Na cabeça de Caetano

Entrevista para a Revista ELLE (Setembro de 2021)

Fotos Cecilia Duarte
Edição de moda Felipe Veloso
Texto Angélica Santa Cruz



Foi caminhando contra o vento, e bem no alto de uma das falésias de Bonifácio, um vilarejo no sul da Córsega, que Caetano Veloso posou para o ensaio desta edição da ELLE. Lá de cima, ele avistava um quadro composto de penhascos de calcário banhados pelo Mar Mediterrâneo e, mais ao fundo, o centrinho medieval da cidade - era uma paisagem idílica. Caetano estava hospedado em uma casa a 20 minutos de carro dali, cumprindo a quarentena obrigatória exigida dos viajantes antes de entrar em Hamburgo, Alemanha, primeira parada de uma turnê com dez shows agendados em seis cidades da Europa. Depois de mais de um ano de isolamento por causa da pandemia de Covid-19, que varreu o mundo, foi um recomeço e tanto.

Não que a reclusão de Caetano Veloso tenha sido um imenso deserto. Ao longo dos meses em que ficou em casa, sempre vestindo pijamas e, às vezes, comendo paçocas diet, ele acabou irradiando influência cultural. Nesse período, o país se acostumou a acompanhar nacos de seus interesses intelectuais, de seus afetos familiares e de hábitos domésticos por meio de vídeos tão caseiros quanto saborosos, postados nas redes sociais pela produtora Paula Lavigne, sua companheira de décadas.

Foi um sensacional banho de Caetano - e com várias facetas. De sua casa na Avenida Niemeyer, diante do mar de São Conrado, na Zona Sul carioca, ele levantou poeira no meio intelectual, por exemplo, ao citar para um público mais amplo nomes de pensadores que o levaram a reavaliar conceitos que ele carregava havia anos acerca do marxismo, como o filósofo italiano Domenico Losurdo (1941-2018) e o historiador comunista e youtuber pernambucano Jonas Manoel. Também lançou pérolas de lavar a alma, como a live transmitida em agosto do ano passado, em companhia dos filhos Moreno, Zeca e Tom Veloso.

Entre uma produção cultural e outra, apareceu em vídeos ninando o netinho recém-nascido, Benjamim, com uma nova composição chamada "Autoacalanto" - em cenas que automaticamente o jogaram no universo afetuoso e de alta voltagem de fofurice dos avós babões. O bebê é filho de Tom, caçula de Paula e Caetano, que foi morar com os pais durante a quarentena, juntamente com a namorada, Jasmine, porque o apartamento do casal estava em obras.

Com tanta efervescência, só faltava mesmo quebrar o jejum de nove anos sem entrar em um estúdio para lançar um disco de inéditas. Assim que conseguiu administrar um pouco as restrições da quarentena, ele botou a mão na massa e gravou Meu Coco. No dia 16 de setembro, lançou um primeiro e único single, antes da divulgação do álbum. No dia seguinte, um clipe.

Em entrevista exclusiva a partir de Lisboa, a terceira cidade de sua agenda de shows, ele revela pela primeira vez os detalhes do novo disco. "A canção que dá título ao álbum diz tudo: Meu Coco. Ou seja, é tudo o que passa na minha cabeça. É uma mirada atual sobre temas recorrentes em meu trabalho: nomes, fantasias que esboçam uma decifração do Brasil, homenagens a meus amores", explica. Nas respostas enviadas por e-mail, também lembra como foi o processo de gravação em meio a uma pandemia, elenca a equipe de bambas que foi arregimentando pelo caminho e situa o novo álbum no conjunto de sua obra. E, à sua maneira tropicalista de beber o mundo e depois devolver tudo com interpretações originais, faz rasantes por outros temas que andam passando pelo seu coco.

Aos 79 anos, Caetano se mostra aqui um artista trincando de frescor. Com álbum novo, netinhos na área, disposição para mudar de perspectivas e muita fé no que vem chamando de "Otimismo programático", que, no fim das contas, é uma defesa de tudo o que o Brasil tem de lindo - e que é muita coisa.

Como tem sido a experiência de sair em turnê no momento em que o planeta acaba de ficar de joelhos por causa de um vírus? De grande alívio? Tensa, em alguma medida?

Muito emocionante. Havia mais de dois anos que eu não cantava em frente a uma plateia. Me lembrei de que gosto muito mesmo de cantar. As plateias estão um tanto eufóricas com a volta dos shows. Não percebo tensão, mas entusiasmo. E só aqui me dei conta de que estou sendo um dos primeiros a voltar à atividade.

E como foi a lida de gravar um disco em meio à quarentena - montando estúdio, trabalhando remotamente, recebendo as notícias que chegavam lá de fora?

O estúdio já existia. Paulinha tinha encomendado a construção de um na casa da Niemeyer, que ficou pronto antes do anúncio da pandemia. Eu ia esperar a pandemia acabar para fazer o disco, que tinha começado a imaginar em 2019. Como ainda hoje não acabou, depois de um ano esperando, decidi gravar nesse estúdio meio caseiro, embora de nível profissional. Lucas Nunes, colega de Tom na banda Dônica, me ajudou a fazer tudo. Primeiro, só nós dois. Logo fomos chamando Márcio Victor, Vinicius Cantuária, Marcelo Costa, Mestrinho, Hamilton de Holanda, e encomendando arranjos a Thiago Amud, Jaques Morelenbaum e Letieres Leite, que gravaram orquestras à distância. E Pretinho da Serrinha, para quem compus um samba especial, que gravou com músicos com quem costuma tocar.

Olhando de cima, como em um drone imaginário, como você analisa o novo álbum à luz da sua obra? O que ele significa na sua linha do tempo criativa?

A canção que dá título ao álbum diz tudo: "Meu Coco". Ou seja, é tudo o que passa na minha cabeça. Assim, é uma mirada atual sobre temas recorrentes em meu trabalho: nomes, fantasias que esboçam uma decifração do Brasil, homenagens a meus amores. Curiosamente, tudo isso que pareceria um balanço do que tenho feito ao longo de décadas terminou se revelando um amontoado de novidades, de peças formais e olhares sobre as coisas que são diferentes de tudo o que já fiz.

Em conjunto, como as músicas do novo disco refletem o que vai hoje pela sua cabeça?

Tudo almejava ser reiteração, mas virou mudança de perspectiva.

De toda a sua obra, qual foi o disco que mais lhe deu prazer de fazer, no processo criativo e no que ele significou para você?

Prazer no processo, os discos com A Outra Banda da Terra (músicos que o acompanharam de 1978 a 1983). Significado do resultado, o disco Livro (de 1997).

Durante a quarentena, pudemos vê-lo em casa, cantando para o seu netinho bebê. Qual foi a influência em você, e na sua obra, de poder viver uma experiência dessas como avô bem no meio de um isolamento?

O novo neto nasceu em casa e cresceu seu primeiro ano perto de mim e de Paulinha. Tive intimidade com ele desde logo, diferentemente do que aconteceu com meus netos que hoje são adolescente e pré-adolescente. Mas na noite do meu aniversário senti tanta proximidade e grude com os já crescidos como tenho tido com o meu Benjamim. No momento, estou em Portugal e gosto de pensar que o nome de meu netinho mais novo aqui significa caçula, que é o sul-americafricano para benjamim. No disco novo, tem uma música sobre ele cantar para ninar-se. Sinto-o agora sempre unido e misturado com Rosa e José.

Você tem falado em um otimismo programático que vem adotando nos últimos tempos. Você diria que adotar também uma postura assim seria nesse momento um dever cívico dos brasileiros?

Eu disse a Paul B. Preciado (filósofo transgênero feminista) - adoro que isso seja Paul Beatriz Preciado - que cultivo um otimismo programático porque o chato pessimismo a respeito do Brasil nos exime de responsabilidades. Atados a esse pessimismo aparentemente inteligente, não teríamos João Gilberto e Tom Jobim, Glauber não teria encantado Scorsese, os favelados do Rio não teriam subvertido o Miami bass com uma tumbadora de maculelê.

Sem querer descambar para a autoajuda, mas já descambando, como exercer esse otimismo na prática?

Tendo coragem de ver que o liberalismo apoiar a escravidão não foi uma peculiaridade brasileira, como quiseram dizer Schwarz (o crítico literário Roberto Schwarz) e os uspianos. Toda a história do liberalismo apoiou-se na escravidão e no racismo colonial. Devo esse alerta a Jones Manoel, que me levou a Losurdo - o italiano que nos faz pensar duas vezes sobre o papel das experiências comunistas na história contemporânea. Falando em USP, quando Antonio Candido disse que o socialismo venceu (já que, com fazer revoluções que criaram países comunistas, pressionou os estados capitalistas a encararem direitos trabalhistas e muitos a instituírem uma socialdemocracia - além, eu acrescentaria, de encorajar lutas anticoloniais na África, e não só na África). Na prática é tocar como Gil, João Bosco, Djavan; sentir as harmonias como Milton Nascimento; ser exigente e rigoroso como os poetas concretos; afinado e seguro como Anitta; exuberante como Gloria Groove cantando com Ludmilla ou com Ferrugem.

Qual foi a última vez em que você mudou, de maneira retumbante, de ideia? Foi doloroso?

Quando li a introdução de Jones Manoel à coletânea Revolução africana, uma antologia do pensamento marxista. Não foi doloroso. Pude aprovar a teimosia comunista de Marilena Chaui e Schwarz, de Wladimir Carvalho e de um velho camarada baiano.

Qual é o seu grande arrependimento?

Não ter feito umas coisas que desejei.

Quais são os momentos mais felizes do seu dia?

Em geral, são à noite. Tarde.

E qual é a sua grande vaidade intelectual?

"Pena de pavão de Krishna, maravilha, vixe Maria mãe de Deus." Terem-me ocorrido lances como esse, que aparece em "Trilhos urbanos".

UM PEQUENO PASSEIO PELO ZEITGEIST

Em um exercício de livre associação, qual é a primeira coisa que estas ideias dizem hoje para você?

Polarização

Empobrecimento intelectual.

Antropoceno

Medo de um impasse.

Todo poder emana do povo

Acho que nem todo.

Setenta e nove anos vivendo no Brasil

Acho que não quereria viver em outro lugar.

Pijamas

Passei a usar quando minhas mulheres exigiram ar-condicionado.

Brasil bonito

Caymmi.








PRODUÇÃO DE MODA:
PATRICIA BRESSIANI
PRODUÇÃO EXECUTIVA:
ISABELA DE PAULA
E PIERRE CHENE
TRATAMENTO DE IMAGEM:
LEONARDO MIGUEL
E THIAGO AUGE

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