Alegria genuína

Entrevista para a Revista MTV

Por Mônica Figueredo

2002

O papo começa atrapalhado, com as pessoas falando ao mesmo tempo. Tema: Benjor, seu Acústico MTV.

MTV - Antigamente você falava que tinha os seus dois Jorges...

Caetano - O Ben e o Mautner! Estou fazendo um disco com o Mautner. Não sabemos ainda exatamente qual vai ser a fórmula...

Que delícia, este disco era um disco que se devia mesmo...

Justamente, foi o que pensei. E nele vou regravar Maracatu Atômico, não resisto - isso é uma coisa que todo mundo tem de fazer um dia, aquilo é lindo demais!

O que você anda ouvindo hoje?

Você ouve o que soa, né? É diferente de ler, de ver um quadro, que você olha o que quer. Você ouve o que toca! A música é evasiva, você não escolhe muito... Você pode até escolher, mas tem de criar uma situação especial pra ouvir aquilo que escolheu. Não gosto tanto de música por isso, acho chato parar pra botar um disco e ficar ouvindo... Mas, mesmo assim, boto e ouço, pra ver como saiu, como que é. 

O pessoal traz comida japonesa. Sashimi. Caetano almoça. 

Você não comeu nada...

Como não comi nada? Comi todo o salmão, e um pouco do atum.

Por isso que você é tão magro!

Você acha que estou magro? Não estou, não. Tenho 10 quilos a mais há uns dez anos...

Pra gente não fez diferença... Para você fez?

Fez! Foi a única coisa que melhorou em mim!

Como assim, "a única coisa que melhorou"?

Agora fiquei no peso que devia ter. Se eu tivesse esse peso com 35 anos, seria um Deus perfeito! Mas, com 10 quilos a menos, isso causava muitos problemas e o resto era tudo uma merda, desequilibrava a informação...

Deus sabe o que faz!

Bom, Deus escreve certo por linhas tortas, então, as linhas sempre têm que ser tortas!

Você gostava mais do seu cabelo comprido?

Não, o cabelo podia ser comprido ou curto, eu gostava de mim! Eu me achava bonito. 

Você se acha bonito hoje?

Não.

Você também diz que não canta bem, como é mesmo essa história?

Não é bem isso. Eu posso até chegar a cantar bem algumas vezes, mas não é isso. O que eu falo é que não tenho muito talento pra música. 

Você gosta muuuuuuito de cantar, né?

Gosto muito de cantar! Adoro. É muito bom, até cantar em casa, sentar e cantar. E show é uma coisa que gosto de fazer. Adoro a banda, o pessoal da equipe técnica, adoro o cenógrafo... Adoro show sem banda também, mas gosto mais com banda, porque a gente fica convivendo com as pessoas nos ensaios, fica se vendo depois, viaja junto, fica com umas conversas gostosas... Tudo isso eu gosto muito.

O seu aniversário de 50 foi bem comemorado, festejado...

É, teve um documentário na TV, dirigido pelo Walter Salles e pelo Zé Henrique Fonseca, que era pra ter 1 hora de duração, mas o Waltinho foi ampliando, se empolgando. Eu disse: "Já filmamos demais, vamos parar", e ele continuava... E dizia: "Não, que eu sou perfeccionista e não sei o quê. Quero filmar de novo, botar isso, aquilo...", terminou fazendo um negócio de 5 horas! Virou uma minissérie!

E neste ano, com os seus 60 anos, vai ter alguma coisa?

Não, não quero fazer nada em comemoração dos 60 anos. Mas vou fazer festa, porque não gosto de não fazer festa de aniversário, eu faço desde criança, gosto.

Fazer 60 anos... Tem alguma coisa que bate diferente?

Eu venho sentindo há alguns anos que estou mudando de fase. Porque agora vai entrando para o que a gente chama de velhice, vai chegando uma idade mais...

Você se acha velho?

Não. Eu me acho muito mais velho do que quando tinha 32, mas não me sinto como um velho. Agora, não sei se alguém se sente! Os depoimentos que conheço, pelo menos, são assim: de não coincidência da sensação do eu da pessoa com o velho que ela se tornou. A Simone de Beauvoir tem um livro sobre a velhice. Mas mesmo antes, na autobiografia, ela mencionava um negócio que o Sartre já falava, que a velhice é irrealizável, no sentido de você se dar conta, de cair na real daquilo. Você não sente! Você é você, seu corpo envelheceu, mas você não é aquele velho. Ninguém é aquele velho!

Ela sabia o que estava falando...

Ela dizia assim: "Até os 40 e poucos eu sentia que era eu, que era jovem, que não tinha mudado nada, e até me surpreendia: "Puxa, quando era novinha eu pensava que quando tivesse 40 anos ia estar velha e ia ser diferente. No entanto, não senti nada, aos 40 eu continuava sendo eu". Mas ao passar dos 50 dobrei uma fronteira, e sinto realmente que entrei noutra realidade". 

Será que é assim?

Ela era de outra geração, e mulher! Mas dizia: "Sinto que dobrei outra fronteira e que estou em outro território. Quando me olho no espelho e vejo essas marcas da velhice na minha pele, não acho que sou eu, é como se fosse uma espécie de bexiga, de varíola, uma coisa que tivesse me atingido e destruído aquela pessoa que sou de fato. Não sou essa pessoa que tem rugas, com essa pele flácida". Ela diz isso.

E você?

Eu tenho uma grande ajuda genética porque o pessoal da minha família não fica com aparência nem sintomas de velhice muito evidentes muito cedo. Então, não pareço um velho, embora meu cabelo esteja bastante branco... Eu queria estar assim como estou, até bonitinho, aceitável e queria que meu cabelo não estivesse tão branco, para que as pessoas não me chamassem de senhor na rua.

Chamar de senhor na rua enche bem, né?

O "senhor" vem do cabelo branco! Nunca fiz, mas tenho amigos que pintaram o cabelo e as pessoas na rua, os guardadores de carro, não chamavam mais de senhor...

Mas você é o Caetano! As pessoas te reconhecem e mesmo assim te chamam de senhor?

Tem gente que fala assim: "Caetano, você me dá um autógrafo, adoro o senhor.." Ou: "Posso chamar o senhor de você?" Tem gente que fala "você" como se eu fosse da turma! Às vezes tenho de lembrar que tenho 59 anos, porque eu sou um pouquinho da turma mesmo, mas não posso me entregar a uma turma de 22 anos.

Por que não?

Porque não posso me entregar totalmente! Não posso deixar dizer, às vezes, para um amigo de 21 anos: tudo bem, mas vamos lá, tenho 59 anos, sou casado, tenho três filhos, uma porção de coisas que me seguram, não posso estar com a mesma disponibilidade que ele!

Você tem medo de morrer?

Sempre tive medo de morrer e continuo tendo. Sempre tive, desde menino.

Você anda com segurança, essas coisas?

Não. Tenho medo da violência na cidade, não da violência pessoal. Tenho medo da violência social, de que a situação no Brasil nos encaminhe pra algo semelhante ao que acontece na Colômbia. Vejo isso como muito provável e acho muito entristecedor e isso amargura minha vivência das cidades brasileiras que amo, digo São Paulo, Rio, Salvador...

Isso te mobiliza…

Mobiliza, sim! Acho que o medo, e o modo como ele é alimentado, faz parte da preparação desse cenário que temo. Então, não quero criar barreiras de segurança em torno de mim, nem da minha casa, nem das minhas coisas. Não acho que isso seja bom e acho que isso contribui para aumentar a cultura da separação social. É muito perigoso, uma tristeza, e eu adoraria encontrar o fio da meada pra puxar e desfazer esse emaranhado social.

Você tem alguma idéia, o que te passa pela cabeça?

Não, adoraria ter uma idéia assim. Tudo o que faço na vida e também de público está enlevado no desejo de desfazer esse emaranhado. Eu lanço um gesto aqui, outro ali, mas estou tateando no escuro, não tenho força, capacidade, nem autoridade pra isso.

E parece que as coisas só pioram, com as diferenças ficando cada dia maiores...

Quanto mais grades vão botando nos prédios da Zona Sul do Rio ou nos Jardins, em São Paulo, mais separação social existe, mais antagonismo se vê. Sabe o que eu faço? Vou na rua, se um garoto se aproxima do meu carro, abro o vidro e, em geral, eles me olham e sorriem, vêm e falam... Porque abrir a janela é um gesto oposto ao que as pessoas fazem! Não vou aconselhar as pessoas a ser temerárias ou a botar a vida em risco, mas, o que eu puder fazer pra não contribuir com essa separação, vou fazer.

Assim, nos gestos do dia-a-dia...

E, depois, em um país onde a distribuição de renda é tão imoral há tantos séculos… A gente deveria se reunir e fazer uma espécie de mutirão pra superar essa porcaria desse negócio de separação de classe... É muito complicado e todo mundo devia fazer um esforço pra recuperação disso: a classe política e o cidadão, no dia-a-dia. Fazemos muito pouco, tem que fazer muita coisa ainda, porque ninguém está contente com isso, nem os favelados da periferia de São Paulo nem os moradores do Jardim Europa. É uma insatisfação social geral, um mal-estar geral...

Na Bahia é diferente, você não acha? Baiano tem mais auto-estima...

Dizem: "Tenho inveja dos baianos, eles se auto-afirmam". A Bahia está passando por uma fase que o Rizério pessimisticamente diz que é maníaca! Como se fosse uma cidade PMD (psicótico maníaco-depressivo)! Acontece que acho boa a observação dele, mas não participo desse pessimismo, não. Acho que é uma alegria genuína o que existe ali e que tem aspectos muito positivos que servem ao Brasil.

Dá um exemplo dessa coisa positiva.

Uma das razões por que gosto tanto do Carnaval da Bahia e do grande sucesso comercial do axé music é essa capacidade de afirmação.

Como assim, "capacidade de afirmação"?

Sabe qual é o espírito do brasileiro que mais me interessa, que mais me ensina? O espírito do Durval Lelys! Durval Lelys, do Asa de Águia, é quem tem o tipo de alegria solta, sem culpa, sem grilo, sem ressentimento pela vida que o brasileiro pode e deve ter! Ele é o nosso modelo ideal atualmente. Ele é, para mim, sob esse ponto de vista, o que Jorge Ben foi durante muitos anos: o símbolo do brasileiro afirmativo, alegre, sintonizado com a vida.

Uma vez você falou que o Brasil, até os anos 50, era um país triste..

Não só era triste como se reconhecia assim. Todo mundo dizia: "Somos um país triste". Cresci ouvindo isso. As músicas do Brasil eram tristes, os sambas de Carnaval todos tristes...

E o fato de uma pessoa saber sambar já é uma alegria tão grande!

Mas naquela época ninguém falava isso, as melodias são "Se você não me queria..." ou "Não, não me diga adeus!" A bossa nova é um marco desse momento, em que o Brasil estava começando a querer sair dessa auto-imagem de nação triste. O Vinicius de Moraes é um homem de grande importância histórica quanto a isso. Ele foi o agente dessa transformação, se transformou e considerou essa transformação como uma transformação do Brasil e liderou isso. Ele se virou para a música popular e fez letras de samba otimistas, sambas afirmativos, que não existiam. A gente pulava Carnaval, ia brincar dizendo as coisas mais tristes do mundo, entendeu?

Hoje isso não existe mais?

Não, desde a bossa nova. Depois o tropicalismo também, com uma visão ambígua, apresentando a afirmação, mas também a amargura diante da situação de violência que a gente vivia, debaixo da ditadura militar. Mas era o mundo pós-bossa nova, a afirmação já havia chegado, e o Brasil terminou virando o século sendo um país oficialmente alegre. Que se sente alegre e na obrigação de ser alegre! Que é visto pelos estrangeiros como alegre e quer ter uma auto-imagem de um povo alegre! Isso parece estar mais de acordo com a realidade psicológica dos brasileiros do que a tristeza oficial do princípio do século XX. Acho que a gente tem razôes de sobra pra ser um povo triste, por essa injustiça social, pela disparidade, há muita infelicidade e, no entanto, você se lembra do programa da Regina Casé, o Brasil Legal? Ela chegava nos lugares, os maiores buracos do sertão ou da favela, e ia falar com as pessoas, e todo mundo falava que era feliz! E é verdade: é mesmo feliz!

Há quanto tempo você mora no Rio?

Há muitos anos. Fui para o Rio com a Dedé e o Moreno em 1974, 75...

O Moreno é baiano?

Moreno é baiano. Zeca é carioca e o Tom é baiano.

Você vê muita TV?

Teve uma época que eu via muito, agora, já faz tempo, vejo muito pouco realmente. Passei um tempo vendo o Canal Brasil, quando apareceu. Fiquei fascinado, viciado em ver os filmes brasileiros, mas vai esgotando o repertório, e aí você fica revendo os filmes e... parei. Às vezes vejo Telecine Classics pra ver filmes bonitos, antigos. Prefiro ler. Televisão não me dá sono, entendeu? Se eu ficar vendo TV, não tenho sono! Não sei como alguém pode ter sono vendo pessoas discutindo, automóveis perseguindo, anúncios.. Já o livro, se for ficção, narrativa, ajuda. Você baixa, aquelas letrinhas... E vai ficando caladinho, vai entrando na história, depois, pára, deita e pode virar sono...

Você ainda desenha?

Muito pouco. E tenho muita pena. Só desenho porque o Zeca me pede e desenho pra ele, e ele fica maravilhado, acha que eu desenho muito bem. Eu tenho jeito, se eu desenhasse... Eu seria mais da coisa visual do que músico, não tenho dúvida. Tenho mais talento para desenhar do que pra fazer música.

Mas aí não trabalhou, dançou, né? Não desenvolveu o talento...

Também teve uma coisa eu sei o que foi -, e a música popular me atraiu mais. Porque eu ia querer entrar na problemática das artes plásticas! Quer dizer, eu ia querer cortar um pedaço de boi e colocar num museu ou então ia ficar aquele cara chato, tipo aqueles que fazem arte acadêmica e ficam lutando contra a arte moderna, e eu não queria isso! Na música popular não tem esse problema: você tanto faz rimas, letras que fazem sentido, melodia com harmonia normal, como, de vez em quando, faz um negócio anormal, absurdo e depois volta pra melodia, para uma canção redonda, não tem problema, entendeu?

Você ainda lê as coisas que escrevem sobre você, críticas, essas coisas, e fica puto?

Fico puto com muitas coisas, mas não tanto com coisas sobre mim. Em geral, engulo todos os sapos, mas sou um pouquinho exaltado quando vejo movimentos dentro das pessoas, dentro dos textos, que vão justamente contra essas coisas que desejo. Que trabalham pra que não se superem esses problemas que quero que sejam superados, pra que se jogue fora o que a gente já conseguiu. E há muito esforço no Brasil nesse sentido. As pessoas adoram esse negócio que tira não nossas esperanças e sim nossas responsabilidades, e por isso ficam felizes. E dizem assim: "Esse negócio de grupo de garoto tocando percussão, axé music, tudo isso é um horror". Não é assim! Eu acho que o Zeca Pagodinho, por exemplo, canta pra caralho, tem um repertório espetacular e uma relação com o público genial! Eu acho que o Nação Zumbi é uma coisa boa em todos os sentidos, tem inspiração, suingue, jeito, novidade, nível de resolução alto. Eu acho que a Marisa Monte canta perfeitamente bem e tem uma responsabilidade profissional, com aquilo que ela vai fazer, que é invejável!

Pergunta para o Caetano pai: o Moreno tem quantos anos?

Vinte e nove.

E qual foi sua reação quando começou a aparecer drogas na vida de seus filhos?

Bom, graças a Deus, na vida de Moreno, nunca entraram drogas.

Então, você não teve esse momento ainda?

Não, e espero não ter, porque Moreno nunca teve interesse, ligação com drogas nem com bebida. Eu bebia muito, mas faz anos que não bebo, quer dizer, bebo raramente, e deixei de fumar quando Paulinha fez 18 anos, no dia do aniversário dela. Ela tem 32, tem um tempão!

Você gosta muito de ser pai, não é?

Muito! Sou, nesse ponto, muito leonino. Um leão que fica com os filhotes. Gosto de filhos e, gozado, eu detestava criança e não queria ter filhos. Mas depois comecei a ficar com vontade, quando estava voltando de Londres e fiquei pedindo a Dedé. Ela não queria ainda, nós nos casamos com o pacto de nunca ter filhos, mas mudamos, tivemos o Moreno e foi a melhor coisa que me aconteceu, a única mudança realmente importante por que passei na minha vida. E cada criança é uma coisa totalmente nova... Ter filhos é muito intenso e muito bom.

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