O guru da nova geração
Entrevista para a revista BRAVO!
Por Barbara Heckler
Fevereiro de 2011
Na passagem de som, entre cabos e câmeras pelo palco, um casal de artistas, um veterano e uma jovem, conversava antes do show. Ele cantarolava alguns versos da clássica Someone to Watch Over Me, de George Gershwin, um dos mestres da canção norte-americana. Ela ouvia. Os dois trocavam algumas palavras a respeito, até que a jovem perguntou: "Você foi ao show do Tono? Acabei dormindo à meia-noite naquele dia" O veterano, também fã da banda pop independente carioca, respondeu: "Fez bem. Essa hora eu estava saindo de casa. Acabei não indo ao Tono. Fui assistir ao show do Mano Brown com o Tom e o Zeca". A cena aconteceu em dezembro passado na gravação do DVD do dueto Caetano Veloso e Maria Gadú e é um instantâneo que retrata bem a fase que o compositor baiano vive. Além de sair em turnê com a nova revelação da MPB, de 24 anos de idade, o compositor, de 68, está prestes a lançar o DVD do disco Zii e Zie com sua banda Cê, também formada por artistas da nova geração. No ano passado, ganhou o prêmio BRAVO! Bradesco Prime de Cultura com seu show junto com a Orquestra Imperial - em que atuou ao lado da cantora Nina Becker, a mais recente grande voz da MPB, e seu filho mais velho, Moreno Veloso. Entre uma atividade artística e outra, ainda arranja fôlego para encarar a noite carioca acompanhado de seus dois filhos adolescentes, Tom e Zeca Veloso. E saindo de casa à meia-noite!
Caetano Veloso vem-se tornando, cada vez mais, uma espécie de guru da nova geração da música brasileira. Mas ele não é um guru tradicional, daqueles que inspiram e pontificam. Ao contrário: sua relação com os jovens é de diálogo. Mais que ensinar e aprender, ele troca influências. Fecunda a nova geração e, ao mesmo tempo, se alimenta. Não é de hoje que Caetano é um artista antenado. De acordo com o jornalista Pedro Alexandre Sanches, estudioso de sua obra e autor do livro Tropicalismo: Decadência Bonita do Samba, de tempos em tempos Caetano lança um álbum revolucionário, em que incorpora o que há de mais moderno na música de sua época. Foi assim com Tropicália, de 1969, Transa, de 1972, Velô, de 1984, e Estrangeiro, de 1989. Depois, o artista lançou vários álbuns em que atuava apenas como intérprete ou compunha de acordo com o estilo que o consagrou. O retorno triunfal ao mundo das reviravoltas musicais foi justamente com o álbum Cê, de 2006, sua quinta revolução, segundo Sanches - e que é justamente o marco inicial da fase que Caetano vive hoje.
Uma das características dessa retomada é que, do ponto de vista etário, Caetano está ainda mais distante de sua própria juventude e de quem é jovem. De acordo com a teoria da analista inglesa Mary Esther Harding (1888-1971), aluna do renomado psiquiatra suíço Carl Gustav Jung, Caetano está no inverno da vida. Mary criou uma divisão da existência humana pelas estações do ano: até os 21 anos, o homem está em sua primavera; dos 21 aos 42, em seu verão; de 42 a 63, o outono toma conta; e, a partir dessa idade, chega o inverno. Há cinco anos, Caetano entrou num período no qual as árvores perdem suas folhas, mas o amadurecimento é pleno. Ao mesmo tempo, lida muito bem com seus filhos primaveris de 14 e 18 anos e mantém um diálogo profissional com jovens artistas. Foi assim com Cê, foi assim com Maria Gadú, todos estivais.
DA ELETRÔNICA A MANO BROWN
A aproximação com essa novíssima geração se deu justamente pela mão dos filhos. Moreno Veloso, que é músico, sempre trocou com o pai referências nessa área. Mais tarde, Zeca e Tom, os mais jovens, desenvolveram gostos próprios e os apresentaram ao pai. Enquanto Zeca teve uma fase rock'n'roll e hoje é fã de música eletrônica, o caçula, Tom, como definiu o próprio Caetano, "tem gosto de jogador de futebol" - ouve rap, funk e pagode. O compositor baiano se aproveita, no melhor sentido da palavra, desse ecletismo para se abastecer sonoramente. Senta com o do meio para ver Pump Up the Volume, documentário do inglês Carl Hindmarch sobre a história da música eletrônica, e vai a shows do rapper Mano Brown com o menor. "Sinto muita vontade de fazer programas com meus filhos, mas eles têm a necessidade de ficarem sozinhos com os amigos. O amor deles é diferente. Nós sabemos, já fomos filhos", diz o cantor.
Quando não está com a cria, Caetano se move por um circuito cultural variado no Rio de Janeiro. Não é difícil encontrá-lo em shows de samba, rock, rap e axé. Filmes, espetáculos de dança e teatro, sejam os de grande público, sejam os mais alternativos, também estão no roteiro do artista. E, na maioria das suas rondas, um séquito de jovens o circunda. "Caetano não fica coroa. É impensável vê-lo sentado numa cadeira, com um cachimbo, tomando café", diz o baterista de Cê, Marcelo Callado. Essa visão é compartilhada pelo tecladista e baixista Ricardo Dias Gomes e pelo guitarrista Pedro Sá, os outros dois músicos que completam o "power trio" de Caetano. Praticamente considerado como um integrante da família por ser amigo de infância de Moreno, Pedro cresceu ao lado do veterano e, conforme adquiriu gostos próprios, passou a compartilhá-los com ele. Uma dessas trocas foi responsável por definir o formato do álbum Cê, depois de o guitarrista ter mostrado a Caetano um disco da banda norte-americana Pixies gravado ao vivo na rádio londrina BBC. Foi nesse momento que o artista baiano, que até então pensava em assinar o álbum com pseudônimo ou simplesmente não aparecer, decidiu mostrar a cara.
Caetano também faz suas descobertas e as compartilha com os mais jovens. Foi ele quem apresentou aos meninos de sua banda uma das revelações do circuito alternativo de Nova York, a banda Dirty Projectors. O grupo norte-americano convidou Caetano para assistir ao show deles no teatro carioca Odisseia. "O tropicalismo virou uma espécie de lenda lá fora", acredita Caetano. "Existe uma geração de músicos que cresceu nos ouvindo. O cantor Beck é um exemplo. Sua mãe, que era da turma do artista plástico Andy Warhol, escutava os meus discos. Agora, esses meninos mais novos vêm atrás de mim porque os grupos que eles gostam se referem ao meu nome."
Outra fonte de informação do compositor é a internet. Antenado com a imprensa internacional, ele descobriu por meio dela os roqueiros britânicos do Arctic Monkeys - grupo-símbolo da era digital por ser um dos primeiros a estourar na rede antes de lançar o álbum de estreia. Foi Caetano quem apresentou o conjunto aos integrantes de seu grupo. A cada música desconhecida que o desperta, o compositor trata de caçá-la na web. Caetano também se renovou com a experiência do seu blog, Obra em Progresso, que esteve no ar nos anos de 2008 e 2009. O meio possibilitou que o cantor interagisse com vários artistas, entre eles o músico Fernando Salem, e trocasse informações com eles. Caetano e os que colocavam comments em seu site passaram a se encontrar no mundo real, formando a "turma do blog" que se reúne até hoje.
Todas essas referências não ficam somente no mundo das ideias. O crítico musical José Flávio Júnior aponta, por exemplo, um "quê" do rapper carioca De Leve em O Herói, música que fecha o disco Cê. Com uma produção mais heterogênea, Zii e Zie mistura a sonoridade criada em Cê com as células rítmicas do samba. "Foi uma verdadeira coleção de influências do que escutamos e vivemos. Poderia citar aquele disco do Gil com os Mutantes de 1968 e, também, Harvest, do Neil Young, além dos sambas do Carlos Lyra na fase bossa nova", diz Pedro Sá. Caetano transforma tudo o que ouve em matéria-prima para as suas produções. O inverno bateu à porta de seus contemporâneos, como Chico Buarque e Paulinho da Viola, praticamente congelando-os no mesmo estilo musical - ainda que de altíssima qualidade - ao longo dos anos. Já Caetano Veloso conseguiu fazer com que o sol do verão e o frescor da primavera derretessem seu gelo, transformando-o em um dos artistas mais inquietos da música brasileira.
Foto: Daryan Dornelles.
"A SOCIEDADE EXIGE MAIS CORAGEM DE QUEM É JOVEM"
Caetano fala sobre o envelhecimento e a morte e - como de hábito - critica a crítica.
De perto, apesar das mãos um pouco trêmulas, do cabelo grisalho e do uso quase permanente dos óculos, Caetano Veloso não aparenta seus 68 anos e continua com uma memória invejável. É capaz de discorrer longamente sobre um assunto sem jamais perder o fio da meada. Às vezes, porém, cai em contradição. Diz que, com a idade, se tornou mais sereno em relação às críticas e, pouco depois, xinga um jornalista inglês que falou mal de um de seus discos. Na casa que mantém em Salvador, onde costuma passar suas férias, o cantor conversou com BRAVO!.
Quais são as desvantagens de chegar aos 68 anos?
Todas. (risos) Começamos a perder o foco da visão. Quando nos ferimos, o machucado demora muito mais para cicatrizar. Nos cansamos rapidamente. Temos menos resistência...
Não há vantagem nenhuma?
Sim, há. Nosso trabalho fica mais conhecido. É uma vantagem um pouco superficial, admito, algo que alimenta a vaidade. Mas há outras menos egocêntricas: você aprende a lidar melhor com o tempo, por exemplo. Quando jovens, somos muito mais agoniados, achamos que não vai dar tempo de fazer nada, tanto a curto quanto a médio ou longo prazo. No entanto, quando se começa a ficar maduro, a gente percebe que dispunha - e dispõe - de mais tempo do que imaginava. Outro ponto positivo é que, com os anos, já não temos tanto problema com as opiniões a nosso respeito.
Você dava muita importância às críticas quando jovem?
Dava, claro. Na juventude, você se preocupa em saber qual o desenho de sua inserção na sociedade. Toma mais cuidado com suas decisões, suas opiniões, e sofre mais ao perceber que não é aprovado. Ainda assim, do ponto de vista das afirmações de meus pensamentos e gostos, posso considerar que fui um jovem bem corajoso. Quando se é novo, a sociedade exige de você uma carga de coragem bem maior do que depois, quando você já tem uma história estabelecida. Mais velho, você diz meio que "dane-se" para as críticas. Olhe o poeta Ferreira Gullar. Quem lê seus artigos políticos hoje percebe que ele não está ligando se alguém vai dizer "puxa vida, mas o cara era de esquerda". Dia desses, vi uma reportagem na revista britânica The Economist sobre um estudo a respeito da felicidade. A matéria afirmava que os velhos são mais felizes. De início, fiquei um pouco surpreso porque há uma alegria intensa na juventude. Depois, me dei conta de que a alegria é diferente da felicidade. O jovem é alegre, mas muito ansioso, não só porque teme não aproveitar o tempo mas também porque não admite a morte tanto quanto uma pessoa mais velha.
A ideia da morte já não o perturba?
Eu tinha muito medo da morte. Quando garoto, achava o tempo todo que iria morrer. Se entrava num avião, achava que ele cairia. Sentia uma dor no joelho e achava que tinha um câncer terminal. Era um pânico permanente de que eu pudesse ser destruído. Agora, mais velho, não tenho isso. Perdi o medo de avião, por exemplo. Parece que a gente passa a acreditar mais na morte. Quando somos novos, é quase inacreditável que vamos morrer. Na velhice, temos a noção de que é assim mesmo. A gente pensa: "Se a morte não chegou ainda, o negócio é aproveitar o momento que se está vivendo".
Você transmite a sensação de ter um espírito jovem. Renova-se a todo instante, é curioso. Você sente uma necessidade visceral de mudanças?
Não sinto isso como uma necessidade programática. Eu faço por costume. Tem uma frase do intelectual Rogério Duarte que me resume bem: "Gosto do que acontece". Os valores críticos que você desenvolve são muito provisórios e estão desarmados diante do frescor da realidade. Desse sentimento, nasceu o tropicalismo. Para todo mundo da minha geração, gostar do Roberto e do Erasmo Carlos era um anátema. Você não podia nem remotamente aprovar o que se passava na Jovem Guarda. De repente, ao abrir mão do preconceito, nos permitimos ver o que havia naquele cenário e aquilo nos interessou. Gostávamos do que acontecia - e ainda gosto.
Você comentou que lê a Economist. Costuma estar atento à imprensa internacional?
Sim, acompanho muito o noticiário pela internet. Mas, em papel, prefiro ler semanalmente a Economist. Não tem revista melhor para mim. Ela é extremamente bem feita. Há um respeito pelos fatos e aquele tom liberal inglês de que gosto bastante. Ao longo dos séculos, os ingleses vêm nos salvando de muitas coisas ruins. Entre inúmeras maluquices de alemães entusiasmados, franceses deslumbrados, há sempre um inglês "pão-pão, queijo-queijo" para nos salvar. (risos) Agora, não fico lendo esses jornaizinhos ingleses de rock, mesmo os bons. Já vi muita imbecilidade sobre mim. Um dia, li uma crítica a Omaggio a Federico e Giulietta, disco do qual tenho um orgulho enorme. Trata-se da gravação de um show que fiz em Rimini, cidade do cineasta Federico Fellini, a pedido da irmã dele. A inteligência do repertório, a mirada estética, a relação de um músico brasileiro com a obra de Fellini, tudo isso é profundo ali, rico, sofisticado e bem-sucedido. Afirmo essas coisas sem problema algum. Mas um imbecil de uma dessas revistas britânicas chamou o disco de porcaria, dizendo que o som era o mesmo da música brasileira e que não tinha nada a ver com o Fellini. Tudo o que há naquele disco, o imbecil não teve a capacidade de entender. Eu não lembro o nome dele, mas adoraria que ele soubesse que é um imbecil. Nesse ponto, perco totalmente a modéstia! Sei que Omaggio... é genial!
Foto: Claus C. Meyer.