Luz para o Brasil

Entrevista para o jornal italiano "La Lettura"

Por Igiaba Scego (Tradução livre)

31 de julho de 2022

Ele revolucionou a música, com o movimento tropicalista (junto com seu amigo Gilberto Gil) ficou gravado no coração da sociedade brasileira, com o seu corpo, pagou e sofreu o cárcere e o exílio. Aos oitenta - ele vai completar em 7 de agosto - a batalha de Caetano Veloso, muito mais que um compositor e muito mais que um músico, continua. Pelo ambiente e pela Amazônia, pulmão sangrando do Brasil e do mundo, para quebrar as desigualdades que dilaceram sua terra, para dar outro futuro a um país convocado em 2 de outubro a uma votação presidencial decisiva sobre Bolsonaro e sobre o retorno de Lula.

Na intimidade de sua casa, onde chega até ele “La Lettura”, Caetano Veloso abraça seu ser avô com alegria e espanto. Se pergunta sobre a velhice, que não vive como uma catástrofe, pois ela é apenas mais uma oportunidade de explorar novos níveis de existência e conhecimento.

Do ponto de vista musical, continua sendo o curioso que sempre foi, uma referência constante para jovens cantores brasileiros com quem tece alianças e notas musicais. Ele continua sendo um sonhador, mas também um observador atento do que acontece em seu Brasil e no mundo.

Caetano Veloso, desde criança você começou a cantar as músicas que sua mãe Dona Canô ouvia no rádio – sambas, velhos boleros... Desde então sua voz viveu mil vidas. Como está seu relaxamento com a voz hoje que está prestes a completar oitenta anos?

Sempre me agradou cantar e continuo gostando, sinto como modifica (fisicamente não somente) com a idade. Mas cantar continua sendo um prazer para mim. Nessa idade minha mãe ainda cantava muito bem, ela tinha uma voz suave e firme. Tenho uma vantagem genética. Sirvo aos limites que vêm da velhice, mas ainda reconheço a essência da minha voz quando canto.

Há uma frase que é atribuída a Anna Magnani, a atriz romana, sobre envelhecimento: “Deixe-me rugas, não retoquem nem mesmo uma. Levei uma vida inteira para consegui-las”. É assim para você também? Envelhecer é uma jornada?

Sempre adorei esta frase de Magnani. Vejo-me envelhecer com a curiosidade de uma criança. Não quero esconder a ruga, o cabelo branco, a flacidez que tenho... Envelhecer é uma circunstância feliz. Se eu tivesse morrido com 24 ou 35 ou quem sabe, eu não teria sido capaz de sentir o que sinto, então sim, é uma jornada. Não estou dizendo que é uma situação totalmente privilegiada, mas sempre vale a pena conhecer novas situações.

Uma de suas turnês mais amadas foi “Ofertório”, feita com seus três filhos Moreno, Tom e Zeca. Uma experiência que você repetiu dando aos brasileiros um show que as pessoas trancadas em casa no meio de uma pandemia puderam acompanhar. Você deu um momento de felicidade numa época de grande dor. Como foi a pandemia para você?

Difícil, como para todos. Mas entre 2019 e 2020, depois do verão tropical, como fazemos sempre, íamos ficar algumas semanas numa casa que a minha mulher Paulinha tinha dado, juntamente com o pai, à mãe, mas que esta não usava mais porque era demasiado isolada. Por algum tempo foi alugada para gente do Rio. É uma casa de três andares, com um jardim exuberante e vista para o mar. O apartamento em que morávamos em Ipanema estava em reforma. Foi muito mais gostoso passar a quarentena aqui do que em um apartamento. Eu tive sorte. E também tive sorte porque meu filho mais novo, Tom, teve um bebê e sua companheira e o pequenino vieram ficar aqui com a gente.

Qual é a sua ideia sobre a gestão da pandemia no Brasil?

O governo brasileiro agiu da pior maneira que se possa imaginar: o presidente Bolsonaro persistiu na negação atrevida e o número de mortos, até agora, é de quase 700 mil. Perdemos amigos e colegas, às vezes fomos esmagados pela angústia. Acrescentemos a isso os mistérios que cercaram o surgimento da doença e as inúmeras teorias da conspiração que se seguiram. Passamos por esses dois anos entre a alegria de ver meu terceiro neto (o primeiro de Paulinha) aparecendo na vida, olhando o mar, o pomar, as fileiras da horta e o medo pela nossa vida e a de toda a nossa gente, próxima ou desconhecida. A mãe de Paulinha era psicanalista e uma parte da casa, no andar de baixo, perto das plantas, que havia sido usada por ela como consultório médico e escritório, foi transformado por Paulinha em um pequeno estúdio de gravação. Liguei para um dos colegas de banda do meu filho, um jovem músico talentoso e competente (que também conhece os aparatos de gravação), para gravar as coisas novas que compus nesse meio tempo. Assim, nasceu Meu Coco, um álbum com canções que comecei a compor na Bahia. E a live que fiz com meus filhos, inspirada em Ofertório, foi uma bênção para todos nós.

Pais ensinam seus filhos, e nós sabemos disso. Mas o que as crianças ensinam a um pai? Seus filhos, musicalmente e humanamente, principalmente depois da turnê juntos, o que eles te ensinaram?

Os pais também aprendem muito com os filhos, sempre digo que o nascimento de Moreno, meu primeiro filho, nascido da minha primeira esposa Dedé, foi o acontecimento mais importante da minha vida adulta. Com ele aprendi a amar as crianças e tive a revelação desse amor incondicional que vejo repetido apenas com Zeca e Tom, os dois filhos que tive com Paulinha. Os três me ensinam muito, não só coisas fundamentais como o amor absoluto, mas também, à medida que vão crescendo e amadurecendo, muitas coisas práticas e teóricas.

Você e seus amigos, Gilberto Gil, sua irmã Maria Bethânia Veloso, Gal Costa, Chico Buarque e muitos e muitos outros, são uma pedra angular da música brasileira. Mas vocês também são muito bons amigos. Ouvindo sua música, tem-se a sensação de que a amizade é um elemento secreto de cada música escrita por você. É assim mesmo?

Assim que entrei na vida de músico profissional (quando Bethânia, que é quatro anos mais nova que eu, foi convidada, aos 17 anos, para substituir Nara Leão em um pequeno musical chamado Opinião) imediatamente cultivei um clima de amizade típica entre compositores e cantores da fase que se seguiu imediatamente à bossa nova. Ainda hoje sinto amor pelo Chico, Milton, Jorge Ben, muitos outros. E outros mais jovens que vieram depois: Djavan e Marisa Monte e os roqueiros dos anos 80. Na minha geração, mesmo com figuras como Dori Caymmi, que se opuseram fortemente ao que Gil e eu propomos com o Tropicalismo, continuamos bons amigos. Resiste uma atmosfera de admiração mútua que é notável. E sim, a amizade, como substrato geral, independentemente do fato de serem colegas, é algo muito importante para o clima poético em que me movo. No samba-rap Língua, que compus e gravei em 1982, há esta passagem: “Assim como o amor está para a amizade: E quem há de negar que esta lhe é superior?” Gosto de Proust, para quem só o amor conta e que não considera nada a amizade, mas neste assunto penso mais como Nietzsche. Ou talvez, provocativamente - em uma música provocante até na definição: samba-rap - eu quisesse colocar uma pequena crise na luta entre amor e amizade.

Você é muito curioso sobre a música dos outros. Suas interpretações de outros autores sempre permitiram que seus fãs conhecessem novos cantores e sons. O que o intriga hoje no cenário brasileiro e mundial?

Eu sempre amei canções, canções brasileiras em primeiro lugar, depois tangos argentinos, boleros cubanos e mexicanos, canções americanas, tudo. Mas já durante o Tropicalismo, em 1967 e 1968, me interessava o modo ingênuo como jovens músicos brasileiros deixaram-se atrair pela música americana ao invés da sua própria. Tanto que hoje conheço muito mais canções de Cole Porter e Irving Berlin, de Gershwin e Rogers & Hart do que dos Beatles ou dos Stones. Depois da minha prisão e exílio, voltei para o Brasil e não aguentava mais ouvir música inglesa ou americana no rádio do carro. Ainda hoje, há em mim uma atenção espontânea a tudo o que acontece no Brasil musical comparado aos sucessos internacionais. Não perco a visão geral, mas não quero ouvir passivamente. No meu álbum Meu Coco eu nomeio muitos novos cantores brasileiros de vários gêneros. Entre meus grandes sucessos estão músicas que não foram escritas por mim, mas que gravei um cover e que ficaram marcadas pela minha voz. Acho que é porque tenho muito mais prazer em cantar do que em compor.

Se ele não fosse um compositor o que ele teria feito?

Cinema.

Há dois anos, o documentário "Narciso de férias" sobre sua prisão durante a ditadura militar, aquela que mais tarde o levou ao exílio na Europa, a se tornar refugiado, foi apresentado fora de competição no Festival de Cinema de Veneza. Mostra toda a sua fragilidade e resiliência. Como foi ficar desnudo? Especialmente em um tema tão doloroso e dramático como este?

Dois diretores estavam prestes a filmar um documentário baseado no capítulo 'Narciso de férias' do meu livro Verdade Tropical. Primeiro, eles filmaram uma entrevista comigo; aí, a partir daí, entrevistaram o Gil (que foi preso comigo), outras pessoas envolvidas, minha família; visitaram o quartel... Mas quando revisaram meu material de entrevista, decidiram basear o filme apenas nisso. Eles me mostraram, sem avisar, documentos que eu nem tinha conhecimento. E fiquei impressionado. Às vezes indignado, às vezes emocionado. O filme foi rodado antes de o candidato de extrema-direita ser eleito presidente (Jair Bolsonaro tomou posse em 1º de janeiro de 2019). Ele é um homem que repetidamente, por décadas, como deputado, elogiou o período da ditadura militar, os torturadores, e hoje está desmantelando a ordem democrática. Tudo foi filmado antes de imaginar que tal personagem pudesse chegar ao poder.

 O que você deseja para o futuro do seu país às vésperas das eleições?

Gostaria de finalmente ver uma luz, o candidato em quem votarei é o Ciro Gomes, um político experiente e inteligente que tem um plano de longo prazo para o Brasil. A polarização entre Lula e Bolsonaro parece insuperável. Entendo e compartilho do amor que grande parte da população tem por Lula. Sua história, a criação do Partido dos Trabalhadores, sua ascensão ao Palácio do Planalto, seus dois mandatos que deram força a pessoas e territórios de baixa renda... tudo isso merece muito amor. Mas eu gostaria de um Brasil mais maduro do que esse pêndulo que não para de oscilar entre a extrema direita, que se impôs seguindo uma onda global da direita, e uma esquerda cujo líder esteve recentemente preso (por uma ação conjunta de promotores e um juiz que mais tarde se tornou ministro do presidente de direita eleito justamente na esteira desse processo suspeito), em uma América Latina onde essas rápidas flutuações correm o risco de prejudicar os interesses do imperialismo. Sonho com um Brasil em crescimento novamente, mas sem as desigualdades escandalosas do 'milagre econômico' do ministro Delfim Netto, que fez bom e mau tempo durante o período ditatorial, um Brasil que entre em uma longa onda de afirmação nacional que se abra para uma influência brasileira no mundo, uma nova luz que alivia as dores da humanidade em seus terríveis desequilíbrios. O Brasil nos mostrou coisas horríveis, mas não podemos esquecer que também foi berço de tanta beleza. Trata-se de torcer por Lula, caso fique cada vez mais claro que Gomes não tem chance. Mas também esperar que, uma vez eleito, Lula traga muitos conteúdos do programa de Gomes para o governo. Ou algo que surpreenda e realize mais do que o próprio Gomes planejou. Sabemos o quão difícil será para Lula ou Gomes tirar o Brasil do horror de um mundo devastado pela pandemia, pela guerra russa contra a Ucrânia, por uma terrível situação econômica. Do terror do meio ambiente ao questionamento da ciência, tudo aponta para mudanças profundas que perdurarão no tempo. Sonho libertar o Brasil das cadeias coloniais, das mentiras do neoliberalismo, da mediocridade.

E o seu futuro? Quais são seus projetos?

Completo oitenta anos no próximo domingo. Estou planejando um programa de TV com meus filhos e minha irmã, para celebrar o que há para festejar e continuar a ver as coisas com atenção, para ver como vão ficar.”

Nota da matéria: Obrigado pela colaboração na tradução do português Daniele Petruccioli e Giorgia de Marchis.


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