morei.

Rio In - Como foi a sua vinda para o bairro?

Caetano - Eu tinha vindo ao Rio - e ficado em Guadalupe - quando tinha 11 anos. Na mesma casa. Carlos Alexandre Salles Moreira, um policial (escrivão da Polícia Civil), e sua mulher Margarida (nascida Velloso Salles), minha prima carnal (sendo que ele era primo carnal dela pelo lado Salles), moravam nessa casa. Uma outra prima minha (e de Margarida), chamada Lourdes Velloso Costa ("Minha Inha"), tinha vindo de Santo Amaro, na Bahia, para viver no Rio, e foi morar com eles. Carlos Alexandre e Margarida já moravam no Rio fazia muito tempo (eu não os conheci em Santo Amaro), mas Minha Inha tinha vivido em casa de meus pais até eu completar 8 anos. Ela era muito apegada a mim. Em 1953 ela voltou a Santo Amaro e me trouxe para passar as férias de verão com ela. Em 1956 ela foi outra vez a Santo Amaro e me trouxe para fazer exames médicos (ela era enfermeira), pois eu estava sempre com inflamação nas amígdalas, muito magro, não dormia bem e ia muito mal no ginásio. Eu ia passar só os 3 meses de verão aqui. Mas Minha Inha achou que eu precisava fazer mais exames e pediu a meus pais que me deixasse ficar todo o ano. Ela prometeu me matricular numa escola carioca, mas não conseguiu. Eu passava o tempo ouvindo rádio (música na Nacional e humor na Mayrink Veiga) e lendo Monteiro Lobato. Muitas vezes fui ao auditório da Rádio Nacional, com Minha Inha, ver todos os grandes nomes da música popular (Ângela Maria, Emilinha Borba, Dolores Duran, Marlene, Cauby, Linda Batista, todos). Meus vizinhos eram Celso e Nelson, filhos de Dona Rosa, uma portuguesa que viera para o Brasil ainda criança e, portanto, não falava com sotaque lusitano. A Rua 1 era a primeira paralela à "Variante" (que é como todos chamavam a Avenida Brasil então). Eu ia ao centro de trem (eu adorava!) ou de ônibus (menos interessante, mas gostava de ver Irajá e o "amarelinho" interditado). Poucas vezes ia à Zona Sul. Conheci Copacabana (onde vi Ivon Cury na calçada), tomei alguns banhos de mar na Praia Vermelha e, com C. Alexandre, fazíamos às vezes a volta pela Zona Oeste, passando por Realengo e Bangu até chegar em Jacarepaguá - e dali para o Recreio dos Bandeirantes, Barra, São Conrado, Leblon etc. Mas eu tomava mais banho de mar em Niterói, sobretudo no Saco de São Francisco. Conto muito disso no livro "Verdade Tropical", que é, em parte, uma autobiografia. E compus uma canção chamada "Meu Rio", em que trato do assunto.

Rio In - O que você lembra sobre Guadalupe desta época?

Caetano - Vi TV pela primeira vez na minha vida na casa de Arlindo, um pintor amigo de meus primos, que me ensinava a pintar: na Bahia a TV só chegou em 1960. Às vezes eu ia à favela do Muquiço, do outro lado da Variante, meio escondido dos pais dos outros garotos e de meus primos. Aquele prédio serpenteante que fica perto da estação de Deodoro (onde tomávamos o trem) me impressionava muito. Mas a verdade é que nunca deixei de ir a Guadalupe enquanto Minha Inha, Carlos e Margarida eram vivos. Tânia, a filha mais velha do casal, já era nascida em 1956. Fui sempre amigo dela, até sua morte prematura há alguns anos. Meu filho Moreno cresceu com o hábito de ir de vez em quando a Guadalupe - e Zeca, meu segundo, que nasceu 20 depois de Moreno, também chegou a ir umas vezes quando ainda era pequeno. Carla, a irmã mais nova de Tânia, ainda mora lá. Guadalupe nunca saiu da minha vida.

Rio In - Em relação às suas atividades, o que foi produzido (letras, canções, entre outros) enquanto estava em Guadalupe?

Caetano - Eu cantava em casa as músicas que ouvia na Nacional. Mas queria ser pintor. Desenhava o tempo todo e comecei a pintar umas telas, orientado por Arlindo.

Rio In - A informação de um site sobre MPB diz que você, durante este período, frequentou o auditório da Rádio Nacional. Como foi esta época para o Rio e para a Música Popular Brasileira?

Caetano - A música popular era uma paixão para mim. Eu não imaginava que iria fazer parte dela tão diretamente.

Rio In - Em 2012, você retornou ao bairro de Guadalupe para participar de um debate em uma sala de cinema após a exibição do documentário “Tropicália”. Na ocasião, falou sobre ter ido mais por causa do bairro do que pelo documentário. Qual o motivo dessa frase sobre o ponto de vista de sua relação com o bairro. Foi uma saudade de alguém em especial ou apenas do bairro que fez parte da sua vida?

Caetano - Do bairro. É claro que ele significava Tânia, Minha Inha, Margarida e Carlos, além de Celso e Nelson. E as filhas mais novas do casal (Cristina e Carla) têm amizade comigo. Carla estava no cinema naquela noite.

Rio In - A Lona Cultural de Guadalupe, palco de diversas apresentações artísticas da região, seria inaugurada com o seu nome, mas a informação que temos é de que foi um convite recusado. Algum motivo em especial?

Caetano - Se fosse por Guadalupe, eu teria orgulho em ter meu nome na lona. Mas sempre recuso o uso de meu nome em coisas públicas. No fundo, me arrependo um pouco de não ter quebrado essa regra para o caso da lona de Guadalupe (que está na letra de "Pé do meu samba", que compus para Mart'nália gravar).

Rio In - Sobre os seus trabalhos, há alguma citação sobre Guadalupe em suas canções, mesmo que nas entrelinhas? Algum dia o bairro servirá de inspiração ou é algo apenas para ser guardado com carinho pelo ilustre ex-morador?

Caetano - Em "Meu Rio" cito explicitamente o bairro (no verso "Guadalupe em mim é fundação", referência ao fato de o bairro ser chamado de Fundação - de Fundação da Casa Popular, o Minha Casa Minha Vida da época - e de ter sido um período fundante da minha personalidade). E em "Pé do meu samba" digo que alguém (na verdade a própria Mart´nália) é, entre outras coisas emblemáticas do Rio (como a Lapa ou a curva de Copacabana), "a lona de Guadalupe". E, claro, muito do que aprendi e senti no meu ano carioca em Guadalupe está no clima de todas as minhas canções.

Rio In - Sobre os novos projetos. Como anda a carreira, novos trabalhos e turnê?

Caetano - Estou ainda em turnê com o "Abraçaço", show dedicado ao disco de mesmo nome. No ano que vem lanço o DVD correspondente, no Circo Voador, e viajo com o show para o Hemisfério Norte (já fiz quase todo o Brasil e fui à Argentina, ao Uruguai e à Colômbia com esse show).

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