Não existiria tropicália se não fosse Jean-Luc Godard, afirma Caetano Veloso
Entrevista para a Folha de S.Paulo (13 de setembro de 2022)
Por Claudio Leal
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Godard. Foto: AFP.
"O que se chamou tropicalismo não existiria se Duda Machado não me tivesse dito que ‘Acossado’ era melhor e mais importante do que ‘Hiroshima, Meu Amor’", afirma Caetano Veloso a este jornal.
"Fui ver o filme de Godard e ali, na Bahia, no largo 2 de julho [data importante da verdadeira independência do Brasil], percebi a perspectiva pop. Só vim a ver Warhol, Lichtenstein et cetera na Bienal de São Paulo, já com ‘Alegria, Alegria’ e ‘Tropicália’ compostas. Anos depois, quando vi, em Paris, ‘A Lei do Desejo’, antecipei a observação da crítica Pauline Kael —‘Almodóvar é Godard com uma nova cara, uma cara feliz’."
"Projetei ‘Uma Mulher É Uma Mulher’ na sala da minha casa para Pedro e ele não acreditou que a Kael tivesse escrito o que eu contava. Briguei aos berros com o presidente da República, com o rei Roberto e com o ministro Celso Furtado pela nojenta censura ao ‘Ave Maria’ godardiano. Fui apoiado por Fernanda Montenegro. Sempre creditei a ‘Terra em Transe’ a inspiração tropicalista. Mas eu não veria no filme de Glauber Rocha o que vi se Godard não me tivesse munido das sua lentes."
Caetano reconhece o impacto dos filmes "Acossado", "Uma Mulher É Uma Mulher", "Viver a Vida", "O Demônio das Onze Horas" e "Masculino-Feminino" na fase de formulação do tropicalismo, em 1967. Na criação de um imaginário brasileiro, o estalo de "Terra em Transe", de Glauber Rocha, se somou à influência da liberdade estilística de "Acossado".
A febre das citações, a deglutição do pop e a montagem cinematográfica de imagens nos versos são alguns procedimentos poéticos dos tropicalistas que guardam dívida com o cineasta da nouvelle vague. A canção "Alegria, Alegria", de Caetano Veloso, tem a agilidade da câmera de "Acossado", enquanto o fecho de "Superbacana" espelha "O Demônio das Onze Horas". "Vou sonhando até explodir colorido/ no sol, nos cinco sentidos."
O único longa-metragem do compositor, "O Cinema Falado", de 1986, procurou se distanciar da estrutura godardiana, mas, em sua gênese, desenvolveu a ideia de Godard de que um filme poderia se reduzir a apenas uma câmera diante de uma pessoa contando uma história.
"Com ele aprendemos a amar melhor tanto Fuller quanto Fellini, amar e criticar melhor tanto Spielberg quanto Wim Wenders. Com ele o cinema começa a saber melhor o que é, para lá dessa história de Hollywood e de arte", diz Dedé Veloso, em "O Cinema Falado".
No mesmo ano do filme, Caetano Veloso reagiu à censura do governo José Sarney a "Eu Vos Saúdo, Maria", um dos filmes favoritos de Godard.
"O telegrama de Roberto Carlos a Sarney, se congratulando com este pelo veto a 'Eu Vos Saúdo, Maria' envergonha nossa classe. Gustavo Dahl ao menos disse que há muito tempo deixou de ser cineasta, antes de pedir respeito por um governo que não parece querer se dar ao respeito; dom Arns prefere que esqueçamos um assunto que ‘já se tornou chato’. Não! Eu não esqueço. Fernanda Montenegro não esquece. Sabemos que o veto é uma violência cultural e uma vergonha política", escreveu Caetano neste jornal, em 2 de março de 1986.