BA LAN CÊ
Entrevista para a Revista GOL
Por Claudio Leal
Retratos Murillo Meirelles
Realizada em dezembro de 2012, publicada em janeiro de 2013
Colado a uma parede branca, olhar rijo, Caetano Veloso ganha cores mais suaves com a mudança do disco. Um fado. Subitamente uma canção alivia seu rosto e parece dar a partida real para as fotos – ou para o próprio dia –, às 17h30, no fim da tarde abafante do Rio de Janeiro. “Adoro o Zambujo”, avisa o compositor ao fotógrafo Murillo Meirelles, que, sem saber, escolheu aquele CD e reavivou a admiração do retratado pelo cantor português António Zambujo.
Mal não fez, pois Caetano embarca no clássico das serenatas, “A deusa da minha rua”, por ele entoado baixinho, alheio ao resto, como se palco houvesse abaixo dos pés. “Essa é linda!”, reforça para si, e outra vez se abre para o dia. O figurino foi escolhido em seu guarda-roupa, não há sequer um fiapo que não seja inteiramente seu. Ora mirando a câmera, ora desconhecendo-a, Caetano inicia gestuais fadísticos e outros ao estilo de Carmen Miranda. Encerra com a mão no peito.
O lançamento no final do ano passado de Abraçaço, o terceiro álbum com a banda Cê, ativa o radar de quem identifica mil inspirações de sua obra recente, mas o que o tempo vem reforçando mesmo é a influência dos três filhos. “É muito grande”, estima Caetano. “Moreno produz os discos desde que comecei a tocar com a banda Cê. Zeca e Tom são as primeiras pessoas a ouvirem todas as músicas novas que faço. E comentam, influem. Por exemplo, os nomes dos lutadores de MMA [em “A Bossa Nova é foda”], o Tom e o Zeca que me ajudaram a escolher e pôr em ordem”, revela. O diálogo se desdobra nas trocas musicais. Numa madrugada, quando o rádio do carro tocou “Pra que mentir”, de Noel Rosa e Vadico, na voz de Paulinho da Viola, se instaurou a cumplicidade com Zeca, 20 anos. E, sim, adora as gravações de funk ouvidas por Tom, 15.
Aos 70 anos, ele admite a lembrança recorrente do pai, José Telles Velloso – o agente postal seu Zezinho, morto em 1983 –, e narra que se surpreendeu depois de finalizar o livro de memórias. “Em Verdade tropical, falo mais em meu pai do que em minha mãe... Eu não sabia, alguém me disse. Aquilo me tocou porque, sabe, não sei... Eu adoro meu pai, a memória dele”, declara. “Eu já tenho três filhos, dois netos. Penso mais nele, como ele atravessou o nascimento e o crescimento dos filhos. E gosto mais ainda dele.”
Em 2012, Caetano evitou as comemorações em torno dos seus 70 anos e aceitou apenas um jantar com amigos e familiares, sem estardalhaço. Sua mãe, dona Canô, 105 anos, diz que não transmitiu nenhum conselho especial. “Os conselhos que eu dei foram desde pequeno. Dei todo o apoio para que ele escolhesse o instrumento, se era piano ou violão”, contou Canô, por telefone.
“Se eu pudesse, me recolhia mais ainda. Acho um pouco chato ficar celebrando data redonda porque parece que fecha a gente naquela informação”, Caetano explica. “Quem mais agiu bem em relação a isso foi o Ney Matogrosso, que é admirável sob tantos aspectos. Adoro ele. Olho para ele como modelo de entendimento das coisas. Sou muito orgulhoso de ele ser leonino. Ele fez 70 anos antes de nós e ninguém falou nisso. O Ney Matogrosso é o Ney Matogrosso. Não é alguém que tem 70 anos, não. E é assim que tem que ser.”
Adolescente insone
Sofre de insônia, considera-se um espírito adolescente e mantém a ambição de querer ser entendido, mas se diverte com uma frase da cantora islandesa Björk: desejar ser entendido é uma espécie de arrogância. Depois de uma interrupção, faz anos que voltou à psicanálise. Mas, afinal, está confortável com o papel que a história já lhe confere? “Não estou muito confortável”, reconhece. Nos anos 70, comentava com amigos que os artistas americanos tendem a viver da imagem que foi construída a respeito deles. Na contramão, graceja: “Eu sinto mais que a fama é uma série de mal-entendidos”.
Quando se pressente um trabalho passadista, Caetano dribla e entrega o disco de rock Cê, em 2006. Se pensam que ele se exauriu, compõe e dirige para Gal Costa um álbum de base eletrônica, Recanto, de 2011. Agora, com o zagueiro desnorteado, manda um Abraçaço, no qual aprofunda o trabalho com Pedro Sá, Ricardo Dias Gomes e Marcelo Callado. “No Cê eu tinha tudo predeterminado na minha cabeça. Agora, não, já deixo o que vier deles. Indico o caminho e sugiro umas coisas, mas já vêm as coisas deles. A gente já está muito integrado”, avalia o compositor, sem cravar o fim do ciclo: “Quando fiz o segundo disco, pensei: pelo menos o terceiro eu vou fazer. Pelo menos. É só o que eu sei, na verdade”. O guitarrista Pedro Sá acrescenta que a intimidade sempre foi grande: “Nos outros dois discos, ele tinha um conceito mais fechado: lançou no Cê, firmou em Zii e Zie e em Abraçaço deixou correr mais espontâneo”. Sobre o fim, Sá brinca: “Ele sempre falou que queria fazer uma trilogia. Mas eu tenho a impressão de que, se deixar, ele faz outro”.
Para o homem que considerou todas as suas letras autobiográficas (“até as que não são, são”), há um quê de confessada melancolia em seu álbum mais recente. “Estou triste tão triste/ E o lugar mais frio do Rio/ É o meu quarto”, canta em “Estou triste”, que concorre em profundo desalento com “Mãe”, gravada por Gal, em 1978 (“Cidades, mares, povo, rio/ Ninguém me tem amor”). Caetano aceita o paralelo: “‘Mãe’ era a canção que eu achava a mais triste entre as canções que eu tinha feito. Achava até depressiva... Talvez no show do Abraçaço eu cante. Já tinha pensado nisso”. Evita detalhar a origem dos dois estados espirituais e deixa um só rastro: “Coincide a tristeza”.
Ainda assim, o pensamento da morte não costuma invadir suas composições. “Não é um tema de que eu trate muito, não”, ressalta. O ar é comedido. “Eu tenho medo. Mas tinha mais medo do que tenho hoje. Pensava mais nisso do que penso hoje. Mas penso também.” Com empolgação, recorda-se de “Não tenho medo da morte”, de Gilberto Gil, e do complemento: “mas medo de morrer, sim”. “Ele canta com essa vírgula enfatizada, dá muita ênfase à vírgula, batendo aquele bordão no violão. Isso é uma das coisas mais lindas que Gil fez depois de mais velho!”
Sexo, no plural
Em Caetano, uma ideia parece se manifestar, inicialmente, através de uma expressão facial. Comprime os olhos, balançando de leve a cabeça, se o tema lhe é mais atraente. Sexo, por exemplo.
Em suas canções recentes (“Vinco” e “Quando o galo cantou”), o sexo tem algo do verso do poeta Manuel Bandeira “os corpos se entendem, mas as almas não”. Sorrindo, Caetano não acolhe totalmente o palpite. “Eu me lembro bem disso de Bandeira. É bom, entendo o que ele está dizendo. Sempre entendi. É uma boa lembrança”, reflete. “Entendo e há algo disso no que vivencio. Não é tudo, mas é algo disso.”
O compositor relata que a editora Companhia das Letras quis publicar um pedaço de texto inédito, que ficou fora de Verdade tropical. Exclusivamente sobre sexo. O essencial, afirma, foi resumido e publicado no livro de 1997. “Umas 70 páginas só sobre esse assunto. Eu tinha feito um capítulo que se chamava ‘Sexos’. Sexo no plural. E outro capítulo que se chamava ‘Droga’. Sexo no plural e droga no singular”, relembra. O capítulo sobre drogas teria apenas uma frase: “Odeio a cocaína”.
A vinculação entre sexo e pecado foi determinante para que se distanciasse da igreja. Sem esconder o “temperamento místico”, o ateu nascido no dia de São Caetano depurou sua visão da religiosidade. “O que as religiões oferecem é uma coisa que é mil por cento indiscutível, que é uma organização de respostas para as perguntas que não têm resposta”, observa. E prossegue: “O sentido último das coisas, dos valores, ao fim das contas totais, o que que é tudo? Por que que há tudo que há? Qual será o sentido único desse gesto meu, da minha atitude? A religião traz uma resposta para isso. Cria lendas, histórias que respondem a isso. E isso é um poço sem fundo, porque a gente não sabe, não vai saber”.
O Brasil é outro poço de perguntas para Caetano Veloso, seja lá em qual circunstância, se numa tarde do verão baiano no Porto da Barra ou nas noites outonais do Leblon. “Ele não está fazendo arte pela arte. Sempre se coloca em questões desafiadoras o tempo todo. Procura essas situações. Ele discute metafísica, filosofia, história em qualquer conversa, mesmo a coloquial”, testemunha o músico e escritor Jorge Mautner. A visão esperançosa do país sofre abalos no cotidiano. “Há muitas coisas no Brasil que parecem negar, veementemente, essas esperanças que o próprio Brasil me obriga a nutrir”, afirma Caetano. Da sua aldeia brotam razões para o desânimo. “Tenho 70 anos e nunca vi um prefeito bom em Santo Amaro. Isso dá a impressão de que o Brasil não tem mesmo jeito. Eu me sinto um sujeito inútil no panorama. Porque sou de Santo Amaro e, se eu não pude ajudar a dar jeito, para não virar uma porcaria, então não sirvo pra nada.”
Como se vê, permanece como principal contestador de seu próprio sentimento de plenitude. O irmão, Rodrigo Velloso, reconta a dúvida do pai quanto ao destino do filho, mais apaixonado pelas artes plásticas e pelo cinema no início dos anos 60. “Quero ver o que esse menino vai ser”, atiçava Zezinho. Caetano larga um sorriso ao ser questionado sobre suas pazes com as antigas vocações. “Resolvido, nada é. Eu te digo com sinceridade: nada!”, confessa, desarmado. “Conheço pessoas que têm coisas resolvidas e eu fico fascinado por essas pessoas, mal acredito que elas existem.” Pausa. “Mas eu não tenho nada resolvido.” Olhando o relógio, é hora de Caetano Veloso, poeta insone do Brasil, retornar ao elevador.
Cidades maravilhosas
Caetano fala sobre cinco capitais que fazem parte da sua vida e obra
Rio de Janeiro - “É a cidade onde eu mais vivi. Então, no fim das contas, é a minha cidade.”
São Paulo - “Foi uma descoberta que fiz depois dos 21 anos de idade e que só fui começar a entender depois dos 24. E aí passei a entender e amar. São Paulo era uma coisa estranha, diferente. Hoje eu adoro.”
Salvador - “Sempre foi a minha favorita. É a que mais amo.”
Lima - “Acho linda, ouço o tempo todo ecos de ‘La flor de la canela’ e de ‘Fina Estampa’. A arquitetura deslumbrante, aqueles balcões, aquelas sacadas, as ruas do centro... Tudo é bonito.”
Buenos Aires - “[Minha aproximação com] Buenos Aires é desde os anos 70. Começou e não parou mais. Só fez ficar mais intensa, a cada vez.”