Caetano Veloso e Thiago Amud: o Brasil como futuro do presente

Entrevista publicada na Acorde! Editorial (1º de outubro de 2022)

Por Leonardo Lichote

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Foto: Leo Martins.

Em 21 de outubro de 2021, Caetano Veloso, então com 79 anos, lançou o disco “Meu coco” (Sony). Três semanas depois, no dia 12 de novembro, Thiago Amud, na época com 41 anos, pôs na rua seu álbum “São” (Rocinante). Os trabalhos, porém, têm pontos de contato muito mais fundos que a simples proximidade temporal de suas chegadas às plataformas de streaming — o fato de Caetano ter convidado Amud para escrever os arranjos de sopro na faixa-título de “Meu coco” é uma pista disso.

Tanto “Meu coco” quanto “São” apresentam uma perspectiva solar sobre o Brasil, afirmando sua grandeza num momento (ainda presente) em que a vida do país era marcada por uma funda tristeza: a manifestação de forças atávicas do Brasil, definidas pelo ódio, pela violência e pelo atraso, na defesa da estrutura de privilégios que remonta à origem escravocrata da nação.

É nesse ambiente de escuridão que Caetano afirma que “não vai deixar” essas forças trevosas tomarem conta, além de apontar para lanternas que vão “de Pixinguinha a Jorge Ben”, passando por “Mar(av)ília Mendonça”. É nesse ambiente de escuridão que Amud canta as figuras luminosas de “mães amazonas, negras, yabás” e celebra a vitória da Revolução Caraíba que varre do Brasil “barões monocultores”, milicianos, supremacistas.

Esse Brasil que ambos retratam em seus discos — assim como aquele que, funestamente, o contraria — é o ponto de partida desta entrevista, feita na casa de Caetano no início de dezembro de 2021 e mantida inédita até este momento, quando é publicada na íntegra.

A conversa passeia com liberdade, humor e profundidade pelo “sebastianismo muito particular” que ambos cultivam; pelo simbolismo da proximidade das mortes de Marília Mendonça, Letieres Leite e Nelson Freire; pelos nós da questão racial brasileira; pelos tambores do candomblé e as faces do neopentecostalismo; pelas menções a figuras que vão de Webern a Alckmin, de João Gordo a Fernando Pessoa; e pela afirmação do amanhã no olhar de hoje, expressa tanto por Caetano (“Todo presente está sempre cheio de futuro”) como por Amud (“O futuro é do tamanho do desejo”).


SÃO E MEU COCO


“Meu coco” e “São” são bastante diferentes, mas dialogam em alguns lugares. Mas parecem ter nascido do mesmo chão, este início dos anos 2020… Por que afirmar, como esses dois discos afirmam, a grandeza do Brasil no momento em que ela parece mais nublada?

CAETANO: Não é uma maluquice? (risos)

THIAGO: Não teria como, da minha parte, num momento como esse, lançar uma distopia. Eu me sentiria responsável pela tristeza de alguém, por aprofundar o sentimento de melancolia de alguém. Despertar certas coisas sombrias. Não me senti autorizado a fazer isso. Havia, no disco, duas outras canções, que foram gravadas, com gravações que eu tinha adorado fazer, de voz e violão, mas as músicas eram muito tristes. Muito tristes, uma falava da perda do sentido, completamente, uma música chamada “Mapa mundi”. Um mundo sem sentido. Essa música ia abrir o disco, e o disco ia fazer um percurso na direção de uma esperança. Mas eu tirei, falei: “não… não quero que ninguém dê play e pinte aquele negócio”.

CAETANO: Eu acho que eu ia ser redundante se eu fizesse uma coisa negativa. Mas eu não pensei isso, pensei agora porque você fez a pergunta. E achei interessante a resposta de Thiago, porque ele passou por esse drama, eu não cheguei a passar. Ele chegou a fazer uma canção que seria mais sombria, mais inativa. E ele preferiu não botar no disco. Isso não me aconteceu, não me aconteceu nada dessa maneira, mas o disco dele tem “E a galera ria”, que é uma canção bastante crítica do momento atual, muito. Não tem nada no meu disco que chega a isso. Tem “Não vou deixar”, mas é mais um desabafo. “E a galera ria” não deixa de ser também um desabafo. Mas é uma exposição de uma personalidade que já estava aí há muito tempo na mente brasileira, esse brasileiro ele já conhecia. É isso que ele tá dizendo. É muito boa a música, muito boa a canção. As canções desse seu álbum novo são mais incríveis. É o que eu mais gostei, junto com o “De ponta a ponta tudo é praia-palma”. Talvez pra mais! São muito lindas.

THIAGO: Obrigado. É, o “Anjos tronchos” talvez toque em pontos de uma desesperança… Aponta pra isso.

CAETANO: É mais sombrio. É, o mais sombrio do meu disco é “Anjos tronchos”.

E quando você, Caetano, fala dos “palhaços líderes” em “Anjos tronchos, essas figuras derivam desse personagem do “E a galera ria”. São esses personagens que elegem esses líderes.

CAETANO: Sim, “E a galera ria” tem algo a ver com palhaço. (risos)

Quando vocês ouviram pela primeira vez o álbum um do outro, discos que traçam esse diagnóstico da grandeza do Brasil, onde vocês identificam essa grandeza exposta de maneira evidente no disco do outro?

CAETANO: Eu acho que na sua pergunta, desde a primeira pergunta que você fez, tem duas coisas que são diferentes. Uma é o fato de as canções de cada disco estarem se referindo a este momento que estamos vivendo. E a outra é as canções de cada disco terem a ver com algo que eu tenho vivenciado ao longo da minha vida, e Thiago ao longo da vida dele, em momentos diferentes, pois ele é muitos anos mais novo do que eu, é um garoto, mas que é o velho sonho… sebastianista. Um velho sonho de missão salvadora do Brasil. Em algum lugar das nossas almas, a gente vivencia isso, muito antes de acontecer, fosse Bolsonaro, fosse pandemia, entendeu?

THIAGO: Em relação a mim, essa pergunta ressoa diferente, porque além de o Caetano observar tudo isso, ele em si mesmo é um fato central, dispara tudo isso na cultura brasileira. Quer dizer, ele quando surge, catalisa essas forças regeneradoras. Então, é como se no seu disco surgisse o pensamento a respeito dessas coisas e também o próprio anticorpo, ali.

A própria materialização disso.

THIAGO: A própria materialização, exatamente. De uma resposta feita de vigor, e de pura afirmação. Eu desejo que eu possa ter tempo e saúde e inspiração pra poder inserir o meu lance nessa corrente central do afeto das pessoas. De você poder pegar e ao fazer uma música, ela ser suficientemente ouvida a ponto de gerar uma corrente de interesse, e que a pessoa ouça e fale assim: “Nossa, tem alguma coisa do Brasil aqui, que tá se manifestando”. Porque ainda existe um negócio que é muito no âmbito menor, quantitativamente falando. Então é muito engraçado, que muitas vezes surja em mim um ímpeto meio épico, e eu tô falando pra poucas pessoas. E isso é um pouco vertiginoso, isso me deixa em situações curiosas, algumas vezes. Enquanto o fato de o Caetano dizer “vislumbro certas coisas de onde estou”, em “Nu com a minha música”, esse verso mostra pra muita gente que há caminho. Eu acho que é do interesse de todo cancionista brasileiro, todo compositor brasileiro, poder dizer, poder fazer as coisas ressoarem desse modo. Então eu vou tentando reafirmar isso, ao meu modo canhestro e sebastianista particular.

CAETANO: O meu sebastianismo também é muito particular (risos). Mas quando você fez a pergunta, eu ia pensar: “quando eu for responder, eu vou citar várias coisas que eu sinto que são… Sinais fortes da, da possível grandeza histórica do Brasil”. A grandeza futura. E eu ia citar outros artistas, e ele… O Thiago respondeu primeiro, e ele já me citou como exemplo. E eu fico feliz de ver isso. Antes de vir aqui, eu estava fazendo um negócio sobre Elza Soares. Estão fazendo um documentário… Então eu falei pra eles que Elza é uma dessas coisas que me deram a sensação de vitalidade desse acaso brasileiro, que é um acaso hipertrofiado, porque ficou um país de dimensões continentais, na América do Sul, o único que fala português nas Américas… Então, eu citaria Elza Soares, várias coisas, mas não só na música popular, entendeu? Vários momentos de saúde criativa, que apontam pra aceitação dessa fantasia interna, de missão bonita, clarificadora. E ele, como nós estamos aqui, ele escolheu meu caso como um exemplo especial, mas o que é mais importante é que eu posso escolher o trabalho de Thiago como um exemplo interessante pra mim, porque ele é muitos anos mais novo que eu, e eu ouvi o disco dele, “De ponta a ponta”, com certo atraso, ele estava no segundo disco. Eu não conhecia ele, não sabia nada. E eu ouvi, e, com um certo atraso, e achei que era uma dessas, assim como Elza Soares, era uma dessas coisas que fazem você pensar: “não é o caso de desistir”. É engraçado, mas é assim, é verdade.

E essa colaboração na canção ‘Meu Coco’, de alguma maneira, quando você chama ele pra trabalhar com você no disco, pra fazer um arranjo, é uma reafirmação disso que você tá falando.

CAETANO: Sem dúvida. Até, eu vou dizer, tem uma… Aquele “tudo embuarcará”, pra mim, tem a ver com o Thiago (risos). “Na arca de Zumbi, Zabé” é uma coisa muito abrangente do Brasil, que, com Thiago, o Buarque que há nisso aí, nesse conjunto de fatores, ganhou uma nova dimensão pra mim. Pôde vir com naturalidade, essa invenção do verbo “embuarcará”, esse futuro.

THIAGO: Você sabe quem me falou disso? O Zeca Veloso. Eu nunca te disse isso, mas ele me disse assim: “Meu pai fez uma música chamada ‘Meu coco’. Você vai adorar a letra, principalmente o último verso”. Ele sabia disso?

CAETANO: Não, eu nunca falei disso. Eu senti isso, e o Zeca deve ter captado ali. Mas o Zeca capta muito, o Zeca conversando comigo me impressiona muito.

E o que que você imaginava pra essa colaboração, quando pensou: “Eu queria o Thiago aqui”?

CAETANO: Cara, eu senti o Thiago… Quando, na feitura da canção, pensei… Essa palavra, “embuarcará”, ela ficou muito qualificada por eu já conhecer o trabalho de Thiago. Mas eu não tinha uma decisão que era o Thiago que ia fazer o arranjo, não. Eu tinha vontade, mas ficava pensando: ”será que é cômodo pra ele, será que é adequado, será que vai dar certo, será que…”, eu demorei. Eu e Lucas (Nunes, produtor do álbum ao lado de Caetano) fizemos aqui aquela base toda, chamamos Márcio Victor (músico do grupo Psirico), ele botou a percussão, aquela (faz o som com a boca). E eu cantei, fiquei depois, eu pensava mais em Thiago. Mas demorei a tomar a decisão, bater o martelo comigo mesmo. Aí quando bati o martelo, falei com ele.

THIAGO: Mandou um e-mail, dizendo que tinha feito um samba-tombo.

CAETANO: Samba-tombo! (risos)

THIAGO: Um samba-tombo, me propondo que eu fizesse algumas “manchas harmônicas”.

CAETANO: Olha aí, ele se lembrou como foi que eu falei, não lembrava, foi isso mesmo. Eu não me lembrava, mas quando você falou eu me lembrei que foi assim mesmo.

E como você pegou isso, Thiago? Você olhou o e-mail e…

THIAGO: Eu olhei o e-mail, e imediatamente, quando ele falou o negócio das manchas harmônicas, me deu a sensação de que era eu mesmo que tinha que fazer. (risos)

CAETANO: Quando eu mandei o e-mail, eu já tinha chegado à certeza de que era você mesmo que tinha que fazer. E foi acertadíssimo, viu? O arranjo ficou lindíssimo.

THIAGO: Eu adorei.

CAETANO: Eu adoro os arranjos que você faz pra si mesmo, e por isso eu pensava… Mas aí é uma coisa de aproveitar a oportunidade, que é um aspecto. Mas eu tinha chegado mais longe, mais no fundo mesmo, pensando. Por isso que eu demorei a chamar. Pensei em fazer diferente, mas depois disse: “não, é Thiago mesmo, é ele mesmo”.

THIAGO: Eu lembro que a gente fez uma chamada por Skype, onde eu perguntei pra você: “mas isso aqui da mancha harmônica tem a ver mais com um caminho Stravinsky?”. Você lembra disso?

CAETANO: Eu me lembro.

THIAGO: E aí foi engraçado, porque eu não sabia que havia no disco “Anjos tronchos” nem “Ciclâmen do Líbano”. E no “Anjos tronchos”, ele fala de (Anton) Webern, e em “Ciclâmen do Líbano”, o arranjo do Morelenbaum remete a Webern. A pedido seu, né?

CAETANO: Eu pedi a ele.

THIAGO: E Webern era o único compositor dos serialistas que Stravinsky realmente venerava, e chegou a influenciá-lo, assim, na textura das composições tardias dele. E eu, pra escrever o arranjo de “Meu coco”, fiquei ouvindo muito, e olhando partituras dessa fase tardia do Stravinsky, pra poder… Não é como se não fosse isso eu não teria conseguido fazer, mas às vezes eu tenho isso com a partitura alheia, você fica olhando ali, materialmente, um intervalo sugere coisas, é muito doido isso. Sabe, você olha ali, observa, como que o sujeito formou ali aquele cluster, aquele acorde, que instrumentos ele usou. E eu fiquei vendo coisas do Stravinsky, da última fase do Stravinsky, onde as texturas vão ficando cada vez mais rarefeitas, influenciadas pelo Webern.

CAETANO: Que é todo rarefeito (risos). Que tudo foi ficando cada vez mais rarefeito.

THIAGO: Ao ponto da obra inteira, né, o tamanho da obra dele…

CAETANO: Cabe num long-play. (risos)

THIAGO: É fascinante. E eu, quando eu vi Webern ali, eu sabia que você gostava, porque eu li o “Verdade tropical”. E lá você fala do Webern.

CAETANO: É, porque foi Augusto de Campos e o pessoal da poesia concreta que me falou desses autores, muito principalmente Webern. Eu fui ouvir todo mundo e gostei mais de Webern, de cara. Depois o Augusto escreveu um artigo-poema, que ele teve um período que ele escrevia uns ensaios, artigos, em forma de poema. Dizia que não era poema, mas também tinha forma de poema, porque era assim

Um ensaio em versos, né?

CAETANO: É, ensaio em versos. E tem um que é sobre Webern e João Gilberto. É uma maravilha.

THIAGO: Ah, sim. Que tá no “Balanço da bossa”.

E a presença do Thiago, ali, ela também amplia esse Brasil para o qual você olha, Caetano, no qual você tem Marília Mendonça, você tem João Gilberto, você tem Djavan… E botar o Thiago é uma forma de ampliar isso. Você fala disso inclusive no texto para a imprensa que acompanhou o lançamento do álbum. Lá no final você fala: “O Thiago Amud é prova de que nem tudo está no rádio etc”. Ou seja, você amplia, joga pra um outro lugar essa grandeza da música, a grandeza do Brasil, essa grandeza que a gente está falando. Porque no seu disco ela aparece muito reafirmada pela grandeza da canção brasileira. Assim como Thiago, em seu disco, afirma a canção brasileira o tempo todo, falando que a canção…

THIAGO: Não arrega. “Nossa canção não arrega”.

Também em “Graça”, Thiago, você fala que “a canção não morrerá”. E não morre mesmo. Ela fica em loop… Isso é lindo. Com o que você mais se emocionou ouvindo esse disco do Amud, Caetano? Para além da análise.

CAETANO: O que mais me emocionou foi a primeira faixa, “Graça”, porque também foi a primeira que eu ouvi. Entrei num estágio, assim, afetivo especial. E fiquei comovido, com vontade de chorar. E o resto do disco, eu fui ouvindo como se fosse confirmando aquilo. Mais parecido com os outros discos anteriores do que “Graça”. Porém, já com o toque da “Graça”.

E você, Thiago, com relação ao ‘Meu Coco’? O que mais o emocionou?

THIAGO: Como composição, assim, o “Ciclâmen do Líbano” é uma das coisas mais lindas. E fiquei, e fico, maravilhado com os caminhos misteriosos que ela vai tomando pra falar de alguma coisa que a gente não vai nem capturar, a não ser que a gente esqueça do desejo de querer capturar. Ela é muito fugidia, ela é muito fugaz no que sugere. E essas coisas que não se revelam imediatamente à razão, me capturam imediatamente. E a melodia insinuante. Como outras coisas, como por exemplo “Pássaro proibido”, aquela melodia de “Pássaro proibido” que você fez lá atrás. Ela me lembra isso, também, que tem essa coisa do arabesco, talvez, um modalismo do árabe ali. Mas correndo o risco, talvez, de dar um corte súbito, uma coisa que me emocionou e me fez chorar no disco do Caetano, foi que pouco depois de lançar o disco, o Brasil teve perdas muito significativas no campo da música. E de certa forma, parecia que todas essas presenças estavam ali, enfeixadas, ali naquele álbum, que tinha acabado de ter sido lançado. E me deu uma sensação, inclusive, que toda essa questão do que chama alta cultura ou baixa cultura, quando chegou naquele momento, onde você tinha tido a perda do Letieres (Leite), e antes da perda da Marília Mendonça, o Nelson Freire morreu. Eu vivenciei essa confusão, como se existissem duas possibilidades de a gente encarar essa questão de alta cultura e baixa cultura. Uma delas é levar em conta toda a crítica marxista à instrumentalização que o capital pode fazer da chamada baixa cultura, para vender. E outra delas é uma visão meio mística. A visão mística, por si mesma, se bifurca também: por um lado você tem aquela coisa de “todos morreremos”, e por outro lado, temos o “tudo é sagrado, tudo é vivo”. E esse caminho de que tudo é sagrado, tudo é vivo, passou a ser a forma como eu passei a ver o tropicalismo, depois de um tempo. E isso foi confirmado por essas mortes. E o que aconteceu, todo esse preâmbulo é pra dizer que eu não consegui mais ouvir o disco sem chorar muito, depois disso tudo. Quando diz “da Maravilha Mendonça” e tem arranjo do Letieres… Entendeu? E no meu caso, isso tudo potencializado pela morte do Nelson Freire. E todas essas questões, essas pontas soltas do país, que parece que o Caetano pega e alinhava, e olha pra todas elas e ilumina a especificidade de todas elas, e fala: “não somos um organismo coeso que precisa resistir como um organismo coeso, e portanto não devemos dizer nãos peremptórios”. E aí eu mandei um e-mail pra ele, dizendo, citando, falando dessa percepção que eu passei a ter, quase do tropicalismo como um imperativo ético, humanista. Que, de repente, quando a gente tá assim nesse transe agudo, no fim de vidas, você vê: não, antes de ser a morte a instância que junta tudo isso, existe a afirmação da vida, ali, compactada num álbum. Dizendo sim a todas essas coisas de procedências diferentes. Eu não quero forçar a barra quando eu falo de Nelson Freire, mas é porque existe ali a coisa de uma menção a um universo erudito. A gente sabe que Nelson Freire não é um pianista de música moderna, de vanguarda austríaca. Mas enfim, estaria lá no campo do que se chama de música erudita. E Caetano, talvez, seja dos compositores populares, pop, quem bota numa letra Schoenberg, Webern, Cage. E é quem faz canções, e quem faz um arranjo inspirado no Webern. Tudo isso me veio numa barafunda emocional, e eu ouço o disco do Caetano hoje, o ‘Meu coco’, como um disco de afirmação de vida, num ponto quase peristésico. Eu choro o disco inteiro, agora. Quando fala em Maravilha Mendonça, eu choro.

CAETANO: Mexeu comigo também, esse ritmo da realidade. De morrerem Letieres e Marília. Eu achei um pouco assustador, mas também muito significativo, parecendo que o que eu fiz pra esse disco tinha uma captação do momento no tempo. Mais intensa do que eu mesmo poderia imaginar, porque essas coisas que Thiago falou, passaram pela minha cabeça de maneira bastante semelhante, quando eu tive as notícias dessas mortes. E Nelson Freire não deixou de contar, por ser uma figura da música brasileira, da área erudita da música brasileira, de grande importância. Então eu entendo tudo isso que Thiago falou, porque eu me senti também um pouco, até, um pouco assustado, no princípio, mas também muito comovido. Ainda acho uma coisa um pouco intensa demais em termos de senso de oportunidade pra um discurso, né? A oportunidade do que é dito com relação ao ritmo das coisas que acontecem. Mas eu termino, como os nossos discos, como o Thiago, depois do susto e de alguma angústia, chegando a uma interpretação mais luminosa desse compasso. Desse compasso, pra tomar a palavra em seu sentido preciso. Que é o contrário de um descompasso. Eu tinha pensado duas coisas e me esqueci da segunda. A primeira era essa, e a segunda era relativo a isso que eu fiz. E não me lembro.

THIAGO: Eu acabei apontando subitamente pra esse lado, porque você perguntou “o que emociona mais”, de repente o disco todo passou a me pegar de um jeito, o ‘Meu Coco’. E assim que eu soube da notícia do negócio da Marília Mendonça, eu escrevi pra você preocupado, eu fiquei pessoalmente preocupado com Caetano.

CAETANO: Com razão, porque como eu falei, é um pouco assustador, porque eu tinha acabado de mencioná-la, de uma maneira intensa no disco.

De uma maneira destacada, né? Em dois momentos.

CAETANO: Sim, em dois momentos de “Sem samba não dá”, e numa delas o prenome com o trocadilho, entre parênteses, pra “Mar(av)ília”.

Caetano, você chegou a usar a palavra “futura” aqui em algum momento, ao falar de uma “grandeza futura”. Esse lugar, o futuro, ele está muito presente nos dois álbuns. Muitas vezes dado como algo já posto. A Revolução Caraíba que Thiago canta, por exemplo, é dada como se tivesse acontecido.

THIAGO: Ela já aconteceu ali. O futuro já está no passado.

O seu disco também, Caetano. Ele não fala de um dia que virá. Numa entrevista recente com Bethânia, falando de seu disco “Noturno”, mencionei a energia afirmativa do disco e ela disse: “esse disco do meu irmão, também, tem a força daquela coisa do ‘Não vou deixar’”. E declamou: “Não vou deixar porque eu sei cantar/ E sei de alguns que sabem mais/ Muito mais”.

CAETANO: Eu queria ouvir Bethânia dizendo isso (risos).


Foto: Leo Martins.


O BRASIL COMO FUTURO DO PRESENTE


Foi lindo. Então, esse futuro que se anuncia ali, e que de alguma maneira tá dado como certo, tem a ver com todo esse espírito, essa ideia do sebastianismo que vocês estavam colocando aqui. A que distância a gente está desse futuro?

CAETANO: Olha, pra mim, nenhuma, porque todo presente está sempre cheio de futuro. Então não é propriamente uma distância que a gente possa medir, tipo vai demorar muitos anos ou já tá logo ali. O que acontece é o seguinte: é um futuro possível, e às vezes parece inevitável. Mas é como ele pode ser vivenciado hoje. Você fazendo canção, você fica, de uma certa forma, fora do tempo. Então você pode ver o futuro já vivenciado. Porque é uma intensificação da vivência do futuro que todo o presente tem.

E tem Enzo Gabriel e o Benjamin no seu disco, que são literalmente o futuro presente.

CAETANO: Os recém-nascidos. (risos)

Isso (risos). Fala também dessa ideia de futuro, Thiago.

THIAGO: O futuro é do tamanho do desejo, né? Eu acho que há, na verdade, um entroncamento aí, entre futuro e desejo. Não se trata exatamente de uma previsão sociologicamente acertada ou falsa. E sim uma possibilidade, que se a gente, em nome de algo sociologicamente acertado ou falso, descarta de antemão, aí acho que a gente chega num estado de escândalo… Eu acho que é um horizonte que deve nos erguer. Cabe então o cultivo desse desejo, e entender que a responsabilidade em relação a isso é diretamente proporcional ao ardor investido. A responsabilidade em relação a ajudar isso a se encarnar historicamente. Já no “Mensagem”, o Fernando Pessoa coloca toda aquela mística social, toda aquela mística simbólica portuguesa numa perspectiva do desejo, de quando algo vai acontecer que vai me tirar dessa… “Quando, meu Deus e meu Senhor”, não me lembro muito bem. Mas existem versos que são conclamações de ordem pessoal, que você não sabe nem bem se podia ser um cara vivendo um tédio em Lisboa, num café de Lisboa. E o caráter agônico daquele tédio faz com que só Dom Sebastião possa aplacá-lo (risos). Acho que tem a ver com isso quando eu falei em relação ao meu sebastianismo todo particular. A neurose da classe média surge na contraluz, ali, sugerindo sebastianismos. Mas, pra além disso, a responsabilidade histórica de fazer com que coisas assim aconteçam, a resposta que eu teria pra dar é assim: a articulação disso com o desejo.

CAETANO: Eu falei sebastianismo, logo cedo, porque seria o principal xingamento que os nossos trabalhos mereceriam. Então eu usei logo pra acabar com o problema sem que venha a ser um xingamento posterior (risos).


Foto: Leo Martins.


SEBASTIANISMO, FERNANDO PESSOA E A LÍNGUA PORTUGUESA


Qual é a particularidade desse sebastianismo de cada um de vocês?

CAETANO: Bom, ele falou que o dele era particular, e eu falei também que o meu é muito particular. É porque é um negócio de você se ver no mundo, você vai aprendendo a viver, vai vendo como é o mundo, aí você vai vendo como você fala, você vai crescendo, vendo como são seus pais, a rua, seus irmãos, o ambiente… Entendeu? E você vai vendo que você é de Santo Amaro, que você é brasileiro, que a gente fala português, e depois você vê os filmes americanos. Eu via filmes americanos, franceses, italianos, mexicanos e até argentinos. Mas mexicanos, muitos. Quando era menino.

THIAGO: A fase mexicana do Buñuel?

CAETANO: Não, Buñuel nada. Melodrama. Mexicano comercial. Buñuel também… Mas tinha uma presença comercial, o cinema mexicano. Os filmes até com a Libertad Lamarque, tem música que eu falo em Libertad Lamarque. Música que eu gravei em Londres, mas a censura aqui cortou, porque pensaram que eu tava falando em Lamarca. Tem uns negócios… Naquele disco, o primeiro disco de Londres.

THIAGO: Em “A little more blue”.

CAETANO: É, ‘A little more blue”. Eles cortaram. Mas eu achei, um cara tinha a versão inglesa do disco, e na versão inglesa, na edição inglesa, não tem os cortes da censura.

THIAGO: Ah, existe esse fonograma?

CAETANO: Existe, existe o disco. Tem gente na Europa que vem me pedir pra eu autografar, é quem comprou na Inglaterra. Só não tocaram no Brasil porque a edição brasileira foi censurada. E eles censuraram cortando pedaços. E naquela época tinha que cortar mesmo, que era na fita.

Mas você estava falando, Caetano, dessa consciência que você começa a adquirir de que é brasileiro, e de que existe outra coisa que é talvez melhor, talvez maior, mas certamente fora daqui, que é não-brasileiro.

CAETANO: E aí você vai vendo onde você vive, o que é aquilo no significado de sua vida, e você vai aprendendo na escola a História, e também nas conversas… E você vai vendo, também, o lugar do Brasil no mundo, e você percebe que é, assim, de pouca importância. Mas ao mesmo tempo você vai vendo: “Como a minha vida pode não ter importância?” (risos). É a coisa mais importante que eu conheço, que é eu próprio conhecer. Então, quando você imagina coisas sobre o Brasil… Meu pai foi muito decisivo comigo pra formação de coisas, assim, em mim. Por que ele tinha um negócio pelo Brasil… No 2 de julho, que é quando a gente celebra a independência na Bahia, que foi um ano depois da Independência, a gente ajudava ele a fazer umas guirlandas de papel crepom verde e amarelo, como se fosse uma corrente de elos: um verde, um amarelo, um verde, um amarelo. Pendurava na sacada do sobrado em que a gente morava, que era também onde ficava a agência dos Correios e Telégrafos. Então ele tinha um negócio patriota, muito afetuoso com o Brasil. Mas ele tinha uma consciência social, histórica, ele era mais pra esquerda. Me ensinou que a escola, a professora, era muito careta, então ensinava que o comunismo era uma ameaça, podia roubar os filhos das famílias, não sei o quê. E eu falei isso com meu pai, com uns sete anos de idade, e ele falou: “não, sua professora Lelinha pode ser muito boa e tudo, mas comunismo não é isso não, os comunistas têm o projeto de fazer a vida ser mais justa, melhor, uma distribuição igualitária”. Eu, no começo da vida. Então você vai aprendendo coisas. Esse amor de meu pai pelo Brasil, também ele queria mostrar uma certa independência muito importante pra mim. Meu irmão imediatamente mais velho, é uns três anos mais velho que eu. Então eu era muito pequeno quando terminou a guerra, mas meu irmão já não era tão pequeno que não pudesse fazer nada. Então teve aquele carnaval da vitória, o festejo da vitória dos aliados. O Brasil tinha sido o único país da América Latina, a ir lutar na Europa. Então havia uma celebração. E tinha muito ativismo de direita, extrema direita. E meu pai, inclusive, conhecia, ele conhecia todas essas pessoas da sociedades de Santo Amaro, porque ele era agente postal telegráfico. E conhecia pessoas que tinham sido integralistas. E quando ele saiu pra participar dos festejos da vitória dos aliados, viu as pessoas com bandeiras de todos os países aliados, e não tinha bandeira da União Soviética. Ele achou injusto. E voltou em casa, e Nicinha, minha irmã mais velha, costurava bem. Eles terminaram costurando uma bandeira, com foice, martelo e tudo, uma bandeira da União Soviética, vermelha. E meu pai levou Roberto, meu irmão, no pescoço segurando a bandeira. E umas pessoas católicas, meio conservadoras, ficaram meio assustadas. Meu pai: “sim, mas é injusto. A União Soviética foi importante, sim, na vitória”. Então você vai vendo uma porção de coisas, você vai crescendo e vai vendo como é que você vive nesse mundo em que você nasceu e se formou. Por isso que, quando, depois, eu já na faculdade, lia o Fernando Pessoa de “Mensagem”… Primeiro o pessoal lia muito Álvaro de Campos…

THIAGO: Aquela histeria, né?

CAETANO: É. Uns versos longos, outros curtos, aquele moderno meio assim. Eu achava bonito, mas meio assim. Mas quando eu li “Mensagem”, eu fiquei muito impressionado. É muito bem feito. Não que os outros não fossem, mas aqui é um negócio… Você viu que saiu um livro do Fernando Pessoa aqui, chama “Língua Portuguesa”?

THIAGO: Não.

CAETANO: É um livro de ensaios dele sobre a língua portuguesa. Aquele baú dele não acaba nunca, né? Saiu pela Companhia das Letras.

THIAGO: São coisas inéditas dele?

CAETANO: São inéditas, eram do baú. Quem me falou foi um cara chamado André Valente, André Crim Valente, que é um professor de português de quem eu fiquei amigo, à distância, a gente troca e-mails de vez em quando, porque ele foi professor de português de Moreno. Moreno é físico, se formou em Física, e só gostava de matemática. Tinha preguiça de ler romance, não se interessava pela língua portuguesa, achava português uma matéria chata, até que apareceu esse professor. Ele já com 12 anos, 13, já maiorzinho, aí apareceu esse professor… Ou 14, sei lá, ele já adolescente. Apareceu esse professor, que fez ele passar a gostar da Língua Portuguesa. Então eu sou muito grato a esse professor. Foi uma figura importante na minha vida, por causa de Moreno. Na vida de Moreno, e por causa de Moreno, na minha. E ele que me falou do livro do Fernando Pessoa.

THIAGO: Você gostou muito?

CAETANO: Gostei, é muito interessante. Agora, é bem doido, é Fernando Pessoa. Mas tem duas coisas interessantes, uma é que ele preconizava que tinha que haver uma lei ortográfica muito histórica, muito etimológica. Ele preconizava uma ortografia ortodoxamente etimológica. Que não foi o que veio a acontecer. Ele não estaria feliz com o acordo ortográfico. Que aliás, é um acordo do Brasil consigo mesmo, em Portugal não rola. É um desacordo.

THIAGO: Acabar com o trema…

CAETANO: E “para”, o verbo, não ter acento. A gente não sabe o que é que a manchete do jornal tá dizendo.

THIAGO: Reduziu as formas à fôrma, de uma tal maneira. Fica tudo sem acento.

CAETANO: Mas a outra coisa que tem, pra completar a curiosidade de Thiago, a outra coisa que tem de interessante no livro de Fernando Pessoa… Quer dizer, tem muitas coisas, mas duas que eu estava ressaltando. A primeira é essa da etimologia. E a outra é que ele prediz, não com muita profecia, porque não precisava tanta, mas já é muito nítido. Ele diz que a língua inglesa ia ser o latim da modernidade, ou seja, a língua que seria internacional, global. E ele fala que seria com merecimento, porque ele acha que a literatura de língua inglesa é superior, de fato, a todas as outras, tem hora que ele chega a dizer isso. Mas ele diz que, ele dá um 50% de maluco mesmo, que o português representaria a força espiritual.

THIAGO: Do mundo latino?

CAETANO: Do mundo. Para o mundo. Teria esse papel, no futuro. Dividindo com a língua inglesa, que viria a ser falada em toda a parte, como de fato veio. E a língua portuguesa ficaria com essa missão de sustentar o aspecto espiritual. Agora, meu comentário: ele é totalmente suspeito (risos). Porque ele era bilíngue, desde sempre. Cresceu na África do Sul, falando inglês, e português em casa. Ele falava inglês e português, é duplamente suspeito. Mas ele é o Fernando Pessoa.

THIAGO: Ele publicou em inglês antes de publicar em português, não foi?

CAETANO: Publicou em inglês antes. Em português, ele só publicou em vida ”Mensagem”. E nada mais.

THIAGO: Nem como ortônimo nem como heterônimo?

CAETANO: Como qualquer coisa. Ele publicou algo em revistas de vanguarda. Livro, ele só publicou “Mensagem”. E foi pra um concurso, que ele perdeu, ficou em segundo lugar. É incrível.

THIAGO: Então ele estava advogando em causa própria nas duas línguas!

Mas aí é até um pouco aquele negócio que você estava falando, Caetano, aquela centralidade do eu: “A minha vida não pode ser desimportante”.

CAETANO: Claro! Narciso.

Conversei com o Jonathan (Blitzer, repórter da “New Yorker” que esteve no Brasil para escrever um perfil de Caetano para a revista) e ele ficava impressionado com essa coisa de você e a Bethânia saírem do mesmo lugar (risos). Porque, realmente, vocês colocaram Santo Amaro na cultura brasileira da mesma forma que o Fernando Pessoa faz ao colocar a língua portuguesa nesse lugar de guardiã da força espiritual da língua no futuro. E tem aquela coisa que você falou, Caetano, de afirmação do “porque eu quero”, né? Tem a ver com isso.

CAETANO: Sim, foi um negócio na revista “Veja”, ou “Istoé”, que perguntou: “O Brasil vai dar certo?”. E eu disse: “Vai”. “Por quê”? “Porque eu quero”. Mas isso daí os caras acharam que era um narcisismo imperdoável. Mas não é, eu acho que é…

THIAGO: É um narcisismo perdoável. É um narcisismo louvável até.

CAETANO: É louvável, um narcisismo louvável sim.

THIAGO: É essa coisa do tamanho do desejo.

CAETANO: É, aí é desejo. Ou seja, é só a gente querer, entende? É o contrário, no fundo é o contrário de um narcisismo.

THIAGO: É. Tem algo de magia, aí.

CAETANO: É uma sugestão para os outros. Queiramos.


Foto: Leo Martins.


A MULHER COMO SUJEITO DA HISTÓRIA


Eu penso muito em você, Caetano, quando hoje se fala na possibilidade de uma chapa Lula e Alckmin (na época da entrevista, a parceria ainda não havia se concretizado). Penso muito em você falando desse trajeto histórico de PSDB e PT, de Fernando Henrique e Lula. E agora tem essa possibilidade de uma união entre esses dois políticos. Como você vê isso? Uma união que me parece uma resposta a esse momento, da mesma forma que os discos de vocês são respostas a esse momento.

CAETANO: Eu olho com naturalidade, porque como você mesmo lembrou, desde cedo eu vi Fernando Henrique e Lula mais próximos do que antagônicos, embora eles se manifestassem, afinal de contas, de maneira antagônica. Porque eles participaram de manifestações de rua, de braço dado um com o outro, contra a ditadura.

THIAGO: A primeira campanha por um político que o Lula fez foi a do Fernando Henrique.

CAETANO: Cara, tem uma música que quando a gente foi fazer o “Ofertório” eu compus com o Tom. Tom fez uma música que achei linda, aí eu botei a letra. E depois, já perto da estreia, o Tom disse: “Vamos tirar essa música, eu não quero não”. E aí eu falei com ele essa semana por causa do título, chama-se “Quase”. É o título de uma canção, de um samba-canção que foi um grande sucesso de Carmem Costa. E eu lembrei dele porque eu estava conversando com o Zeca sobre… Eu só tô falando dos meus filhos agora, mas porque também é “Ofertório”, essa história tem a ver. Mas eu estava conversando com o Zeca sobre Carmem Costa por causa da Marília Mendonça. O negócio da mulher falando como sujeito na história. Que tem um grande sucesso da Carmem Costa, de quando eu era menino, que se chama “Eu sou a outra”. Você se lembra? É incrível. E ela era mulher e preta, né? Carmem Costa era mulher e preta. E a música diz assim, na segunda parte: “Quem me condena/ Como se condena uma mulher perdida/ Só me vê na vida dele/ Mas não o vê na minha vida”. É muito perfeito! Nas atuais, não tem nenhuma que chegue com essa clareza, que chegue a essa clareza. Então eu estava falando isso, e me lembrei de uma outra canção. Aí mostrei a Zeca, pra ele ouvir. Porque Zeca gosta muito de ouvir canções, a gente às vezes se une pra ouvir coisas, que ele quer me mostrar, ou coisas que eu quero mostrar a ele, ou coisas que ele me pede pra esclarecer, aí eu mostro outros exemplos, enfim, coisas do passado. Aí mostrei esse samba-canção e me lembrei de um outro, que chama “Quase”. E que é um negócio romântico, que ela cantava também. Que fala “quase que eu disse agora o seu nome sem querer’.

THIAGO: Ah, isso eu acho que eu já ouvi. Quem cantou isso pra mim foi o Guinga.

CAETANO: É possível. Essas são canções que a gente guarda pra sempre. Eu nunca mais tinha ouvido as gravações dela. Botei pra Zeca ouvir, fiquei emocionado porque eu me lembrava de tudo. Cantei inteiras, as duas canções, sem ter ouvido de novo. Nem me lembrava que eu sabia inteira. Aí botamos pra ouvir, também do jeito dela cantar, sem vibrato, com um “ei!” meio gritado, assim, dentro do samba-canção. Era meio negro. Conscientemente. Ela tinha um lado até muito pioneiro, de negócio de raça, negócio de consciência negra. Carmem Costa. Acho que por causa de uma vivência americana, sabia? Acho que ela teve um marido americano, ou que morou nos Estados Unidos, teve alguma coisa. E eu acho que a Elza Soares veio a regravar o “Eu sou a outra”.

“Eu sou a outra” Elza regravou, sim.

CAETANO: Não é? Mas décadas depois.


GERALDO ALCKMIN E O CINEMA NOVO


Sim. Mas você estava falando dessa canção com o Tom.

CAETANO: Então! Aí eu, conversando sobre “Quase” com o Zeca, fiquei me lembrando. Disse assim: “O título é lindo, não é?”. E pensei: “Zeca, tô me lembrando, tem uma música, moderna, não sei de quem é, de hoje em dia, que tem esse título, ‘Quase’”. “É sua, pai”. “Minha”?” “É, sua e do Tom. Era do ‘Ofertório’, vocês tiraram do show”. Aí eu disse, “Cara, é mesmo!”. Aí fui me lembrar, não me lembrava a letra toda. Tom teve aqui ontem, eu pedi a ele pra ver se ele lembrava, ele lembrou a música, tocou, maravilhoso. Ela é em (compasso) 6/8. E ele tem uma linha de baixo, assim. Eu disse: “Cara, você devia gravar tocando violão, depois você bota um baixo, todo no 6/8”. Ele lembrou a música, mas só lembrava uns pedacinhos da letra. Aí ele foi procurar, e tinha um e-mail meu, de antes do “Ofertório”, que eu mandei a letra pra ele. Ele aí me mandou. E é sobre isso que estamos falando: “O Brasil/ Quase viu/ O real/ Lula lá”. A primeira estrofe é assim. Entendeu? Então, quando vejo Lula com Alckmin… Eu posso dizer uma coisa simpática a respeito de Alckmin, já que há oportunidade pra isso. Eu o encontrei uma vez, em Belo Horizonte. Foi um evento, não sei o que era, agora não tô me lembrando exatamente o que era, tinha a ver com o Aécio, não sei, alguma coisa, Minas. Um desses filmes que Paulinha (Lavigne, companheira e empresária de Caetano) produziu, acho que tinha uma coisa com o governo de Minas, aí o Alckmin apareceu. E ele começou a falar que gostava muito de “Lisbela e o Prisioneiro”. Político, né, uma coisa simpática, dizer pra produtora do filme, enfim. Mas ele ficou conversando comigo, e ele conhecia muito, e gostava muito, do Cinema Novo. Glauber, quais os filmes, como, o que aconteceu nos anos 70, uma série de filmes. Eu pensei assim: “Eu tô conversando com o Alckmin, mesmo”? (risos). Isso me deu uma sensação de “tem alguma coisa do Brasil aí”. Eu não sei, o que eu tô contando é meramente um fato, eu só estive com ele esses minutos, e ele falou com propriedade, naturalidade, sobre as coisas do Cinema Novo.

THIAGO: Será que Caetano vai me deixar entusiasmado pelo Alckmin? (risos)

CAETANO: Parece que eu tô fazendo a campanha. Eu tô votando em Lula, mas não tô falando isso pra fazer campanha, não, tô só contando um fato. (risos)

THIAGO: Se você falar mais um pouco, eu já voto no Alckmin.

CAETANO: Bicho, mas eu tô falando um fato, eu tô contando. Pra você ver que a vida da gente, a vida brasileira, é complexa, é rica. Entendeu? Essas coisas, você tem que estar ligado, onde tá o que, como, pra ver por onde vai caminhando esse negócio.

THIAGO: E muitas vezes você dá sinais disso, e muita gente deve achar que são ambiguidades programadas. Quando na verdade, é você percorrendo…

CAETANO: São vivenciadas, eu não posso evitar! Quando é que eu ia imaginar que um dia eu ia encontrar Alckmin, e muito menos que ele ia me falar de Cinema Novo? Mas aconteceu, estou lhe dizendo, eu juro por Deus! É verdade. Juro por Deus, porque ele é muito católico.

THIAGO: Pelo Deus dele, né?

CAETANO: Até pelo Deus dele.


MILAGRES DO POVO


Falando em religião: o nome do disco do Thiago é “São”, que carrega saúde, santidade, o verbo ser…

CAETANO: Que nome lindo, né? É o nome de disco mais bonito que você pode imaginar. “São”. É maravilhoso. Putz.

E há a presença, ali, muito forte, de religiosidades. Dentro desse futuro que o disco desenha tem uma religiosidade materna, tem a figura das mães…

CAETANO: “Mães” é uma canção espetacular.

Um troço lindo. O seu disco também cita aspectos de religiosidade, Caetano. Mas ambos, independentemente de religiosidade, ambos são sobre a fé. Sobre essa fé que a gente está falando, que é a fé que é o desejo. E Caetano é ateu desde criancinha, né? E é um ateísmo próprio, tão próprio quanto seu sebastianismo.

CAETANO: É (risos). Muito particular.

É um ateísmo muito particular, isso. Qual é, então, o lugar da fé na vida de vocês?

THIAGO: Curvilíneo. Eu acompanho as movimentações disso, inclusive a ideia da retração da fé como uma das manifestações dela. Eu acho que eu preciso entender que, muitas vezes, a hora é da negação, ou da heresia. Então eu busco cultivar heresias com respeito, porque ela muitas vezes traduzem aspectos complicados do real. E busco, também, não negar absolutamente a experiência, nem mesmo possivelmente institucional, da vivência católica, por exemplo. Busco não negar isso. Quando eu falo que busco cultivar heresia, não é no sentido de lançar um escândalo contra os outros, mas talvez de perceber que a manifestação, vamos dizer assim, do ponto de vista católico, cristão, às vezes a manifestação do Cristo vai se dar através da exacerbação de certos aspectos desse Cristo, na direção de uma mística social, por exemplo. Às vezes, é a retração total da ideia de divindade. E ela se manifesta ali, como uma potência luminosa, na sombra dela. Mas assim, recentemente, eu passei a me interessar, muito mais do que me interessava, pelo candomblé. Não que eu seja iniciado no candomblé, eu não sou. Mas é um interesse, porque assim, eu acredito que se existe alguma coisa que se manifesta com tanta intensidade sobre meu espírito como a música do candomblé se manifesta, é porque ali existe um convite a uma comunhão do meu espírito com o som do tambor e com aqueles cantos. Esse convite eu não posso recusar, seja na instância que for. E eu acho que, se eu não consigo abarcar inteiramente isso, eu tenho que respeitar esse momento onde eu não consigo abarcar inteiramente isso. Mas é preciso pra mim abrir espaço no meu espírito, pra eu saber que existe um convite sendo feito. Não sei se na vida eu vou enveredar por aí, não sei. É novo, é cedo pra mim dizer isso, estabelecer um compromisso em relação a isso, até porque eu acho muito sério. Mas já houve um momento, por exemplo, onde o catolicismo me chamou muito intensamente. E não se trata de abandonar uma coisa, sim de tratar de ir percebendo que todas elas vão, obliquamente, dando sinais sobre o que é o real, sobre o que é a vida. E são enriquecimentos da experiência. Inclusive, a meu ver, os momentos de negação.

Fale um pouco desse ateísmo muito particular seu, Caetano.

CAETANO: Cara, eu sou iniciado no candomblé. Tô todo de branco, porque hoje é sexta-feira. Eu voltei a usar branco toda sexta-feira mais recentemente. Mas por causa de umas conversas que tive com Bethânia. Eu gosto disso, eu acho bonito isso. Como os atabaques, os tambores, que encantam Thiago, me encantam também. Também essas atitudes rituais me encantam um tanto. Mas eu tinha abandonado. Eu tenho uma fama danada de ateu, porque eu disse várias vezes que sou ateu, em lugares, assim…

THIAGO: No Faustão (risos).

CAETANO: No Faustão é muito bom, o Faustão é um bom lugar pra dizer isso. Eu me lembro que eu disse na MTV, sabe aquele… Aquele cara que tem uma banda de rock, tão famoso… Chama Ratos de…

Ratos de Porão, João Gordo.

CAETANO: João Gordo! Então, o João Gordo, era aquele cara todo assim, e tava me entrevistando, a mim e ao Danton Mello, ator. E tanto eu como ele dissemos que éramos ateus. E o João Gordo ficou assustadíssimo. E meio revoltado, não aceitava o ateísmo (risos).

THIAGO: Que bonitinho!

CAETANO: Muito interessante. E o Danton tinha passado por uma, um risco de um avião cair, algo assim. E o João Gordo atribuía a alguma coisa religiosa, que ele parecia que tinha sabido que o próprio Danton tinha experimentado, que ia cair o avião, mas ele salvou, a família salvou, teve um negócio, e na hora entrevista ele falava sobre isso. Tinha havido alguma coisa assim. E o Danton disse “não, não tem nada de negócio de Deus, não foi nada disso. Eu não acredito em Deus, eu sou ateu”. O João Gordo ficou pálido, e não aceitava o ateísmo, achava um escândalo. É muito boa, né?

O Brasil é o Alckmin falando de Cinema Novo e o João Gordo…

CAETANO: … e o João Gordo defendendo a religiosidade contra o ateísmo.

THIAGO: Anjos do Porão!

CAETANO: Então, eu fiquei meio famoso por dizer algumas vezes que sou ateu, porque parece que é proibido. Eu acho chato isso, de ser proibido você dizer que é ateu. Então eu simpatizava muito com uma coisa blasfema que tem na Espanha, na linguagem popular…

THIAGO: Eles são muito blasfemos. Muito pelo franquismo, né?

CAETANO: É, porque tiveram que aguentar aquele catolicismo imposto. Então eu gostava dessa coisa blasfema. Mas porque eu cresci num ambiente muito religioso, de mundo católico. A gente tinha que ir à missa todo domingo, eu fiz a primeira comunhão, tudo. Confessar, comungar, tudo. Eu fui fazendo, mas foi nessa altura, já, pouco ali, depois, já fui abandonando, porque eu via muita hipocrisia. Eu tinha uma certa revolta, então eu tinha um espírito, esse meu famoso ateísmo tem algo de blasfemo. É curioso, mas acontece que eu, depois, comecei a pensar, eu fui nesse negócio do candomblé pelas mesmas razões que você, achava bonito, os ritmos, uma razão meio…

THIAGO: Estética, quase? Num primeiro momento?

CAETANO: Estética. Estética, de cultural.

THIAGO: Estética num sentido profundo, cultural.

CAETANO: E meio que aquela conversa mesmo, do Jorge Amado. Terminou saindo numa canção minha, tem a ver com isso, totalmente. “Porque quem é ateu e viu milagres como eu”, porque ele me disse isso. Foi o Jorge Amado que disse isso. Porque eu perguntei: “você sempre fala em sua relação do Candomblé, como se fosse uma coisa que você se aproximou por causa de razões históricas, culturais, estéticas, políticas, sociológicas, mas a dimensão propriamente religiosa, o que é pra você o candomblé?”. Aí ele falou: “Olha, eu não sei se feliz ou infelizmente, ao contrário de Caymmi, eu sou totalmente materialista, não acredito em nada, sou ateu, não acredito em Deus, não acredito em deuses, não acredito em nada. Agora, vou lhe dizer uma coisa: eu vi muitos milagres no candomblé”. Essa foi a resposta do Jorge Amado (risos). Aí eu botei na música. Mas eu, depois eu sempre vi que a dimensão religiosa é inevitável, pelo menos ela permanece inevitável, você tem que saber como lidar com esse fato tão abrangente, tão profundo, inevitável na experiência humana. Não pode simplesmente facilitar e dizer “já sei como é, não tem Deus, não acredito em nada, pronto, acabou”. Às vezes a pessoa faz isso e empobrece a visão de mundo, e não consegue dialogar e se movimentar entre as coisas que de fato se dão. A impressão que me dá é que se você não chegar a um ateísmo corajoso, total, Deus, se ele existe, não vai aprovar seu comportamento eticamente.

THIAGO: Provavelmente você estará cultuando outros aspectos desse divino em coisas muito baixas.

CAETANO: Pois é, você transfere muitas vezes. Muita coisa política é imitação de estrutura religiosa.


CATÓLICOS DE AXÉ E NEOPENTECOSTAIS


Quando a gente fala de política e de religião no Brasil, hoje, a gente fala da bancada da Bíblia. E você, Caetano, tem um olhar muito, não vou dizer generoso, mas vou dizer, rico, a respeito dos evangélicos no Brasil. Porque normalmente ou se tem um olhar condenatório como uma massa ignara ou se tem um olhar do crente, do fiel. E você olha isso como um fenômeno muito mais rico, muito mais interessante do que essas duas visões. Mas ao mesmo tempo é um perigo real o uso político disso, a forma com que isso está sendo tratado hoje.

CAETANO: A porcentagem de evangélicos no Brasil, hoje, é muito alta. Então é um acontecimento. E não é só no Brasil, é também na Coréia do Sul, no resto da América Latina… Então você não pode conviver com a sua realidade fingindo que não tá vendo o que tá acontecendo. Ou que você simplesmente despreza o movimento que a mente brasileira está realizando. Todos os movimentos da mente brasileira, hoje, têm que contar com uma representatividade do crescimento dos evangélicos.

Isso está na sua canção, né? Em “Meu coco”.

CAETANO: Pois é, tá. “Católicos de axé e neopentecostais”, hoje em dia você não pode deixar de dizer que somos assim. Por exemplo, quando eu falei representatividade, isso de uma certa forma explica, e justifica que haja uma representatividade considerável no Congresso de evangélicos. É simplesmente natural e justo que haja. Agora, essa tendência a misturar política com religião é perigosa. Mas a minha disposição pessoal me leva muito a perceber… Por exemplo, eu li um artigo, era isso que eu tinha esquecido, ia mencionar, e voltou. Eu li um artigo muito importante sobre o Bolsa Família na revista “The Economist”. Eu tive uma assinatura dessa revista durante muito tempo. Alguns anos. Porque a revista é muito informativa. E é totalmente a defesa do liberalismo inglês, muito bem feita, muito atualizada. E tinha uma matéria sobre Bolsa Família. Então, era um retrato muito minucioso, feito por aquele jornalismo muito bem feito da “The Economist”, e dizendo como tinha sido bom, como era um exemplo para o mundo todo o Bolsa Família. E como não abatia, nem remotamente, os cofres públicos brasileiros e estava levantando toda uma área da imensa população pobre do Brasil, que passava a empreender e a utilizar bem o dinheiro. E a revista fala da diferença muito grande entre as regiões rurais, o Nordeste, o Norte, onde isso se dava com uma clareza total, comparadas com as grandes cidades como Rio e São Paulo, onde era muito difícil o entendimento, o verdadeiro aproveitamento do Bolsa Família por parte dos beneficiados. E que isso só era salvo pela presença das igrejas evangélicas. Mas essa descrição, na “The Economist”, do papel crucial dos evangélicos no aproveitamento do Bolsa Família nas favelas e periferias do Rio e São Paulo, aquilo foi muito iluminador pra mim. “Ninguém tá prestando atenção nisso, como é?”. Uma outra coisa, que depois eu vi já em outros livros, outros lugares e livros, esse livro desse rapaz, Spyer. Juliano Spyer. Ele é de São Paulo, mas ele fez o estudo na Bahia, ele fez o estudo na periferia de Salvador. Chama-se “Povo de deus”. Esse livro eu aconselho.

É um estudo na Bahia sobre evangélicos?

CAETANO: Sim. E também tem um livro que eu li sobre os evangélicos que quem me deu foi… Olha, veja que caminhos insuspeitos. Voltando ao cinema, foi…

THIAGO: Não é Geraldo Alckmin, não, né? (risos)

CAETANO: Não, ao contrário, é um grande amigo, o cineasta gaúcho Jorge Furtado. Antes do Spyer, o Jorge Furtado me deu um livro sobre os evangélicos na Venezuela. O livro é de um americano, feito na Venezuela, sobre o crescimento do evangelismo lá, e como era, e tal. Tem até umas diferenças no Brasil, porque os venezuelanos reagiram sempre muito, e continuam reagindo, à teologia da prosperidade. Eles reagiram contra isso, o povo. Os favelados, os pobres, e as pessoas do interior.

Diferentemente do que ocorreu no Brasil.

CAETANO: Aqui deu mais certo. Dá pra entender o caminho que cada país seguiu.

THIAGO: Em Angola reagiram, também.

CAETANO: É. Agora, a coisa que me iluminou mais… Porque tudo isso que eu tô falando foi acontecendo, eu li a “The Economist” e tal, mas o que me iluminou mais foram os textos de Mangabeira. Que é uma coisa, o Mangabeira é muito importante pra mim. Eu tô lendo um livro complicadíssimo, mas é tão bonito, assim, a inteligência dele, que é um livro de cosmologia.

THIAGO: Do Mangabeira?

CAETANO: É, do Mangabeira com um cosmólogo americano. Se chama Lee Smolin. Eu até pensava que se dizia Smôlin. Mas eu fui falar com Arto, e ele disse “é Smólin”. E o Arto disse uma coisa que eu achei incrível: “É meu amigo” (risos). O Smolin! Arto conhece o Lee Smolin que escreveu o livro com o Mangabeira. Mas os capítulos de Mangabeira são escritos por Mangabeira, e os de Smolin, por Smolin. Mas os dois, e eles têm uma tese, que o título do livro já quase entrega toda: “The singular universe and the reality of time”. Que o universo é um só, e o tempo é real. O Mangabeira até diz, em outros lugares, assim: “time is real and it goes all the way down” (risos). Mas isso é só um parêntese, digressão.

THIAGO: E parece que não há espaço para o paganismo no pensamento do Mangabeira, né?

CAETANO: Não muito, porque ele vem dessa formação…

THIAGO: Protestante?

CAETANO: Ele é católico. Eu falei um dia, protestante, dizendo assim, até botei no “O Globo”, “Mangabeira parece um sebastianista protestante”, o que é uma contradição em termos. Aí o Zé Almino, que conhecia ele desde os Estados Unidos, Zé Almino Alencar, meu amigo, que é poeta também, muito querido, ele me disse assim: “mas ele é católico, a família dele… A mãe dele é da Bahia”, eu disse “não é da Bahia”. Ele disse: “Sim. A irmã dele, a mãe dele foi uma espécie de esquerda católica. E a irmã dele é esquerda em Salvador, e tudo, e foi de esquerda católica”. Então ele já cresceu com esse negócio religião, esquerda. Mas ele próprio não é religioso, assim. Ele escreve como independente, livre disso, dessa questão. E um dia até eu tava, ele tava lançando um livro numa livraria, quando eu fui, eu fiz parte da mesa, uma coisa assim, e falei um negócio dos evangélicos, e ele, quando foi falar, me corrigiu, pra se descomprometer. Eu soei meio que defendendo demais os evangélicos, meio que atribuindo a ele, mais do que ele queria, e ele consertou com justiça, entendeu, e botou no tamanho certo. Mas me interessa o jeito dele, porque ele pensa diferente de todo mundo, desde o princípio, percebi isso nele, ele pensa os evangélicos como uma coisa que você, como eu tinha sentido na matéria do “The Economist”, você tem que levar em conta, e considerar, e pensar com profundidade, a contribuição, entendeu? E também, nesse livro sobre a Venezuela, e no outro mais novo, da Bahia, do Brasil, do Spyer, você tem uma coisa que eu noto entre evangélicos de fato. Eu já entrei muito em igrejas evangélicas, e tem muitas pessoas que trabalham aqui em casa, quase todas, que são evangélicas. É um considerável empoderamento da mulher. É uma coisa muito diferente, há uma diferença muito grande entre o ambiente católico, de onde eu vim, pra essas pessoas das igrejas evangélicas. Quaisquer. Embora você não veja assim, não apareça, vire liderança, embora você tenha um caso ou outro, teve uma pastora famosa, tem uma coisa ou outra, mas não é isso, não. É na vida cotidiana, há uma visão mais moderna. Agora, às vezes eu me pergunto se isso é um retardo da revolução protestante, da Reforma. Do passo protestante dado pelo cristianismo. Mas isso aqui já é uma coisa muito particular, uma coisa que às vezes aparece como pergunta dentro de mim. Tem quem veja isso, mas eu me pergunto. Então eu acho, eu acho que é muito importante que se leve a sério o fenômeno do evangelismo, do neopentecostalismo no Brasil.

THIAGO: É, a minha mãe é professora, trabalhou inclusive aqui perto, no Vidigal, dando aula pro primário. E já se aposentou, mas ela trabalhou em muitas comunidades do Rio, e ela sempre falou isso pra mim, que a única força capaz de parar o domínio do tráfico sobre a alma das crianças, às vezes, eram as igrejas evangélicas. Como se reorganizasse a vontade, a força de vontade dos meninos, do pessoal.

CAETANO: É isso aí mesmo. Tem isso, também.


A QUESTÃO RACIAL


Um último aspecto que eu não podia deixar de comentar a respeito do disco de vocês, do pensamento de vocês, tem a ver com a questão racial, o nó da questão racial no Brasil. Ao longo do século XX, o Brasil se resolveu muito dentro da ideia da democracia racial, do Brasil mestiço, da miscigenação. E a MPB, de alguma maneira, ela materializava isso, o sucesso da miscigenação, porque você tinha o samba, e Vinicius de Moraes, e você tinha a geração universitária, e você tinha você e GIl, essa parceria de você e Gil, juntos, ali, representando uma ideia. E de repente chega essa geração, que é a geração da virada do século XXI, essa geração que coloca as questões que coloca, o 100% negro. Mas tudo é muito complexo. É muito interessante, por exemplo, o Mano Brown falar, no podcast dele, na conversa com Karol Conká sobre o fato de ser pardo. O Mano Brown, que talvez seja o cara com maior lugar de fala e autoridade enquanto negro brasileiro, é pardo. E tem uma fala da Sueli Carneiro, num debate sobre colorismo, que chamou a atenção para o fato de que a maior parte dos corpos nas gavetas do IML são de garotos classificados como pardos, e não negros. Então, o que é ser negro no Brasil hoje, o que é ser pardo? Pergunto a você que tem uma música chamada “Pardo” nesse disco, Caetano, e a você, Thiago, que em seu disco levanta uma série de negritudes, a questão indígena, tudo isso. Como a gente olha pra isso hoje? O que é raça? O que é o Brasil enquanto identidade racial? O Brasil ainda é mestiço? Você afirma isso em seu disco, Caetano. Somos mestiços. Como é que isso mudou, essa questão mudou, e pra onde que ela andou, e como é que vocês olham pra isso?

CAETANO: Na minha canção “Meu Coco” eu ajo de uma maneira teimosa. Quando vou listar essas denominações, a primeira que eu uso é mulato: “Somos mulatos, híbridos e mamelucos/ E muito mais cafuzos do que tudo mais”. Aliás, eu dediquei essa canção a Jorge Mautner, que defende isso até hoje, com entusiasmo. E a Mércio Gomes, que tem um livro que se chama “O Brasil inevitável”. Eu até usei aqui essa palavra, inevitável, muitas vezes, por causa disso. Ele foi da FUNAI, teve uns estudos sobre o crescimento da população indígena no Brasil. Mas esse livro, “O Brasil inevitável” tem um negócio que aparece rápido na música, mas tem uma coisa, pra mim, uma informação. Os grupos cafuzos… por isso que eu botei “muito mais cafuzos do que tudo mais”, isso vem diretamente do livro dele. Por isso que eu dediquei a música também a ele, e à memória de Manhã de Paula, que era filha de José Agrippino, e morreu adolescente. E tinha esse nome lindo, Manhã. E ela era linda. Filha de José Agrippino e Maria Esther Stockler. Mas Mércio Gomes fala em várias áreas do Brasil, assim, principalmente áreas beira-mar, ou ribeirinhas, de vilas de pesca, centradas em torno da pesca, que elas eram principalmente compostas de negros e índios, e descendentes de negros com índios, que é algo que ele acha muito determinante do Brasil. Isso parece com a sua música, com algumas das suas músicas.

THIAGO: É, não, eu observo uma coisa em relação ao meu disco. Não sei exatamente se eu trago alguma contribuição pra uma discussão étnica, não é exatamente assim que eu me vejo, pelo menos não no momento. Eu observo mais como se tivesse ressaltando certos aspectos míticos desse caldeirão. Inclusive, incorrendo na possibilidade de um erro grave, que é ainda usar a palavra “índio”, e a palavra “tribo”. Eu vi a entrevista do (Daniel) Munduruku, ele colocando argumentos fortes em relação a essa questão.

Caetano usou mulato, né?

THIAGO: Sim, mas eu não fiquei arrependido por ter usado esses termos. Na verdade, quando eu escrevi aquela música, “História da Revolução Caraíba”…

CAETANO: Que é um samba-enredo. Um super samba-enredo.

THIAGO: Que é um samba-enredo imenso. Eu estava, de certa forma, imaginando, seguindo até o absurdo, até o paroxismo, a ideia de Oswald de Andrade sobre a Revolução Caraíba, quando ele fala que é a revolução mais importante de todas. Não haveria Revolução Francesa, e não haveria Revolução Russa, não haveria Revolução Romântica, sem a Revolução Caraíba. Porque de fato, foram os indígenas que forneceram pro europeu a utopia, né? Então aquilo acabou fomentando os Direitos Humanos.

CAETANO: Isso eu adoro.

THIAGO: Aí a ideia de uma Revolução Caraíba, de repente… Quando eu vi aquela reunião ministerial infecta… Olha, eu vi aquilo e eu chorei, sabia?

CAETANO: Aquilo foi terrível, né?

THIAGO: E eu vi toda, olha que coisa horrível. Eu vi tudo aquilo. Vi, chorei, e foi onde veio o primeiro lampejo pra fazer esse samba-enredo. Eu sinto um negócio em relação a isso, essa questão étnica. Por exemplo, no samba-enredo, a gente poderia falar que traz ali uma questão indígena. Mas na verdade, ele vem como uma hiper idealização como dos sambas-enredo antigos.

Mas eu não estava nem me referindo ao samba-enredo com a coisa dos indígenas, eu estava me referindo mais a ‘Mães’, por exemplo, quando você evoca essa sabedoria, esse lugar mítico, exatamente.

THIAGO: É uma evocação mítica. Muito diferentemente da propriedade com que o Caetano, e que a música brasileira mais… Assim, sobretudo a que vem ali no tropicalismo, com Caetano e Gil, que tem de fato, contribui para uma reflexão, quase de cunho sociológico. O que eu acredito que eu trago, nesse disco, e nesse disco talvez mais do que nos anteriores, embora algo disso esteja nos anteriores, desde o “Sacradança”, que quando dá play vem tambor, e que fecha, também, com tambor. Mas agora, o que aparece com mais clareza, eu acho que é uma consciência em relação a essa presença do tambor. E a presença de uma ideia de pajelança. Essas duas ideias surgindo, quase como sugestões escandalosas diante de um civilizado. Então, é como se fosse assumir esse escândalo, ali, naquele espaço do disco. Mas acho que é isso, é muito mais tributário a essa loucura do samba-enredo, do samba-enredo fazer uma coisa que é idealizada, assumir a palavra tribo, a palavra índio, mesmo sabendo… Agora, tem aquela música “Levante Sul”, que inclusive eu cito um pedaço da música do Olodum, “Olodum Ologbom”, que é muito linda e tal. E é um jeito curioso, porque quando eu ouvi essa música, me lembrou, e já era uma música bem antiga do Olodum, ela me lembrou do “Romance da Pedra do Reino”, do Ariano Suassuna, onde ele fala da Rainha de Sabá, e ele fala, ele nos situa como povos castanhos, os povos da Rainha do Meio-Dia. Então, eu procurei fazer uma coisa que fosse uma ligação curiosa entre carnaval afro-baiano e Movimento Armorial, que é um negócio, que a interpretação que o Ariano Suassuna dá praquele versículo bíblico, sobre uma rainha se erguerá no Dia do Juízo. Ele fala disso, que nós somos os povos da Rainha do Meio-Dia. E a música do Olodum fala da Rainha de Sabá, como a junção dela com o Rei Salomão deu origem à etnia sudanesa. Então é um delírio, assim, onde são sugestões míticas, quase delirantes, muito mais do que a fala de alguém que teve a propriedade para reivindicar um lugar na discussão étnica. Se isso gera, se isso pode gerar alguma coisa assim, eu acho que nesse sentido talvez tenha a ver, talvez, com a vocação da música brasileira por si só gerar discussões assim, debates assim, se inserir em debates assim.

Tem algo mais que você queira falar a respeito dessa questão racial, Caetano?

CAETANO: Vou falar um pouquinho. Quando o Olodum, que é uma dissidência do Ilê Ayê, saiu, nos primeiros anos que saiu, eu saí junto com o Olodum, porque no Ilê Ayê eu não podia sair porque eu não sou preto. Você tinha que ser preto pro Ilê. E o Olodum, o cara dizia assim no microfone: “Olodum, a maior democracia racial do Brasil”. (risos) Isso era porque o Ilê Ayê não deixava entrar quem não fosse preto. Não entrava branco. E eles deixavam, acho que por isso que eles falavam isso. Mas eu ria, eu achava aquilo uma coisa fascinante. O Brasil tem esse negócio. E a música, que você chamou de MPB, é uma sigla que cresceu num período em que isso tava num lugar no tempo que você falar em democracia racial não era uma aberração como passou a ser hoje em dia. Mas o que eu acho é que a gente não pode se pautar, eu me lembro de um livro que fez muito sucesso aqui no Brasil. (Michael) Hanchard que escreveu, um americano preto. Quando eu li o livro eu até tive uma reação assim, um pouco desaforada. Eu disse: “Então ele tá dizendo ‘olha aqui, o nosso racismo é muito melhor que o de vocês’”. Ele comparava o Brasil com os Estados Unidos, com a África do Sul. Porque ele lamentava que os movimentos negros que surgiram no Brasil nos anos 70, no Rio e em São Paulo, não tivessem tido o crescimento e a dominação cultural que aconteceu nos Estados Unidos e na África do Sul. Então, conclusão, porque lá, como a discriminação era escancarada, aberta, oficial, nos dois lugares, cada um de uma maneira, mas é bem nítido, que aqui também a reação podia ser organizada. Aqui, o racismo terminava sendo pior, porque você não tinha elementos pra se organizar, porque não havia… Mas assim, meio de pulo, se tivesse saído eu teria deixado, eu falava assim, “ele tá querendo dizer que o racismo deles é melhor do que o nosso?”. Isso eu dizia, às vezes. Então havia uma certa reação minha àquele livro, mas eu, ao mesmo tempo, via que era uma… Eu li todo o livro na época, nos anos 90, e ele falava muito de coisas que se deram nos anos 70 no Brasil. E aquilo foi, primeiro o negócio tá ali, cresceu muito essa perspectiva americana. E eu sempre tive uma certa reação a essa submissão muito facilitada ao modelo americano, entendeu? No entanto, eu acho que não há argumento nenhum que você possa apresentar que desdiga o que foi dito (por Sueli Carneiro) sobre o IML. Tem uma música que fiz há muitos anos, que se chama “Americanos”, que diz: “Americanos são muito estatísticos”. Eu estava pensando um pouco nisso, mas não sabia o quanto. Hoje, se você olhar as estatísticas, você vai ver que você não pode não adotar uma atitude de luta, e de enfrentamento, e até ouvir com paciência as ofensas ao mito da democracia racial, a Gilberto Freyre. Que aliás, no “Casa grande e senzala” não tem democracia racial nenhuma.

THIAGO: Não, eu queria até falar sobre “Casa grande e senzala”. Eu já ouvi muita gente dizer que é um livro que facilita a vida pro…

CAETANO: Pra o senhor. Mas ali descreve os horrores…

THIAGO: São horrores! Inclusive o livro acaba num anticlímax terrível, onde ele fala, se não me engano, de coisas de doenças, as quais o miserável, o escravo acabava desenvolvendo. O ‘Casa Grande e Senzala’ que eu li não é esse livro…

CAETANO: Não parece com o retrato dele que querem fazer hoje.

THIAGO: Não parece. E que talvez, assim, é muito provável que esse retrato negativo do Gilberto Freyre tenha a ver com outros aspectos da atuação política dele, junto à reitoria de universidades, enfim. Mas tem uma coisa que eu preciso falar, e que talvez seja interessante: que é uma história pequena, que na minha vida simboliza isso tudo, que é a minha relação com a Ilessi, que é uma cantora incrível, muito minha amiga, uma irmã que eu tenho. Que quando eu a conheci, e isso foi lá pra 2008, eu me lembro numa festa em que havia uma pessoa que pegou um violão e cantou uma música pró-democracia racial. E ela é negra. E ela ficou com o cenho franzido, e eu fiquei exultante com aquela música. Eu achei interessante, porque aquela música deslocava algumas coisas que estavam me parecendo fáceis no argumento antidemocracia racial. E muitos anos depois, a Ilessi chegou pra mim e falou assim, “você lembra daquele dia? Aquilo me doeu. Aquilo me doeu. Você foi leviano, e foi fácil pra você dizer aquilo”. Mas aí ela me contou aspectos, assim, que eu não suspeitava, da formação dela, do racismo que ela veio sofrendo, e tal, e esse, e esse negócio, e recentemente ela lançou um disco chamado “Dama de espadas”, onde ela canta, onde tem uma música chamada “Eu não sou seu negro”, e tem uma música minha também, chamada “Ladra do lugar de fala”, na qual eu mexo com esse negócio. São assuntos que eu tive com ela, ela falando do mal estar que ela veio sentindo, vendo mulheres brancas, padrão, entrando num lugar de defensoras de coisas, que ela, como pobre, de classe média baixa pra pobre, negra, não poderia defender com a mesma, com o mesmo chamariz, entendeu, sob as mesmas luzes. E tinha essa coisa de um ressentimento, que eu compreendia, e foi onde ela trouxe pra mim, falou assim: “Você lembra desse evento, você lembra dessa data?”. E aí o que aconteceu é que eu percebi que eu tinha que rever o negócio todo. E eu achei muito positivo, que nesse tempo que transcorreu… Essa conversa dolorosa pra mim foi em 2016. Achei ótimo, que nesse tempo, eu não tivesse mais pra onde correr, na minha justificativa autoindulgente, entendeu? Eu achei ótimo, porque isso parece que teve a ver com uma modificação geral das coisas. Porque de fato, quando eu falei isso, eu falei numa inocência, que parecia que estava defendendo uma especificidade brasileira: “Ah, mas nós somos mestiços, por que que nós temos que introjetar certos aspectos da luta norte-americana, em termos, como eles propõem, por que que nós não encontramos isso”. Achei ótimo quando ela tocou nessa ferida, quando ela compartilhou a ferida dela. Me doeu, e eu achei ótimo que tenha me doído.

CAETANO: No fim das contas, ela tem razão. Agora, você é muito mais branco do que eu, e ainda de uma região menos negra do que a minha, embora uma das mais negras, porque o Rio é bastante negro, mas a Bahia é mais. E eu sou, meu pai era mulato, mulato mesmo. E então, eu convivi com gente preta, e mulata, e mais escura. Dentro da minha casa, a primeira filha saiu muito branca, Clara Maria. Chama-se Clara Maria, a mãe do meu pai chamava-se Clara. Embora fosse mulata, também. E a segunda, Maria Isabel, Mabel, nasceu bem morena, escura, com cabelo preto, cacheado. Você vê que ela não é branca, assim. Parda. E Mabel conta uns contrastes que ela mesma viveu, na infância. Por exemplo, tem um negócio de coroar Nossa Senhora da Purificação, então as meninas se vestem de anjos, tem umas nuvens… O altar é feito uma imagem barroca com umas nuvens. E ali dá pra ficar uma menina vestida de anjo, em pé, e vai passando a coroa, e cantando, até botar a coroa na cabeça de Nossa Senhora, uma coroa de ouro mesmo. E nunca escolhiam ela. Escolhiam Clara, mas nunca escolhiam Mabel pra ser anjo. Ela sentia isso, e conta, ela fala disso, era por causa de ela ser escura. Ela é assim como você, Lichote, que de nós três é o mais preto.

Você falou certa vez, perto do atentado às Torres Gêmeas: “acho o Osama Bin Laden bonito, ele é até parecido com as pessoas da minha família”.

CAETANO: Com o pessoal da minha família, é. Eles ficaram com raiva danada, mas era verdade, porque o pessoal lá em casa achava também.

E era uma observação obviamente provocativa, mas puramente étnica. Mas você, de forma nenhuma está negando o racismo. Mas a solução que passa pela mente do Mautner e pela sua é uma outra solução, diferente da solução do one drop rule.

CAETANO: One drop rule é meio doido de ser aplicado no Brasil, né? Qualquer coisa muito definida, como já foi a experiência de outros lugares, por isso que o livro de Hanchard fica um pouco fraco, porque você não pode aplicar ao Brasil. Agora, é muito saudável que o Brasil tenha adotado várias coisas dessa atitude mais americana.

THIAGO: Tornado falas como essa minha, de 2008, um pouco menos defensáveis.

E com relação às cotas, Caetano, naquela época teve aquele manifesto contrário que você assinou…

CAETANO: Sim. Eu assinei. (Antonio) Risério também. Ele continua. Ele tem uma certa raiva dessa coisa. O livro de Hanchard teve uma resposta de (Pierre) Bourdieu e (Loïc) Wacquant, que ficou famosa, ali nos anos 90. Parece que Risério ainda tá naquela mesma posição dos franceses. Mas os franceses, o que eles falavam tinha muito a ver, porém, evidentemente, há um problema de disputa cultural, disputa de domínio cultural com os americanos. Recentemente, com relação à questão das mulheres, esse negócio de Me Too, as atrizes francesas fizeram uma resposta, que não deixa de ter coisas ali interessantes no que elas dizem. Porém, há um ciuminho francês que é suspeito. Evidentemente, muitos dos argumentos suspeitos que Risério apresenta deveriam poder estar sendo discutidos agora, mas ele nem procura um ritmo que seja oportuno, nem nada. Ao contrário, há uma certa birra. E eu acho que o outro lado tem uma montanha de razão. Eu estava dizendo, Thiago, que a minha experiência é mais próxima do que a sua, porque eu venho de um ambiente preto. E porque mulato, uma família mulata, meu pai mulato, minha mãe parecia uma indiana. Meu pai tinha cabelo de filho de gente preta, crespo, e minha mãe tinha cabelo liso, mas preto, realmente preto o cabelo de minha mãe. E a gente saiu, dentro de casa mesmo, tinha diferença, de colorismo, e brincadeiras com isso. No caso de Mabel, chegou a ter um certo sofrimento. E os vizinhos, a vizinha desse lado aqui era 100% preta, pinta de preta, totalmente preta, muito nossa amiga, colega dos meninos no ginásio. E um dos meus melhores amigos no ginásio foi Emanuel Araújo, que eu acho que dirigiu a Pinacoteca, e que é um pintor, escultor, artista plástico, e agora dirige o Museu Afro Brasil em São Paulo. Coincidiu de, anos depois, eu ir à África, a única vez que eu fui à África, passei até um tempinho lá, quase um mês. Fui com Gil, e o Emanuel foi, foi interessante à beça. Tem coisas até meio engraçadas, porque tava o Abdias Nascimento, Abdias veio falar com o Gil, a gente tava hospedado em Lagos, eram uns prédios que tinham sido construídos para moradia, conjunto habitacional, pra gente de baixa renda. Mas eles estavam novos, ainda não tinham sido entregues. E como ia ter o FESTAC (como ficou conhecido o Segundo Festival Mundial de Artes e Cultura Negra e Africana), esses apartamentos foram usados para os convidados de outros países, e o Brasil ficava ali. E o Abdias Nascimento veio falar com o Gil, e eu tava com o Gil, e Abdias falou mais com o Gil, quase não falou comigo. Foi uma coisa bem, assim. Mas teve uma coisa, porque ele ficou junto com o grupo lá de americanos que se opunham ao FESTAC, porque o FESTAC, o texto pro FESTAC foi do Gilberto Freyre… Era o Brasil dos anos 70. E teve uma apresentação de Cuba, eu fui ver várias coisas, porque era um festival de arte. A coisa de Cuba era totalmente democracia racial, e uma coisa teatral, dança, música e tal. O Brasil teve show de Gil, tal, o Gil foi ver o Fela Kuti. Fela chamou Gil, por exemplo, não me chamou, pra passar a tarde na casa dele e ficar lá. Gil foi, passou a tarde toda, ficou até de noite. O Fela se recusou a se apresentar no FESTAC porque achou muito mole, muito aberto, que tinha que ser uma luta pelo negro africano, não sei o quê. Mas quis conversar com Gil. E aí, os americanos se opunham a quase tudo que o FESTAC falava, eram bem racialistas, assim, briga, luta racial. E depois saiu num jornal da Nigéria que descobriu que vários deles estavam trabalhando para a CIA, eu nunca esqueço isso (risos). Nunca esqueço isso, sempre volta na minha cabeça esse negócio. Aí eu fico pensando, “pô, eu gosto tanto de Risério mesmo”, porque é meu amigo desde que ele era menino. Eu conheci Risério quando voltei de Londres, ele era adolescente. Fizemos amizade. Mas eu acho o ritmo dele meio ruim, e também essa parte é errada.

Com relação às cotas, você…

CAETANO: Eu assinei, mas falei assim, como é aquela expressão? “Tá bom, eu assino, mas com um grão de sal” (expressão de origem latina que pode ser entendida como “com um pé atrás”). Mas hoje eu acho que as cotas são uma compensação importante para o presente. Por exemplo, quando eu cresci, fui pra Salvador pra fazer o clássico, que só tinha até o ginásio em Santo Amaro. Clássico ou científico, o ciclo secundário. As duas mais temidas, admiradas e respeitadas professoras de português de Salvador, eram ambas, Dona Belmira e Dona Candolina, eram ambas negras.Todas as duas eram pretas. É interessante. O médico oncologista mais respeitado, que cuidou do meu pai, quando meu pai teve câncer de próstata, já com quase 80 anos, era preto. Minha casa nunca teve carro, Gil tinha carro, porque o pai dele tinha carro, era médico. Respeitadíssimo, hoje em dia é nome de uma rua. Ele era de Salvador, mas foi morar em Vitória da Conquista, e tem uma rua, ou uma praça, que tem o nome de Doutor Gil, porque ele era queridíssimo, respeitado. O Gil conta que ele cresceu, já tava grande quando foi pra Salvador, na escola, ouviu falar que existia racismo, nunca tinha sentido nada. Eu quando conheci Gil esse tema não aparecia. Porque ele não tinha, e eu tinha. Entendeu? É engraçado. O pensamento da questão racial, por causa da vivência em Santo Amaro, e das coisas que eu fui vendo, que eu via na escola e tal. E o Gil não tinha! O Gil, eu estudava Filosofia. Ele estudava Administração de Empresas, só tinha playba da Barra, Graça e Barra Avenida, tudo branco, ele foi o orador da turma, e ele nem parecia que ele era praticamente o único preto naquela escola. Depois não, depois ele ficou, também por causa da música, por causa do negócio de Black Panther, da coisa americana e por causa da música.

E a ida pra África, essa ida pra África foi fundamental também, pra ele, nesse sentido.

CAETANO: A ida pra África foi, tanto que ele fez o “Refavela”, quando a gente voltou.

Li uma entrevista da Veja com ele, nessa época, na qual o repórter questiona Gil por assumir sua negritude, algo como se ele estivesse promovendo um “racismo às avessas”. O Gil dava altas voltas nele, respondendo, porque estava muito consciente do que estava fazendo naquele momento.

CAETANO: O “Refavela” ganhou uma crítica da Veja nessa época, cujo título era “Rebobagem”. A “Veja” é antipática, né? Eu tinha um pouquinho de problema. Mas tudo bem.

Esse sua coisa com a imprensa, Caetano… Outro dia eu ouvi uma gravação sua da década de 70, contando de uma entrevista então recente, na qual um repórter veio falar que não estava acontecendo nada na música brasileira, só bobagens. E deu como exemplo a canção “Aonde a vaca vai”. Você respondeu, provocando: “mas eu gosto dessa canção, aquela coisa de a música toda tocada numa corda do violão” e tal. Ele retrucou que a música “não tinha mensagem” e você disse: “Mas é claro que tem mensagem! Ela está exposta claramente, pra qualquer um entender: aonde a vaca vai, o boi vai atrás!”.

CAETANO: Como não tem mensagem? Se tem uma canção de mensagem, é essa (risos).

Pois é! (risos) É isso, acho que podemos encerrar aqui, com essa… mensagem. Caetano, muito obrigado. Muito obrigado, Thiago.

CAETANO: Obrigado eu! Bacana que assim a gente conversou, Thiago.

THIAGO: Obrigado.

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