Um roqueiro no cio

Entrevista para a Revista RG Vogue Brasil

Por Maria Lucia Rangel e Antonio Cicero

Outubro de 2006 / Edição 55



Às seis da tarde, pontualmente, um Caetano Veloso sorridente, com disposição para conversar, sai do elevador na cobertura do apart onde está morando em Ipanema. Não disfarça seu entusiasmo pelas críticas ao CD recém-lançado, Cê. Trabalhou cercado de jovens, entre eles o filho Moreno, 33 anos, produtor do disco ao lado do amigo Pedro Sá, também de 33. Fazer um álbum com ares de rock, cercado por músicos jovens, seria sinal de que Caetano enfrenta uma andropausa? Estaria ele passando pela temida Idade do Lobo? Vivendo a Síndrome de Peter Pan? Ele refuta todos esses clichês e dá uma explicação bem prática para essa recente aproximação de músicos que têm a metade de sua idade: afinidade. "Estou tocando com músicos que podiam fazer aquilo que eu estava interessado em fazer. Eles foram escolhidos por mim e pelo Pedro Sá, dois caras, um velho e um jovem, mas dois adultos. Eu tenho 64, ele 33. Conhecemos música e estamos olhando muitas coisas em conjunto. Fui amigo de Vinicius (de Moraes) quando era novinho, e a casa dele vivia cheia de gente jovem. São cada vez mais freqüentes as conversas de Caetano com Pedro Sá sobre o mundo do rock e sobre a música popular internacional. Companheiro de excursões (tocou nas turnês de Noites do Norte e de A Foreign Sound), Pedro é amigo de Moreno desde criança. Caetano o herdou, de bom grado. "Convivo com os dois e trocamos muitas informações profissionais. Mas são relacionamentos e trocas diferentes." Enquanto Pedro tem um natural espírito observador do que está acontecendo no universo da música popular em geral e do rock em particular; Moreno apresenta ao pai coisas mais diversificadas, pois seu espírito pesquisador é de outra natureza: "Moreno é capaz de me trazer uma gravação de músicos do Mali que achou especialmente bonita, ou então uma antiga gravação de bolero mexicano dos anos 50. Deixei todos os meus discos de vinil e meu toca-discos na casa de Dedé [mãe de Moreno], e ele ouve muito. Pode me trazer, por exemplo, uma gravação de Elvira Rios, pela qual se impressionou, sem que eu nunca tenha falado sobre ela com ele."

Outros amigos de Moreno, como os músicos Kassin e Domenico Lancelotti, também gravitam em torno de Caetano, apresentando novos nomes da música mundial ao músico que, ao lado de Chico Buarque, é hoje bastião da MPB. "Foi o Kassin que me apresentou ao Timbaland, ao Ween e ao De Leve. Os três se tornaram importantíssimos na minha cabeça. Como produtor e músico, Timbaland (um dos grandes nomes do hip-hop americano) foi precursor desse jogo rítmico dos rappers americanos modernos, um jogo de desconcertar o ouvinte, que muito me fascina. De Leve é o único rapper brasileiro que faz esse tipo de jogada, sutil e surpreendente. Ween eu ouvi alguns anos atrás. E dois músicos que participaram de Cê - o Jonas Sá (vocalista e irmão do Pedro) e o Ricardo Dias Gomes (baixista) - adoram essa banda." Mas não foram só esses os músicos ouvidos por Caetano ao fazer Cê. Também plugou-se em Los Hermanos, grupo que, segundo ele, faz composições ricas e refinadas, muito pensadas, com força, "'nem simplistas, nem primárias". Outra banda que o impressionou recentemente foi a americana TV On the Radio. Mas a base mais estimulante de sua conversa com Pedro Sá, fundamental na gênese do Cê, foi uma gravação do grupo Pixies para a BBC de Londres. Quem apresentou o Pixeis a Caetano foi uma amiga inglesa, Jill Drawer, escritora e ex-mulher de Gerald Thomas.

Caetano insiste na afirmação de que Cê nasceu da vontade de fazer um disco de canções impessoais. Mas há muita coisa personalíssima no projeto. "Rocks", por exemplo, é dedicada a Zeca, o filho de 14 anos, em retribuição às gírias que Caetano pegou emprestadas do repertório adolescente do primogênito de seu casamento de duas décadas com Paula Lavigne, desfeito no ano passado. "Rata" é uma delas. O oposto de "gata". Em vez de dizerem 'Aquela menina foi escrota comigo', eles dizem: 'Ela foi uma rata'." Caetano achou a expressão bonita e criou a personagem com um ganesh tatuado na coxa de "Rocks". A tal moça existe, é uma das amigas de Zeca? "Já vi um rapaz com um ganesh tatuado nas costas. Mas uma moça não." E se agora aparecerem várias moças com um ganesh tatuado na coxa? "Tomara. Não é o primeiro tatuado da minha obra. O menino do Rio tinha um dragão tatuado no braço." Quando o sorriso pela lembrança do dragão tatuado no braço se dilui, ele volta às tramas da criação. "A verdade é que você sempre termina trazendo para a música aquilo que tem de seu. Por caminhos enviezados ou oblíquos, mas traz." O dolorido balanço do casamento acabado, totalmente explícito na música "Não me Arrependo" foi mostrado à ex-mulher, Paula Lavigne, em Londres, no hotel em que o ex-casal se hospedou com os filhos, depois de uma festa em homenagem ao cineasta espanhol Pedro Almodóvar, em Paris: "Foi o Tom quem armou o negócio. Ele fica muito aqui comigo, eu vou à casa deles, continuo trabalhando com Paulinha, mas esse assunto de canções, sobre o que elas falam, me parece um ponto sensível demais. Tom acompanhou de perto a confecção do disco, aprendeu as canções - tem até uma foto dele no encarte do CD - e pediu, em Londres, para que eu cantasse 'Minhas Lágrimas' para Paulinha. Depois pediu 'Não me Arrependo'. Pedi que ele cantasse também. Ela ouviu 'Não me Arrependo' em dueto. Foi um momento muito íntimo da gente."

Relembro a Caetano que, num de nossos últimos encontros, ele comentou que Tom, o caçula de 9 anos, só se interessava por futebol. Como aconteceu esse interesse do filho por música? "Ele joga futebol muito bem e gosta mais de futebol do que de qualquer outra coisa. De música não gostava, diferentemente de Moreno e Zeca. Não queria que eu cantasse para ele dormir e achava chato quando eu começava a tocar violão. Até que me acompanhou, com o Zeca, numa excursão que fiz à Europa, sem banda, só com um violão. Assistindo aos shows, começou a mudar de idéia. Acho que ficou orgulhoso de estar sozinho comigo, fazendo programa de homem. Hoje, não só adora música como tem uma relação de suas favoritas, hierarquicamente dispostas. Gosta de 'Terra'. 'Desde que o Samba é Samba', 'Trilhos Urbanos' e 'Leãozinho'."

Outra descoberta: Tom não é somente parecido com o pai fisicamente. De temperamento também. É concentrado e gosta de estudar. Zeca é mais intuitivo, como Paulinha. "Mas o Tom também me descobriu. Comecei a me ligar em futebol por causa dele. Vou aos jogos e fico louco, prestando atenção, lendo sobre quem ganhou e perdeu. Fiquei mal durante o período em que o Flamengo vivia perdendo. Sempre fui flamenguista. Paulinha e Zeca torcem pelo Fluminense. Eu e Tom somos baianos. O Zeca é carioca, como a mãe. Desde pequenininho o Tom faz essa distinção."

Caetano relembra o nascimento de Zeca, no dia 7 de março. Sua mãe, Dona Canô, e a irmã Clara Maria vieram da Bahia - e nada de a criança nascer. Paulinha fugia do médico e Dona Canô comentava: "Esse menino não quer nascer; vamos nascer com ele". Sem dilatação, contração, nada, foi necessária uma cesariana. Zeca nasceu de 10 meses, com quase cinco quilos. Já Tom, que ganhou esse nome por ser do mesmo dia de Tom Jobim, 25 de janeiro, nasceu em Salvador, no sagrado recesso de verão a que Caetano se entrega todos os anos. Também na Bahia a mãe teve de passar por nova cesariana. Sem dilatação, contração, nada.

A relação pai e filho com Moreno é ainda mais intensa. Falam-se todos os dias e fizeram há pouco tempo um show juntos no Sesc, em São Paulo, lindo, segundo o pai coruja. A neta, Rosa, filha de Moreno e Clara, fortaleceu ainda mais a relação entre os dois; ou melhor, entre os quatro. Criado numa casa eminentemente feminina, 13 mulheres ao todo, Caetano não se queixa do que o destino lhe armou. "Meu pai foi o único homem da casa até Rodrigo, meu irmão mais velho, nascer. Minha mãe casou-se com meu pai e foi morar numa casa com dez mulheres. Para qualquer pessoa, isso seria um pesadelo. Graças a meu pai, tudo se ajeitou sem maiores problemas. Claro que, se Dona Canô não fosse a mulher que é, não teria dado certo. Nunca presenciei uma briga doméstica. Todos almoçavam e jantavam juntos, numa mesa grandona, meu pai e minha mãe sentados na mesma cabeceira."

Leio o que ele me disse em 1979, quando lançou Cinema Transcendental, e o pai ainda era vivo. Caetano se emociona e fala que adoraria que o texto fosse usado porque está muito bem dito. Seja feita a sua vontade: "Meus pais são muito elegantes, requintados culturalmente. Fazem parte da chamada nobreza popular do Recôncavo da Bahia. Formam um casal depositário de um tipo de nobreza popular que já na minha infância estava em vias de acabar. E é um casal feliz há quase 50 anos".

Conviver com três filhos homens é, portanto, uma novidade. Seria a música "Homem" um reflexo desse seu mundo masculino familiar? "Acho que sim. Não pensei nos meninos quando compus. Mas tenho certeza de que essa convivência muito masculina com Moreno, Zeca e Tom influenciou bastante. Eles são muito masculinos. Jamais brinquei como eles brincam: de porrada, uma coisa meio violenta, mas alegre."

E Caetano, afinal, como está? Alegre? Triste? Mais ou menos? "Estou vivendo um momento interessante. Consegui fazer esse disco, descobri que sou capaz de concentrar minhas energias. Cê é um disco de energias concentradas. Estou com esperança de poder organizar um pouco melhor a minha vida pessoal daqui pra frente."

C de Caetano

O filósofo e poeta Antonio Cicero encontra o amigo Caetano e aproveita para falar todas as coisas sobre Cê que não foram ditas pela imprensa mais interessada em explorar as opiniões - naturalmente polêmicas e provocantes - do músico baiano sobre a política brasileira. Aqui você descobre o motivo pelo qual ele deixou de detestar Los Angeles, fica sabendo que Waly Salomão o livrou de uma bad trip de ayahuasca e por que o novo CD corre o risco de ser considerado obsceno pelos portugueses.

O lançamento de qualquer disco de Caetano Veloso sempre produz muito frisson e muita alegria. Isso ocorre mesmo quando as canções por ele cantadas não são de sua autoria, como é o caso de Fina Estampa e de A Foreign Sound. Nesses discos, por exemplo, grande parte da alegria se deve ao fato de que a magia moderna e quente do cantor consegue restituir para nós a intimidade perdida com canções que um dia foram nossas - e de que o faz com a delicadeza de nelas preservar, não se sabe como, a aura que distingue as coisas belas e longínquas. E parte do frisson se deve às famosas e polêmicas declarações e entrevistas que Caetano concede, por ocasião dos seus lançamentos. Ora, em relação ao presente disco, Cê, são redobrados o frisson e a alegria.

A alegria: trata-se de uma obra não só do cantor, mas também do compositor Caetano Veloso, que tendo, pela primeira vez, composto sozinho todas as canções de um disco seu, volta com a voltagem poética; o punch e a sutileza que o tornam ímpar na música popular. Essas qualidades são realçadas pelo fato de que a integração entre letra, música, arranjo e canto é tão bem realizada, graças à perceptível qualidade orgânica da parceria dele com os seus músicos (que, sob a direção de Pedro Sá, captaram e partilharam perfeitamente das suas intenções artísticas), que desse CD inteiro pode-se dizer, nas palavras do extraordinário verso da canção "Outro", que é "feliz e mau como um pau duro".

O frisson: Caetano lançou Cê às vésperas das eleições presidenciais brasileiras e, obediente ao imperativo categórico de dizer, doa a quem doer; o que lhe parece ser a verdade em matéria de política, criou polêmica. Ora, ninguém ignora que ele jamais temeu a polêmica. Entretanto, no caso específico desse disco, produziu-se um efeito indesejável: o gancho das eleições tornou mais quentes, do ponto de vista jornalístico, as declarações de Caetano sobre a conjuntura política que as considerações que teceu tanto sobre a obra extraordinária que estava a ser lançada quanto sobre outros assuntos. Resultado: lamentavelmente, muitas de suas reflexões acabaram por ser omitidas. Pedi-lhe que me falasse dessas omissões.

"Ninguém publicou, por exemplo", disse-me ele, "a minha afirmação de que um dos shows mais bonitos e emocionantes que vi ultimamente foi o da Maria Rita. Ela é tão segura musicalmente que se tem o prazer de saber que, mal ela abre a boca, sai a nota certa. Além disso, ela tem um repertório muito amplo de possibilidades expressivas, tanto vocal quanto gestual e dramaticamente. Cada canção fica muito destacada de todas as outras. Ao cabo do show, não é preciso fazer esforço para lembrar cada número individualmente. O entrosamento dela com os músicos é tão grande que cada escolha do repertório desempenha exatamente o papel que eles juntos haviam imaginado. Isso não é pouca coisa. Falei também de Los Hermanos. Expliquei que gosto do talento, da graça e da beleza do Seu Jorge. Disse também que o show do Lulu Santos é de primeiríssima qualidade, como show de rock. Um crítico norte-americano comentou, com razão, que o que é mais fascinante no Lulu é que mistura coisas do mundo do rock e do pop, de um jeito que nenhum americano teria a liberdade interna de misturar." 

Penso que isso quer dizer que Lulu, como também o próprio Caetano, toma o que lhe interessa da música anglo-americana (ou de qualquer parte do mundo), sem reverência excessiva nem inibidora. Quando um brasileiro tem demasiada preocupação de "estar à altura" da música americana, é que já se coloca previamente na posição de não estar à altura dela. Quando um músico brasileiro supõe que, para "ser contemporâneo", precisa saber tudo o que se passa no mundo anglo-saxão, de antemão já põe esse mundo no centro, e, ao fazê-lo, condena-se à periferia.

Os verdadeiros mestres - brasileiros ou não - permitem-se uma certa sprezzatura, um certo pouco caso sem o qual eles não seriam capazes de tomar liberdades com as criações alheias; e, sem tal liberdade, não há criação possível. "É uma estrada de mão dupla", diz, nesse sentido, Caetano. As escolhas que David Byrne fez no Brasil foram distorcidas pelo desconhecimento relativo que os americanos têm da música brasileira. Isso lhe permitiu ser revelador para nós também. Assim, é importante para os brasileiros que ele tenha, por exemplo, destacado a importância de Tom Zé."

Caetano também se mostra em sintonia com o pop atual, embora não pareça fazer muito esforço para se informar: "Alguns artistas chegam a mim pela própria força, sem que eu me esforce para isso, como Madonna, Britney Spears. Mas há outros que não se impõem como figuras conhecidas, que me chegam até meio por acaso: o grupo Wilco, por exemplo, eu conheci porque a minha gravadora nos Estados Unidos, a Nonesuch, é a mesma dele. Depois, no Tim Festival, eles vieram e eram excelentes. Já o Arcade Fire achei meio artificioso."

Cê é uma obra redonda, em que não se encontra elo fraco. Mas pedi a Caetano que me falasse apenas de algumas canções do disco que, por uma razão ou outra, me intrigaram. Perguntei-lhe sobre "Minhas Lágrimas", canção em que uma grande desolação transparece através da descrição de certas ilhas desérticas que são às vezes avistadas no oceano Pacífico, por quem chega ou sai de Los Angeles de avião. Lembrei que ele uma vez me dissera que não gostava de Los Angeles. Ele me explicou que, de fato, anos atrás, quando se encontrava em Los Angeles, sonhava com suas cidades estrangeiras prediletas, como Madri, Nova York, Paris e Buenos Aires, mas que agora, quando vê a Barra da Tijuca, no Rio, Alphaville, em São Paulo, ou algumas áreas de Salvador, que lembram Los Angeles, ocorre-lhe que talvez seja esse o futuro do mundo. "Estou aprendendo a gostar de Los Angeles. Talvez chegue a realmente gostar dessa cidade, pois prefiro gostar do que não gostar das coisas."

Uma canção que me emociona muito é "Waly Salomão", pois fala do nosso grande amigo, falecido há alguns anos:

Meu grande amigo
Desconfiado e estridente
Eu sempre tive comigo
Que eras na verdade
Delicado e inocente

Concordo com Caetano, que sabe o que diz, pois, como relata em Verdade Tropical, uma vez, ao experimentar ayauasca (a folha do Santo Daime) e ter uma bad trip, foi Waly que o salvou da loucura. Com seu humor anárquico, Waly dizia que "Deus não dá asas a cobras; mas a essa - e ele apontava para Caetano - "a essa ele deu". Daí os belos e tristes versos

Eu sigo aqui e sempre em frente
Deixando minha errática marca de serpente
Sem asas e sem veneno
Sem plumas e sem raiva
Suficiente.

Em "Deusa Urbana", impressionaram-me as palavras "'mucosa roxa, peito cor de rola". Caetano me disse que esse verso se refere à uma canção de Ary Barroso de que eu não me lembrava, intitulada "Por causa dessa cabocla", que contém os versos

E quando ela na rede adormece
E o seio moreno esquece
De na camisa ocultar
As rolas também morenas
Cobrem-lhe o colo de penas
Pra ele se agasalhar.

A versão inglesa que Arto Lindsay fez do verso "peito cor de rola" diz "dick-coloured tit", de modo que perde o sentido duplo que está em jogo no português original. Caetano conta que, quando comentou isso com Arto, este se recusou a abrir mão do sexo. "Se você quiser pássaro", disse ele, "eu ponho cock- coloured tit".

Observe-se também que, como os centros das cidades americanas vêm, há muitos anos, sendo abandonados pelos brancos, "urban" é a palavra com que estes, pretendendo ser eufemísticos, se relerem aos pretos.

"Odeio" é uma canção de uma força extraordinária. Depois de duas estrofes luminosas, coloridas, oníricas, vem o refrão tenebroso

Odeio você, odeio você, odeio você
Odeio.

Outras duas estrofes luminosas e, de novo,

Odeio você, odeio você, odeio você
Odeio.

Caetano conta que Jorge Mautner chorou ao ouvir a canção e, quando ela chegou ao refrão "Odeio você" ele disse, com razão, que se trata da maior declaração de amor que se pode conceber.

Quanto a "Por quê?", que encerra o disco, Caetano comentou que um crítico, ao ouvir o sotaque lusitano da música, escreveu que se tratava de uma piada. "Ora, a canção é séria, sobre um assunto sério e, para mim, tem mais valor por causa da observação lingüística. É que nós, brasileiros, usamos o verbo 'gozar', assim como os franceses usam 'jouir', com o significado de alcançar o orgasmo. Esses verbos se referem à curtição, à fruição do momento do orgasmo, enquanto que o equivalente inglês, 'to come', parece o ponto final de alguma coisa, assim como o espanhol 'acabar'. Mas os portugueses dão a volta por cima, nessa questão, pois usam o verbo 'vir', na forma reflexiva: vir-se. A pessoa se vem. Acho isso muito bonito. E o tal crítico só pode ter pensado que se tratava de uma piada por supor que tudo o que se fala com sotaque lusitano é uma piada. É a interpretação mais vulgar que uma canção tão invulgar poderia ter encontrado", reclama. "Um amigo meu, casado com uma portuguesa, ontem me telefonou para dizer que sua mulher achava 'Por quê?' muito bonita, pois já tinha ouvido canções em inglês e em francês que se referiam a isso, mas nunca em português."

Em compensação, ela alertou para o fato de que 'rata', expressão que Caetano aprendeu com o filho Zeca e que é repetidas vezes gritada na canção 'Rocks', é a maneira mais chula de, em Portugal, as pessoas se referirem ao órgão sexual feminino. "Isso eu não sabia. Fico me perguntando se alguns portugueses vão achar que resolvi fazer um disco obsceno. De todo modo, para mim é importante que os brasileiros passem a conhecer a expressão portuguesa 'vir-se' e que os portugueses ouçam um brasileiro cantá-la."

Permitam-me terminar fazendo algumas previsões: Cê é desses discos que ouviremos sempre, agora e no futuro; seremos íntimos de muitas de suas canções; citaremos vários dos seus versos, em diversas ocasiões. Será um dia um privilégio termos sido contemporâneos do seu lançamento.













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