Frente e verso

Entrevista para a Revista Elle

Por Tárik de Souza

1989

Caetano no show Estrangeiro.

Acima da média alta de nossas artes musicais populares, Caeta­no Veloso estabeleceu-se há quase 25 anos como uma espécie de antena parabólica da raça. Pega todas as es­tações. Qualquer clima, época e a lati­tude mais variada. Hoje pode estar fi­losofando em alemão, ontem contabilizando "Two Naira Fifty kobo", numa descoberta precoce do African pop que inundaria o planeta.

Transmissor de mão dupla, nada mais natural que outras emissoras também captem sua onda. David Byrne, o líder dos Talking Heads, deu de restaurar o espírito de seu tropica­lismo na coletânea Beleza Tropical, que mereceu páginas polêmicas na imprensa internacional. O anglo-ama­zônico Sting convidou Caetano para cantar via satélite no programa ecológico Our Common Future, ao lado de Gil, Gal e Milton, num episódio que ele alfineta com modesta imodéstia - confiram o paradoxo adiante. Finalmente, a dupla Ambitious Lovers, li­nha de frente do vanguardismo nova-iorquino - Arto Lindsay e Peter Sche­rer -, decidiu produzir e participar do último elepê de Caetano, um disco que só podia chamar-se Estrangeiro. Duplo sentido, como lerão a seguir.

Depois de uma temporada pelo mundo dos festivais de verão da Europa ao lado dos violões dos Joões - Gilberto e Bosco ("Eu sou o hiato musi­cal entre eles", volta o gênio módico) -, Caetano, o Caêtas, o Cae - con­forme a intimidade com o interlocutor - aterrissa com o show Estrangeiro em São Paulo, enquanto seu disco homônimo segue viagem pelos EUA e Europa. Mas ele pretende embrenhar­-se país adentro com o atual repertório, o primeiro totalmente inédito desde Caetano, de 87. Está cheio de sentir-se fora de casa, embora às vezes se fla­gre sueco no Brasil, segundo confessa nesta entrevista a ELLE.

ELLE - O estrangeiro é você ou são os outros?

Caetano - Fora do Brasil eu me sinto sempre estrangeiro, principalmente na Inglaterra, aquele país impermeável (risos), onde morei durante o exílio. Acho estranho, fico surpreendido pela acolhida de minhas músicas nos países que não usam língua portuguesa. Na Itália, num festival de vanguarda, saiu nos jornais de Roma uma apreciação dos meus espetáculos com um deslumbramento que me assustou. Lendo as críticas entendi parte desse entusiasmo. Eu cantando "Billie Jean", do Michael Jackson, com aquele tipo de comentário sutil, ou antigas canções brasileiras, ou a música "Terra", de que não se entende a letra, mas tem aquela repetição do título e dá para pegar o clima... Enfim, na Itália ainda dava pra entender que eles gostassem um pouquinho. Mas real­mente me sinto estrangeiro fora do Brasil, não tenho grandes ambições de mercado exterior. Tudo o que vier de lá é a mais, e não pretendo morar noutro país, embora goste do clima de Nova York, me sinto mais perto de ca­sa que na Europa. Isso apesar de Sevilha ter me aproximado mais do poe­ta João Cabral de Mello Neto...

ELLE - Você viu algo do Nordeste na Espanha?

Caetano - Sevilha tem momentos de uma espécie de Recife ideal, entende? Me surpreendi com a beleza branca da Andaluzia, tudo muito irri­gado e fértil, aquela arquitetura belíssima, mesquitas, a cidade toda arborizada cheirando a laranja. Me parecia um absurdo João Cabral dizer que, apesar de gostar da Itália, achava a Espanha mais bonita, mas quando passei por Sevilha e Córdoba dei razão a ele. É a Bahia ideal também.

ELLE - Então lá você não se sentiu estrangeiro?

Caetano - É que me sinto estrangeiro no Brasil também. Por exemplo, não é do meu temperamento ultrapassar si­nal vermelho, acreditando que ele pertence ao governo e a gente está sendo mais esperto desobedecendo. Me lembro ainda da adolescência na Bahia, eu na fila de ônibus com Bethânia, eu dizia a ela que me sentia um sueco, por causa dos nosso costu­mes arcaicos, o nosso atraso. Eu fazia tudo de ônibus porque adoro, gosto muito mais que andar de carro, a não ser quando estou dirigindo.

ELLE - Mas hoje você não tem mais como andar de ônibus por causa do assédio das pessoas.

Caetano - Eu pego ônibus, sim, não tenho nenhum problema com isso, não. Inclusive é mais difícil as pessoas te reconhecerem no ônibus, ficam em dúvida. Pouco tempo atrás eu fazia análise num psicanalista em Copacabana e ia e voltava para o Leblon de ônibus todos os dias. Ninguém me reconhecia. Só umas meninas que iam para a aula de dança, umas meninas bacanas do Leblon, bonitinhas achavam possível que fosse eu. Me cumprimentavam assim com aquela nonchalance carioca, me faziam sentir muito bem. Mas uma vez, num show do Teatro Castro Alves, em Salvador, toquei nessa história dos sinais e alguns caras esboçaram uma vaia.

ELLE - Como foi a cena?

Caetano - Falei que passavam uns garotos voando no sinal vermelho me chamando de idiota porque eu estava parado, e eles é que eram burros, quer dizer: "Vocês são burros, vocês não param". Algumas pessoas vaiaram e eu emendei: "Não tenho nada com isso aqui, me sinto um sueco". Tomei uma vaia total que durou uns cinco minutos. Foi difícil continuar o show. Taí um momento de estrangeiro para ilustrar.

ELLE - Mas sua música sempre teve uma direção universal, então não é estranho que seja aceita lá fora.

Caetano - Eu não tinha essa ambição de ser ouvido universalmente e por qualquer pessoa em qualquer parte do mundo. Esse meu encontro com os Ambitious Lovers, por exemplo, tem mais a ver com uma afinidade artística. Eles gostaram do meu trabalho e estavam a fim de me produzir e gostei do trabalho deles. O Peter Sherer toca aqueles teclados como se fosse bandolim, tem muita noção de textura, e o Arto entra com aquela guitarra, eles sabem usar os ruídos, eu achei o disco deles, Greed, um dos mais bonitos que saíram nos Estados Unidos no ano passado. Mas, sinceramente, não sei que virtudes ocultas têm minhas músicas que outras pessoas se interessam. mesmo sem entender. Será uma espécie de beleza que eu mesmo nunca tentei controlar, por não suspeitar que um dia pudesse chamar atenção. Meus talentos musicais são muito limitados se comparados com Djavan, Mil­ton Nascimento ou Gilberto Gil.

ELLE - Modéstia, Caetano.

Caetano - Não é, não. Eu falei isso outro dia para o Sting duas vezes e fiquei com raiva porque a reação dele foi como se eu quisesse elogio, uma coisa de falsa ou verdadeira modéstia. Primeiro, durante o ensaio da mú­sica que cantaríamos juntos no pro­grama Our Common Future falei que preferia a Gil ou a Milton para passar a harmonia porque eu não tinha quali­ficação técnica para fazer isso. Aí todos disseram: "Oh! come on...", como se eu estivesse fazenda onda. Fui jan­tar com o Sting e surgiu o mesmo pa­po e a mesma reação: "Que nada, que é isso". E eu tive que esclarecer as coisas. Em primeiro lugar, não sou nada modesto, sou muito melhor que Gil, Chico Buarque, Milton, todos eles. Sou o melhor de todos, I'm the best! (risos). Agora, musicalmente, sou uma figura híbrida. Não nasci superdotado para isso. Não me adestrei para chegar a uma excelência como João Gilberto que para mim é mais que músico, é um mestre, é meu formador bá­sico. Para tudo o que é julgamento es­tético, apreensão, percepção. Ele foi, é e continuará sendo. Sem João Gilberto, sem Proust, nem Mallarmé, eu não posso entender João Cabral, João Donato.

ELLE - Como é que você analisa sua presença na MPB?

Caetano - Música popular, como vo­cê sabe, é uma área de exigências relativamente frouxas. A gente pode se sentir mais ou menos livre para fazer canções agradáveis ou amenas sem precisar muito rigor de realização. De todo modo, me empenhei muito numa outra coisa que, no momento, tinha muita importância - fazer música com uma atitude crítica. Fazer da mú­sica popular uma crítica artística à feitura da música popular. Nos anos 60 havia um ambiente muito propício a este tipo de coisa.

ELLE - Uma metamúsica?

Caetano - Sim, e um metacomporta­mento profissional, né? Eu despendi toda a minha inteligência nisso, num estilo antiestilo, ou num antiestilo estilo, entendeu? Não posso negar que isso me confere certa importância. Mas não o suficiente para explicar por que um trompetista italiano, ou um di­namarquês, um francês, que não fa­lam português, venham a gostar da minha música.

ELLE - Já que você falou nos 60 e estamos à beira dos 90: como seria um balanço desta década?

Caetano - Achei os 70 mais chatos embora eu, pessoalmente, estivesse mais feliz naquela época. Quando começaram a aparecer estes novos grupos de rock, novos modos de ser desbundado nos 80, eu achei mais interessante, Em suma, gosto muito mais do Prince que do David Bowie, para ser mais sintético.

ELLE - Em termos de comportamento, não acha que nos anos 80 brotou um neocaretismo?

Caetano - Olha, eu senti isso mais cedo, ainda nos anos 70. Muita gente fala que depois do aparecimento da Aids surgiu um pretexto para a neocaretice, mas acho que ela começou antes, como uma reação natural aos 60. Um movimento de contenção, de força centrípeta, porque os 60 foram muito yin, muito centrífugos. Mas falar em décadas torna tudo mais complicado. Em geral, quando as coisas chegam ao Brasil, como aconteceu ao punk, já se espalharam pelo mundo todo. Os hippies chegaram aqui mais rapidamente.

ELLE - É que o punk exigia um maior índice de neurose urbana, que só agora se instalou nas principais cidades brasileiras.

Caetano - É verdade. São Paulo é mais punk que os outros lugares. Se bem que o primeiro grupo que assumiu essas características de uma maneira maravilhosa foi a Camisa de Vênus, em Salvador. Eu os vi colocando no palco dezenas de criancinhas de 3 a 9 anos de idade num show à tarde num circo; lembro que estava com Regina Casé e o marido dela, Luis Zerbini, e ele chorou feito criança porque é artista plástico e estava interessado nesse ambiente punk. Eles cantavam uma música com um refrão - "Não vai haver amor neste mundo nunca mais" - e umas trinta criancinhas que o Marcelo Nova; que admiro muitíssimo, botou no palco repetiam esse refrão. Acho que nenhum fez um happening punk assim tão incrível quanto este.

ELLE - Os anos 90 trariam então um revival da liberação dos 60?

Caetano - As pessoas já se interessaram em voltar a se mover de suas cascas. Houve uma onda de todo mundo se preservar, de guardar o lu­gar que ocupa na sociedade, procu­rar se endireitar. Porque é inegável que os 60 realmente surpreenderam todo mundo. Ninguém esperava que os Beatles, os Rolling Stones fossem se transformar naqueles fenômenos. Nem eles esperavam nem as grava­doras esperavam, nem os críticos, nem ninguém. Houve uma democrati­zação da cultura, um enfrentamento com as antigas estruturas. O mercado do disco virou outra coisa e também teve que crescer como pretensão intelectual. Não foi planejado nem esper­teza, tudo aconteceu de maneira in­controlável. John Cage abriu a boca e disse: "Prefiro rock ao jazz". Leonard Bernstein falou: "Os Beatles são uma coisa deslumbrante". Um jornalista da Rolling Stones, não lembro o nome de­le, escreveu que assistindo a um show de Bob Dylan sentia-se diante de um gênio verdadeiro. "É como se Beetho­ven estivesse vivo na minha frente". Nem Frank Sinatra, nem Little Richard podiam dar conta dessa síntese que foi feita pelos Beatles, pelos Stones. E por Bob Dylan, um artista de densidade literária, poética.

ELLE - Você acha que o rock no Bra­sil abalou a MPB?

Caetano - Ao contrário de muita gente; minha primeira reação ao rock foi positiva. Quando ouvi o primeiro disco do Barão Vermelho, que é maravilho­so, o Cazuza cantando, fiquei apaixo­nado pelas letras, as canções. O problema do rock é que ele se tornou uma palavra que deveria servir para tudo, mas aparecem os especialistas que vão limpando: "Isso aqui não é rock, aquilo também não..." Começa a haver um academicismo do rock. E quando você lê a história do Little Richard é aquela incrível mistura de incultura com ina­daptação e exuberância. Quando en­trevistei Mick Jagger em Nova York, eu quis saber como é que ele se identifi­cou imediatamente com aquele rock primitivo. Porque eu não gostava de El­vis Presley, preferia Thelonious Monk, Miles Davis, Jimmy Giuffre, o Chuck Berry. Já o Elvis eu achava inclusive sexualmente repelente, meio arredon­dado, com uma cara de Kate Jurado vestida de homem.

ELLE – A propósito, no repertório do Estrangeiro você dedica uma música a sua ex-mulher, Dedé, e outra à atual, Paula Lavigne, com uma referência a es­sa questão do sexo equívoco. Como é a sua relação com as mulheres?

Caetano - A Dedé é uma pessoa de­finitivamente importante na minha vida e será sempre ligada a mim. Em tudo que acontecer comigo eu penso nela, e tudo que ocorre a ela me diz respei­to. E hoje, vivo com a Paulinha. Quer dizer, foi uma coisa simples a dedicatória d­as músicas. Com relação às mulheres, se eu assisto na televisão a um daqueles programas tipo Silvio Santos - acho que foi ele quem co­meçou com isso -, aquela multidão de mulheres na platéia me parece um pesadelo. Acho horrível. Uma cena expressionista daquele filme M, o Vampiro de Dusseldorf, quando ele é julgado pelos próprios malfeitores. A impressão é que aquelas mulheres estão ali porque não merecem respei­to, aceitam fazer aquela algazarra apavorante. Agora, eu também não suporto ambientes só masculinos. Gosto muito de conversar com mu­lher, dá um tipo de colorido nos ambientes. Conviver com mulher, namo­rar mulher, é bom, porque dá um aconchego. Gosto de mulher por identificação, eu sempre fui muito fe­minista, mas também por diferença. Porque, por mais identificação que eu tenha, de todo modo eu não sou uma mulher, nem tão feminino assim. A Re­gina Casé me disse que eu sou o único homem com quem ela conversa como se estivesse com uma amiga na manicure. "Parece uma amiga, Môni­ca, que eu tenho; vou te chamar de Mônica."

ELLE - Você sempre se comportou assim?

Caetano - Depois da maioridade comecei a conversar mais com homens. Tem mais homens intelectuais e tem melhores intelectuais homens que mu­lher. Mas sempre fui acostumado com isso porque minha casa era cheia de mulheres, minha mãe, quatro irmãs, umas três tias, umas cinco ou sete primas. O primeiro disco que gra­vei foi para dar de presente a uma pri­ma muito mais velha que eu, agora com 70 anos, que mora no Rio. Ela me criou junto com minha mãe, como se fosse uma segunda mãe. Em Santo Amaro, tinham comprado uma máquina que gravava no acetato direto com a agulha. Fiz o disco na minha casa com a Nicinha, minha irmã, tocando piano. Cantei "Feitiço da Vila", de Noel. Aquela história que conto no show Estrangeiro, Cinema Falado, só mais tarde fui relacionar com isso. Chorei vários dias cantando essa música e "Palpite Infeliz" em casa, para a Paulinha, e só depois me lembrei dessa gravação, que fiz com "Mãezinha Querida" do outro lado. Parece coisa freudiana mesmo, uma idéia que tinha ficado recalcada, escondida.

ELLE - E o seu pai, como era seu relacionamento com ele?

Caetano - Eu via muito o meu pai e quando era menino; me sentia parecido com ele. Tinha vontade de casar, de ter uma mulher comigo.

ELLE – E, como pai, como é sua relação com Moreno? Ele está com que idade?

Caetano - Tem 16 anos. Sou um pai mais para o tipo amoroso. De deixar livre a criança e agora o adolescente ao invés de impor formas, limitações. Sou muito amigo dele. Ele gosta de música clássica, erudita contemporânea mas também ouve Jimi Hendrix dias inteiros. Ele não é tipo bom aluno, organizado, eu não sou disciplinador. A Dedé é melhor, mas também não o suficiente. A gente fica se ajudando na organização para ele tomar juízo. Mas ele é muito bom, muito bonito, muito bacana. É ótimo ter um filho assim.

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