Ano sim, ano não
Entrevista para a Revista Época
Por Cláudio Henrique e Guilherme Barros
22 de março de 1999
Mil perdões aos baianos, mas Caetano Veloso é carioca. "Em grande parte", nas palavras do próprio. Mas é bom o Cristo Redentor não ir jogando as mãos para o céu. Talvez para compensar, na opinião de Caetano, Chico Buarque é paulista. Antonio Carlos Magalhães futuro presidente do Brasil? Uma idéia "convincente" e "compreensível" aos olhos negros do compositor, que tem ouvido pagode (Soweto e Grupo Raça, seus preferidos), acha que Tiazinha canta bem e se irrita com os que falam mal dos sertanejos ou de Claudinho e Bochecha: "São hipócritas que têm horror à mobilidade social".
Nenhum outro artista brasileiro tem, como Caetano, a mesma desenvoltura e o talento de palco quando fala. Dando entrevista, ele parece ter tanto prazer quanto ao cantar. Expõe sem medo suas opiniões sobre Walter Salles, Fernando Henrique e ainda confessa que não queria ter feito a trilha sonora de Orfeu, novo filme de Cacá Diegues a ser lançado no dia 23 de abril e cujo CD chega às lojas nesta semana. Com a palavra, o baiano-carioca Caetano Veloso:
Época: Ficou marcada em sua carreira uma declaração em que você dizia que, como artista, tinha "ano sim" e "ano não". De 1994 para cá você lançou o CD Fina Estampa em estúdio e outro ao vivo, fez a trilha de O Quatrilho, a de Tieta, o CD Livro, a autobiografia Verdade Tropical e gravou Prenda Minha, no ano passado, outro CD ao vivo. E mal começou 1999 já sai Orfeu. É errado dizer que Caetano agora tem "ano sim" e "ano sim"?
Caetano Veloso: (risos) Eu falei que gostaria de fazer "ano sim" e "ano não" no fim dos anos 70, mas nunca consegui, e já estamos no fim dos anos 90 e ainda nada. Vou entrar o novo século sem conseguir ter um ano para descansar. Foi só uma tentativa...
Época: Nos créditos do filme você assina a direção musical. O que foi exatamente esse trabalho?
Caetano: Esse título de diretor musical é um eufemismo que o Cacá encontrou para ir me envolvendo no filme porque eu não queria fazer a trilha...
Época: Você estava planejando, mais uma vez, um "ano não"?
Caetano: O problema é que eu tive muito envolvimento com Tieta. É um dos maiores filmes que já foram feitos no Brasil. Não tenho dúvida. Muita gente achou que Tieta era isso, aquilo, gente que escreve em jornal. Tieta para mim é grandioso. Tem coisas que não há em nenhum outro filme brasileiro.
Época: Por isso você não queria fazer Orfeu?
Caetano: Ainda estava apaixonado por Tieta. E Orfeu, um filme que já foi feito pelos franceses... É uma das coisas mais conhecidas sobre o Brasil no mundo, pesa sobre nós esse filme. E a peça de teatro tem canções entre as mais lindas já feitas. Então como topar fazer música para um filme desses? Baseado na mesma peça de Vinicius de Moraes?
Época: Não era um desafio?
Caetano: Um desafio que eu não queria, que não me estimulava. O Cacá veio com essa conversa de direção musical e tal, aí depois ele veio pedir que eu fizesse um samba enredo...
Época: Você incluiu no CD um samba-enredo antigo do Império Serrano...
Caetano: "Os Cinco Bailes da História do Rio", de 1965, eu adoro esse samba. Assisti a esse desfile na Presidente Vargas e não esqueço jamais. Era o ano do Quarto Centenário da cidade. Eu estava no Rio acompanhando a Bethânia, que tinha lançado a minha música "É de Manhã". Era o começo da minha vida profissional.
Época: Era sua primeira vez no Rio de Janeiro?
Caetano: Cheguei muitas vezes ao Rio. A primeira foi em 1953, com 11 anos, e fiquei dois meses em Guadalupe. Depois, em 1956, eu tinha 13 anos e vim para ficar de novo um mês, mas acabei morando um ano aqui. Em Guadalupe. Sou da Zona Norte no Rio. Eu, em grande parte, sou carioca, pois vivi um período crucial da minha vida, entre os 13 e os 14 anos, no Rio. Moro no Rio desde 1974, é a cidade do mundo onde mais tenho morado.
Época: A casa em Guadalupe ainda existe?
Caetano: Ainda está lá, as pessoas com quem morei ainda moram lá. De vez em quando vou ver o pessoal. São primas minhas em primeiro grau, sobrinhas do meu pai, bem mais velhas.
Época: O boom do cinema nacional o incentivou a voltar a fazer um filme?
Caetano: Eu fiz Cinema Falado. Quando foi lançado houve muitas agressões. O filme começou e um sujeito (o cineasta Arthur Omar) começou a gritar. Ele gritava, não deixou ninguém assistir ao filme. E depois três diretoras de cinema escreveram num jornal esculhambando comigo e fazendo questão de dizer que nem sequer tinham visto o filme. E um outro quase xingou minha mãe. São coisas imperdoáveis. Esse jornalista acha que eu esqueci. Não esquecerei jamais.
Época: Você gosta mais de Central do Brasil ou de A Vida É Bela?
Caetano: Gosto um pouco mais de Central do Brasil, mas gosto mais de Tieta do que dos dois, muito mais. Já vi Tieta mais de 15 vezes e sempre choro muito. Quando Marília Pera convence a gente de que Perpétua é superior moralmente a Tieta... Eu vi isso duas ou três vezes no cinema. Orfeu é um bom filme, mas também não me emocionou tanto quanto Tieta.
Época: Do que você não gostou em Central do Brasil?
Caetano: Não gosto daquela visão de um Brasil pobre, arcaico, homogêneo. Para mim, isso é evitar as complexidades do Brasil. Mas o filme é maior que isso, é bem-feito, tudo funciona... E Fernanda é uma das coisas mais elevadas e profundas do Brasil.
Época: Então a visão de um país pobre, que é mostrada ali, o incomoda...
Caetano: Essa estranheza que me causa o filme não é um defeito, é uma peculiaridade que talvez diga respeito ao diretor, à distância dele do Brasil, por ser muito rico e ter sido educado fora do Brasil. Nasci numa cidade pobre da Bahia, depois morei em Guadalupe, então jamais poderia ver o mundo como o Waltinho. É impossível. Da minha perspectiva, quando olho para o filme, falta tanto... Essa perspectiva dele para mim é o feijão-com-arroz.
Época: E A Vida É Bela?
Caetano: Assisti em Nova York. É um filme angustiante, mas surpreendente. Às vezes meio irritante.
Época: A vida é mesmo bela?
Caetano: Bem, estou lendo Schopenhauer (risos). É o pessimismo total. Não sei se sou otimista. Acho um pouco fácil esse negócio de dizer que sofrimento é mais profundo...
Época: E Central então seria um filme pessimista...
Caetano: Não é propriamente um pessimismo, é mais um comodismo formal, assim, que acaba dando aquela coisa homogênea...
Época: Há anos a cultura brasileira se ressente da falta de repercussão internacional e põe a culpa na barreira da língua portuguesa. O sucesso de filmes falados em português e os prêmios Grammy de Milton Nascimento e Gilberto Gil acabam com esse mito? Mudou a cultura ou o mundo? Foi a globalização?
Caetano: Um pouco de tudo isso. Sem dúvida mudou o mundo. Mas acho que a música brasileira tem respeitabilidade muito sólida no exterior há tempos, desde a bossa nova.
Época: E o que não é tido como música de qualidade? Júlio Medaglia diz que pagode, axé music, é tudo lixo.
Caetano: Sou louco por axé music, adoro. Pagode eu gosto muito, é o samba voltando a se reafirmar. E eu ouço, hoje mesmo ouvi Soweto. Adoro também um samba do Grupo Raça que fala (Caetano canta): Galera funk, não me leve a mal, tô numa legal, sem essa de horror...
Época: E Claudinho e Bochecha?
Caetano: Eu gosto, eles trazem uma atmosfera do ambiente de onde eles vêm e um modelo de mobilidade social. O que a gente mais tem que ter medo no Brasil é desse veto que as elites minoritárias e sugadoras, que são toda a história brasileira, lançam sobre tudo mais que não seja o que está dentro do mundo estanque deles, que é um mundo meio internacional, meio de bom gosto... É uma porcaria isso, o tropicalismo foi um grande inimigo de tudo isso, eu serei sempre um grande inimigo de tudo isso, ninguém conte comigo para mudar de bandeira que eu não vou mudar porra nenhuma!
Época: Então toda a crítica a essa música mais popular é hipócrita?
Caetano: O que o pessoal fica com raiva, seja Júlio Medaglia, seja sem medalha, é do horror de ver as áreas do país se movendo, as classes se manifestando, as coisas se intercomunicando, o organismo Brasil começando a se mover como um todo, ameaçando ser alguma coisa. O próprio Plano Real, que fez as pessoas comprar som e discos, incomodou. Eles vão ter alívio agora por uns tempos se houver inflação de novo. Até campanhas contra bicheiros me cheiram a esse horror à mobilidade social, horror a gente que aparece, se move. Gente que canta "a-la-la-ô", "se a canoa não virar" e "olha a cabeleira do Zezé" há anos vem querer me dizer que acha as letras do Carnaval da Bahia idiotas? São débeis mentais, não têm saúde para enfrentar a realidade do Brasil com força, entende?
Época: É por preconceito então que, só depois que você grava Peninha ou que Maria Bethânia interpreta Zezé di Camargo, todo mundo passa a achar essas músicas bonitas?
Caetano: Isso. Os sertanejos, Parintins, tudo isso é bom, cara. Acho que é o Brasil se pondo para fora. Eu não quero ser como aqueles carinhas chatos da classe média, que têm um pouco de formação européia, que querem ser mais ou menos bacaninhas, eu não tenho porra nenhuma a ver com isso, cara, nunca tive, jamais terei, eu sou tropicalista!
Época: Você acha que Fernando Henrique mudou depois da reeleição?
Caetano: Fernando Henrique quis se reeleger. Se ele não tivesse se reeleito, alguém iria pegar essa batata quente. Foi bom que ele se reelegesse, pois foi ele mesmo que pegou (risos). Eu não votei, porque não estava aqui, mas votaria em Ciro Gomes.
Época: E qual seu próximo candidato? Antonio Carlos Magalhães?
Caetano: Esse era o candidato do Glauber, ele sempre quis que o Antonio Carlos fosse presidente. Nunca me convenceu, mas hoje em dia acho muito mais convincente o que o Glauber dizia, ele tinha uma cabeça de profeta... Ele falava isso em 1977, 1976...
Época: E hoje...
Caetano: Hoje acho mais compreensível do que me parecia naquela época, mas também não fico premeditando presidente (risos).