Caetano Veloso volta a BH e fala sobre 'Meu Coco': 'Há ironia e amargura'
Entrevista para o Jornal O Tempo (26 de outubro de 2022)
Por Bruno Mateus
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Caetano Veloso, 80, estreou a turnê nacional do disco ‘Meu Coco’, lançado em outubro do ano passado, em Belo Horizonte, nos primeiros dias de abril. Foram três datas no Palácio das Artes com ingressos esgotados. A escolha pela capital mineira no começo do giro pelo país não se deu por motivos aleatórios.
“Belo Horizonte tem, feitas todas as contas, a melhor plateia do Brasil”, diz o baiano em entrevista a O TEMPO. “Atribuo a superioridade da plateia belo-horizontina à centralidade mineira que produziu um aprofundamento da feitura e da fruição da música que se traduz em Clube da Esquina”, explica.
De volta a BH para subir ao palco do Expominas neste sábado (29) (detalhes no fim da entrevista), Caetano agora experimenta outra sensação. Se, antes, a expectativa era pelo início da turnê, agora o compositor admite certa apreensão com o que acontecerá no domingo, dia em que o Brasil saberá se Luiz Inácio Lula da Silva (PT) voltará ao poder ou se Jair Bolsonaro (PL) ocupará por mais quatro anos a cadeira da Presidência da República.
“Acho que farei o show tenso. Essa eleição é o retrato do Brasil mais assustador que tivemos em nossa democracia. Estamos assustados. Vamos nos ver demais nela e no que se seguirá a ela”, ele pontua. Desde o início da disputa eleitoral, Caetano declarou apoio a Lula.
A seguir, Caetano Veloso fala sobre o repertório do show, que mescla faixas de “Meu Coco” com canções clássicas de diferentes fases do cantor, entre as quais “You Don’t Know Me”, do cinquentenário “Transa”, “Cajuína”, “Sampa”, “Odara” e “Leãozinho”, chama os que desrespeitam negros e nordestinos de cafajestes e analisa como “Meu Coco” reflete o Brasil: “Há ironia e amargura – e há esperanças e promessas absurdamente ambiciosas”.
Sobre o repertório deste show, haverá alguma novidade? Pergunto, pois admito particular curiosidade. “Autoacalanto” não figurou no setlist da estreia e, para mim, essa canção é das coisas mais lindas que ouvi nos últimos tempos – eu cantava baixinho quando fazia minha filha, Amora, dormir.
Basicamente, não tem havido mudanças no repertório do show “Meu Coco” desde a estreia em BH. Algumas vezes cantei “Cobre” logo antes de “Cajuína”. Agora fiquei com vontade de cantar “Autoacalanto” por causa do que você me disse sobre Amora. Mas não tenho certeza de que vou fazer isso porque temo que o show fique longo demais.
Na letra de “Autoacalanto”, escrita para seu neto Benjamim, você se pergunta: “O que é mesmo que isso me ensina?”. Ser avô modificou seu modo de ver a vida em algum sentido?
Benjamim não me fez avô pela primeira vez. Minha primeira neta, filha de Moreno, tem 16 anos. Ser pai mudou tudo em mim. Ser avô é um carinho a mais, um prêmio por eu ter tido a coragem de ser pai. Acontece que Benjamim cresceu os dois primeiros anos em minha casa. Nasceu perto de nós e ficou conosco por causa da pandemia.
Frequentemente, vejo pessoas comentando “nossa, olha a pele do Caetano”, “que pique ele tem para fazer esse tanto de show”, “nem parece ter 80 anos”, “tem 80, mas está mais jovem que a gente”. Esse tipo de comentário, na verdade, não vem de hoje. Como você se prepara para uma turnê que viaja o país há mais de seis meses?
Por causa dos perrengues da velhice, tenho espaçado mais as datas de show. Inclusive adiei a ida ao exterior para o próximo ano porque o Brasil é muito grande e seria demais fazer as viagens domésticas correndo. E agora nem penso em viajar para fora logo. Vou decidir no período de descanso mais prolongado. O problema é que os contratantes estrangeiros querem respostas rápidas. Minha aparência relativamente jovem se deve a herança genética. Meus pais, meus irmãos foram e são assim. Fiz pilates por poucos meses há mais de 10 anos. Depois precisei parar pra viajar e não voltei a fazer. Não tenho rotina especial para a turnê. Pego carona há pouco mais de dois anos na fisioterapeuta de que Paulinha precisou por ter tido um problema de coluna. Mas não mudamos nada desde que começou “Meu Coco”.
Certa vez, vi você falando sobre duas plateias consideradas especiais: a de Buenos Aires e a de Belo Horizonte. O que você vê no público de BH que te faz ter opinião?
Sim, Belo Horizonte tem, feitas todas as contas, a melhor plateia do Brasil. E Buenos Aires tem a melhor plateia do exterior. Para meus shows, pelo menos. Atribuo a superioridade da plateia belo-horizontina à centralidade mineira que produziu um aprofundamento da feitura e da fruição da música que se traduz em Clube da Esquina. Os espectadores são atentos e mostram-se entusiasmados quando aprovam o que ouvem. Em BsAs, acho que tudo nasce da relação do desenvolvimento cultural europeizante da Argentina, que produziu cinema e música de qualidade por décadas, e seu modo de descobrir a vitalidade da bárbara inspiração brasileira.
O show acontece na véspera do segundo turno das eleições presidenciais e seguramente terá manifestações políticas vindas da plateia.
Acho que farei o show tenso. Essa eleição é o retrato do Brasil mais assustador que tivemos em nossa democracia. Estamos assustados. Vamos nos ver demais nela e no que se seguirá a ela.
Temos visto diversos casos de intolerância contra as religiões de matriz africana no Brasil e também contra os nordestinos – não que isso seja lá uma grande novidade num Brasil tão preconceituoso. As culturas africana e nordestina perpassam sua obra, sempre lhe influenciaram estética e musicalmente. Em “Meu Coco”, você canta “católicos de axé e neopentecostais”, e o Brasil é tudo isso e muito mais. O que esses ataques te provocam, como eles te impactam?
Sou da Bahia, estado que tem a maior população negra do Brasil e foi incorporado oficialmente à região Nordeste durante a ditadura militar. Eu estava exilado em Londres quando essa mudança se deu. Éramos, junto com Sergipe, o Rio de Janeiro e o Espírito Santo, a região Leste. Em Salvador, no Recôncavo e no sul do estado não pronunciamos os dês e os tês diante do i como se eles estivessem diante de um a ou de um o. Palatalizamos. Mas, assim como Sergipe, grande parte do estado da Bahia pronuncia essas consoantes como os pernambucanos, alagoanos e potiguares. Passei parte da infância em Serrinha, onde se fala um português totalmente nordestino. Continuo palatalizando as linguodentais diante do som de i. Mas orgulho-me de ser considerado nordestino. Meu pai era mulato óbvio. Minha mãe parecia uma indiana. Nós, os seis filhos biológicos deles, temos cores de pele e tipos de cabelo variados. Tudo o que diz respeito ao Nordeste e tudo que diz respeito aos negros me atinge. Desde Santo Amaro, onde havia uma imensa maioria de famílias miscigenadas, a questão do racismo me obsessiona. Esses cafajestes (tão brasileiros!) que hoje têm poder e desrespeitam negros e nordestinos me repugnariam, mesmo que eu fosse catarinense ou gaúcho. Mas ou mulato e baiano. Ou seja, incluo-me entre os negros e os nordestinos.
Você já disse que o Brasil ganha em “Meu Coco” um retrato de aparente exaltação. Recentemente, conversei com José Miguel Wisnik. No belíssimo álbum “Vão”, ele, de uma rachadura, de um vão, olha para o Brasil e pergunta que Brasil é esse que está diante de nós. Para mim, uma marca de sua obra é esse olhar permanente sobre o Brasil, sobre a cultura brasileira e sua vitalidade. Nesse sentido, onde está “Meu Coco”? O disco também reflete sobre esse país, que país?
Sim. Reflete. A canção “Meu Coco”, que abre e dá título ao disco, é cheia de louvações à miscigenação, mas num clima de pós-identitarismo. Há ironia e amargura – e há esperanças e promessas absurdamente ambiciosas. Ainda não dialoguei com Zé Miguel sobre o “Vão” que há aí porque isso tem de ser conversa comprida e estou atarefado. Mas sei que o farei.
Você sempre reverenciou Milton Nascimento, que completa 80 anos nesta quarta (26). Em 2022, há também a efeméride dos 50 anos do disco “Clube da Esquina”. Há algum paralelo estético/criativo entre Bituca, Clube da Esquina e Minas, e Caetano, Doces Bárbaros e Bahia?
Somos muito diferentes. Meu irmão Rodrigo, a quem devo quase tudo, diz que, ao conhecer Minas, envergonhou-se do narcisismo baiano, que alardeia em canções as belezas que ficaram do Brasil colônia em Salvador, já que as igrejas e a arquitetura de Minas eram mais bonitas e os mineiros eram discretos. Nós anunciamos mais do que fazemos. Mineiros fazem mais e ficam mais calados.