Homem-bomba
Entrevista para a Revista BRAVO!
Edição 110
Outubro de 2006
Aos 64 anos, Caetano Veloso lança “Cê”, álbum com letras que remetem ao sexo e com sonoridade que se aproxima do rock. Em entrevista feita por e-mail pela redação de BRAVO!, o cantor diz: ”O que me interessa é a mudança de algo na cabeça de quem dialoga com minha música”.
BRAVO!: Cê apóia-se em elementos fortemente ligados à idéia de juventude: rock e sexo. Este é o modo que você encontrou de lidar com a velhice?
Caetano Veloso: Paul McCartney e Mick Jagger, Bob Dylan e Erasmo Carlos têm a minha idade, pouco mais, ou menos. E esses são os revitalizadores do rock (os pioneiros estão mortos ou muito mais velhos: Elvis, Jerry Lee, Chuck Berry...). Eu próprio, com as escolhas tropicalistas, contribuí para a revalorização do estilo indescritível criado por aqueles americanos meio malucos, meio débeis mentais, meio gênios dos anos 50. Agora cheguei exatamente à idade da famosa canção de McCartney: 64. Não há nada que qualquer um de nós faça hoje que não inclua “lidar com a velhice”. Cê não foi concebido especificamente para exercer essa função. É o disco que, sendo o mais fiel possível aos meus impulsos espontâneos, pude fazer agora. Sexo tem a ver com rock, rock tem a ver com Cê. Jovens têm mais vigor sexual. Mas não gosto de pensar que sexo é coisa de jovens. Sexo é um absoluto. A velhice vai chegando devagar, apresentando perdas que parecem terríveis. Para um homem que sempre teve uma visão superboa, passar a ter de usar óculos para ler foi uma humilhação e um desconforto. Depois que me acostumei, passei a sentir prazer com a passagem do fora-de-foco ao em-foco pela aproximação das lentes aos olhos. Afeiçoei-me aos óculos, entendi melhor que ser é gostoso. O envelhecimento traz desvantagens múltiplas, mas não creio que a gente deva botar tudo na conta da velhice: qualquer um pode ter tido os piores momentos de sua vida aos 32 ou aos 43, aos 17 ou aos 59 — e há casos de alegria insuspeita a partir dos 65. Uma coisa pelo menos é certa, que a gente aprende: dá mais tempo para tudo, mais do que a gente pensava quando tinha 22 anos.
Após uma fase em que você esteve sob o domínio de gêneros tão distantes do rock (os ritmos latinos, o samba reggae, os standards da canção norte-americana...), como se deu a passagem até as bandas Pixies e Pavement, entre tantas, que influenciam a sonoridade de Cê? Você estava ansioso para saber o que a parcela da imprensa que trata o rock como uma música superior diria do CD?
Até onde sei, a parcela da imprensa que trata o rock como uma música superior me odeia ou despreza. Mas eu não me senti tão distante do rock todos esses anos. Em primeiro lugar, me surpreende que se diga que o samba reggae é algo distante do rock. Reggae é corolário do rock — e realimentador do rock dos anos 70 em diante. Quando Paul Simon gravou com o Olodum, alguns comentaristas americanos e ingleses julgavam tratar-se do uso de ritmo tradicional brasileiro por um artista do neo-rock’n’roll (é como prefiro chamar o rock pós-ingleses dos 60). Na verdade, o samba reggae do Olodum era algo bem mais recente do que Paul Simon — e bem mais contaminado pelos desdobramentos do rock’n’roll do que este. Não quero nem falar em “ritmos latinos”: Owner of the Lonely Heart [da banda Yes] é mambomania revisitada — e Phil Spector já dizia que Like a Rollin’ Stone era La Bamba com poesia agressiva. A própria axé music (que ganhou esse apelido inglês de um crítico baiano imitador dos críticos rockistas “modernos” da Folha de S. Paulo) é um exemplo de vitalidade comercial e espontânea que tem história semelhante à do rock — e, além disso, alimentou-se de rock, de modo desordenado (como deve ser quando a força é incontrolável), seja nas peças quase progressivas que Armandinho exibia na praça Castro Alves, nos anos 70, seja na mistura de Jimmi Hendrix com glitter que Pepeu Gomes apresentava no mesmo lugar e na mesma época. Mas axé music é um assunto longo, de grandíssimo interesse, que não temos espaço para tratar aqui como se deve. Basta dizer que a juventude brasileira “desavisada” é arrastada por ela dos Pampas, das Alterosas, das avenidas de São Paulo, das praias do Rio, há décadas, de forma irresistível. E seus grandes artistas tornaram-se figuras nacionais sem deixar de morar na Bahia — como Elvis nunca foi morar em Nova York. Seja como for, ouço ecos do rock que me interessou desde 1966 nos discos Estrangeiro, Circuladô, Noites do Norte (este último tem uma canção chamada Rock’n’Raul, que eu adoro). O disco Eu Não Peço Desculpa, em parceria com Jorge Mautner (e cheio de inéditas minhas), tem presença intensa do rock, e A Foreign Sound (título tirado de uma música de Dylan — It’s Allright, Ma — que faz parte do repertório do disco) tem uma versão de Come as You Are de que tanto eu quanto Pedro Sá e Moreno [produtores de Cê] nos orgulhamos muito. Mas antes disso tivemos A Outra Banda da Terra, a banda de Transa, e no disco Caetano há ecos melódicos (conscientes) dos Smiths (grupo que me fascinava) em José e em Eu Sou Neguinha?. Assim, quando Pedro me mostrou o disco dos Pixies gravado na BBC — que tanto o impressionara e me impressionou pela perfeita concisão —, ele e eu já sabíamos do que estávamos tratando. Ele falou em João Gilberto. Concordei. Mas fui eu quem mostrou o disco dos Arctic Monkeys a Pedro. E também o Arcade Fire (de que não conseguimos gostar). Mostrei a ele também Grandaddy (eu gosto, mas Pedro não se impressionou). De todo jeito, Pedro conhece muitíssimo mais rock de qualquer época do que eu. O Ricardo Dias Gomes e o Marcelo Callado [baixista e baterista de Cê, respectivamente] se entenderam bem comigo porque as canções que levei para ensaiarmos (e as idéias de arranjo que sugeria para elas) casavam com o gosto e o conhecimento deles do que se faz em rock.
Muitos críticos consideram o rock um gênero artisticamente em crise, apesar de sua força de mercado. Por que você foi buscar vitalidade justamente em algo tido como estagnado?
Vou contar uma história reveladora. Um amigo me mandou uma série de comentários sobre mim que ele achou na internet, escritos por ouvintes americanos. Eram textos bem inteligentes. Muito generosos comigo. Todos ressaltavam que meus discos de Estrangeiro para cá é que os tinham feito decidir que eu seria um artista de primeira. A única ressalva era Rock’n’Raul: alguns pareciam lamentar que eu fizesse rock, outros simplesmente que eu fosse tão ruim em imitar o jeito de cantar de roqueiros. Isso me deu mais vontade de fazer um disco com som de rock. Não é o mero fascínio pelo desafio: é a necessidade de ser livre e, sobretudo, de não aceitar equívocos em forma de elogio. Acho que eles estão errados quanto a Rock’n’Raul e prefiro perder admiradores a assegurar meu êxito alimentando os erros deles. Não li muito sobre o rock estar em crise. Li algo sobre as bandas artísticas e sutis serem admiráveis, mas não terem a força bruta do rock inicial, nem mesmo do neo-rock dos Beatles ou do The Who. Mas, se há crise, sinto-me bem em me meter um pouco. Sinceramente, não me esforço para evitar crises e muito menos para confirmar expectativas.
Quem você acha que será o ouvinte deste novo CD: seu público cativo, que o segue há décadas? Você acredita que Cê dialoga com algum disco ou artista contemporâneo brasileiro?
Se há quem me siga há décadas, não há razão para agora deixar de conferir. Desiludiu-se? É só parar de seguir. Não tenho desejo de ampliar meu público. Desejo melhorar meu diálogo com quem quer que me ouça. Melhorar muitas vezes significa criar dificuldades. Talvez Cê crie dificuldades. Talvez essas dificuldades mudem um pouco a cara da turma que presta atenção em mim. Isso me interessa. Não é mudança de elenco ou faixa etária (apesar do folclore jornalístico, não conheci até aqui rejeição por parte de pessoas muito jovens, em qualquer período, embora entenda que seja natural e bom que gente jovem queira ouvir música feita por gente de sua geração): o que me interessa é mudança de algo na cabeça de quem dialoga com minha música. Esse alguém pode estar me ouvindo desde 1967 ou ter passado a me ouvir há cinco anos — ou pode começar a se aproximar agora, com Cê (e nesse caso a mudança seria o começo da atenção ao meu trabalho). E Cê dialoga com Los Hermanos e o funk carioca; com o mangue bit (beat?) e com o +2; com Lucas Santtana e o Primórdios de Marina; com Cidadão Instigado e Lulu Santos. Mas é um caso estranho. Um disco agradável e desagradável; muito meu e diferente de mim; inspirado em muita dor e capaz de me dar grande alegria.
Você já disse ter projetos para um disco de samba e outro de baladas românticas. Você acredita que cada álbum precisa ser necessariamente um novo projeto, tanto musical quanto conceitual? É necessário para você recomeçar sempre, a partir de um possível zero?
Não acho que cada disco deva ser um projeto conceitual. Contei que ia fazer um disco de sambas [chamado Dezesseis Sambas] porque é fato. Cheguei a compor alguns. Também pensei numa ultraparódia, que seria uma série de canções sentimentais, gravadas ao violão, como se fossem canções de Peninha revistas por mim porque acho isso uma idéia engraçada e poética. Tenho multidões de idéias, sempre. Mas só faço o que se impõe pelas forças do acaso. E as forças do acaso incluem minhas tendências mais íntimas. Depois respondo pelo que fiz. O trabalho com os três músicos, o resultado do som do disco, tudo isso já me deu vontade de fazer muitos shows com o repertório de Cê. O que quer que aconteça com o disco e com esses shows, meu trabalho futuro será em grande parte necessariamente conseqüência deles. Posso algum dia fazer os Dezesseis Sambas (adoro esse nome), posso fazer as canções sentimentais, mas já nada disso será o que teria sido se eu não fizesse o Cê. Vejo-me tratando do que pintou no Cê por um longo tempo. E ainda às voltas com ele quando já não esteja tratando de seus sons e assuntos diretamente. Não tenho problema de falar nos projetos que não saíram porque já estou livre deles e totalmente entregue ao Cê.