Profeta da utopia brasileira

Entrevista para o Jornal O Globo

Por Arnaldo Bloch

4 de novembro de 2005


"Amo os Estados Unidos. Apenas não exijo do Brasil menos do que levar mais longe muito mais do que se deu ali". A frase, dita por Caetano Veloso numa conferência no Museu de Arte Moderna em 1993 (e ecoada no livro "Verdade tropical"), parece ser a chave mestra para entrar nos corredores temporais de "O mundo não é chato" (Companhia das Letras), volume que reúne artigos, ensaios, crônicas e falas do compositor e cantor em mais de 45 anos de vida artística e, por que não dizer, pública num sentido mais abrangente. Os 95 textos organizados pelo poeta Eucanaã Ferraz num cruzamento de divisão temática e cronologia em marcha a ré, apesar das diferenças de tema (música, cinema, sociedade, política, livre pensar) e estilo (caótico e experimental nos anos 70, ensaístico e organizado nos 60 e nos 90), falam, essencialmente, do Brasil, e de uma ideia quase missionária de termos, como nação, o dever de superar o modelo dos primos ricos do Norte.

Para o leitor de "O mundo não é chato" será inevitável perguntar: em que ponto estamos do traçado possível dessa profética linha evolutiva?

Caetano tenta responder.

- O texto onde isto está escrito no original era falado. Não eram conclusões serenas, mas provocações. Assim mesmo acabou saindo um compacto do texto na imprensa. Sofri muito. Um sujeito de Brasília, um cientista, escreveu um e-mail esculhambando minhas ilusões e dizendo que o Brasil não tinha apresentado credenciais sequer para tentar fazer o mínimo que a gente espera dele - confessa Caetano. - Mas eu repito o que já disse uma vez a jornalistas: O Brasil vai dar certo porque eu quero.

Seria uma daquelas frases do gênero do "É proibido proibir" (herdada pela tropicália da rapaziada que pichava os muros de Paris em 1968 com a máxima surrealista), cuja lógica não resiste ou se presta à análise da razão?

- Não - refuta Caetano. - Não é uma frase como aquela. Tem mais consequência, é mesmo real. E parente de uma outra, dita pelo Agostinho da Silva sobre Portugal: "Portugal já civilizou África, América e Ásia. Falta civilizar a Europa." Acho isso sensacional (risos): em pleno século XX, Portugal por baixo, antes de ser admitido generosamente na União Europeia, essa petulância, essa ambição não autorizadas...

Não autorizada em termos, ressalva o brasileiro que viveu o exílio por força da arte, citando a credencial de ter travado "casualmente uma experiência profunda com o movimento histórico real do país".

- Acho que o próprio fato de eu ter a petulância de querer assim é um sintoma de que não é 100% desautorizada a ambição. Não que seja um destino inelutável. Mas é uma responsabilidade de um país desse tamanho, no Hemisfério Sul, na América, miscigenado e falando português. São condições especiais adversas para que não tenhamos uma obrigação de originalidade. Está na cara de quem abrir os olhos.

Querendo, podemos superar o século americano, passar à frente historicamente o que os Estados Unidos puderam fazer com o mundo. Deixa de ser utopia. São fatores reais que nos convidam ao dever. Quando digo eu, quero dizer "nós queremos" aos que pensam assim.

O profeta, que vê e reafirma esta missão grandiosa, revolucionária, coleciona, em suas análises sobre a canção brasileira, a certeza de várias revoluções já feitas: a obra de João Gilberto; as rupturas e as leituras que se seguiram, entre as quais a Tropicália; o fenômeno dos filhos de Gandhi; o BRock; e, a partir dos anos 80/90, o binômio rap/ hip hop assumindo uma voz brasileira que ele, Caetano, abraçou no nascedouro com as canções "Língua" e "Haiti".

Hoje, quando Chico Buarque admite com serenidade que a canção pode estar no sumidouro, Caetano parece viver uma fase de desencanto com o universo rapper:

- O modo como o Chico abordou a questão é tão bonito que fico com problemas para falar disso. Quando abordei o samba-rap em "Língua", o MV Bill e o Mano Brown eram garotinhos. Semana passada almocei com o Bill. Tive uma experiência com os Racionais, cujo álbum "Sobrevivendo no inferno" é um dos maiores da História no Brasil, junto a "Chega de saudade e "Pelo telefone" - ressalta.

Então, qual o problema?

- É que estou começando a ficar um pouco... dissonante do rap. Por razões inclusive de foro íntimo. Sou de Santo Amaro e de Guadalupe aqui do Rio, onde vivi dos 13 aos 14 anos. Quando vou lá, noto que cresceu um tom favelizante, do ponto de vista urbanístico e da cultura popular, compartilhado pelos habitantes, e uma certa tendência de culto aos heróis traficantes. Mesmo quando há uma queixa. Entendo que seja assim, mas ao ver isso crescer na moçada preciso reagir contra aspectos dessa cultura. É o meu movimento interno político.

No arcabouço dialético de sua metamorfose ambulante, Caetano, ao mesmo tempo que se preocupa com a referida "tendência favelizante" do rap, mostra-se reservado quanto à discussão referente à remoção das favelas, evasivo quanto ao mérito:

- Sou contra a campanha do GLOBO para desqualificar e desvalorizar o programa Favela-Bairro.

E, na trilha do discurso crítico ao rap, ele aposta fichas novas na canção.

- O rap destacou as palavras da melodia para poder ter mais conteúdo. Mas as palavras de uma canção eu entendo facilmente. As palavras do rap para mim são abstrações, são ruído em sua esmagadora maioria. Tem umas que me arrebentam o coração de emoção, mas em geral é muita coisa dita. Mas há uma outra questão que se afigura ainda mais grave para mim.

Caetano resume tal questão grave numa pergunta:

- Se você está lutando contra a opressão, em qual dos casos você é mais oprimido: se for um negro diante de quem não é, ou se for um latino diante de um norte-americano?

A resposta vem no relato de dois episódios: um no aeroporto de Cancún, seguindo para a Cidade do México.

- O cara da imigração me agrediu dizendo que eu estava querendo entrar nos EUA ilegalmente. Eu disse: "Cara, eu estou indo para a Cidade do México cantar", e ele, em espanhol, respondeu: "Você não vai me enganar!". Eu elevei a voz: "Bicho, eu sou brasileiro, você é mexicano e está aí tomando conta do país dos outros? Vá à merda!"

O outro episódio aconteceu na própria Cidade do México, quando Caetano e banda vinham da Califórnia pouco depois do 11 de Setembro.

- A gente estava numas lojas com o pessoal da banda, e conosco os quatro percussionistas pretos do Timbalada que me acompanhavam na turnê. Eles tinham comprado em Los Angeles aqueles tênis e bonés e andavam assim com o aparato rapper. Pois bem, os vendedores mexicanos, que não davam a mínima para nós, latinos, tratavam os nossos pretos com bajulação porque pareciam pretos americanos.

No episódio Caetano parece enxergar, profeticamente (?), o rap a serviço de uma certa hegemonia afro-americana:

Essa coisa de African-American é um horror. Porque African não quer dizer que a pessoa seja preta, e American acaba simbolizando muito mais do que ser preto em matéria de força, poder. O pessoal preto compra todo o repertório de reivindicações dos pretos americanos e termina de vez em quando agredindo coisas que o Brasil mestiço atingiu, conseguiu, realizou.

De intuição em intuição, político (embora não institucionalmente), intelectual e teórico (embora não sistematicamente), o profeta da utopia brasileira diz-se satisfeito em tangenciar o pensamento, numa obra que, com todas suas contradições, aparece em plena complexidade no livro que chega às lojas.

- Há uma tradição brasileira de verdadeiros pensadores que se deram ao trabalho de se preparar. Espero que minhas intervenções desorganizadas, que são apenas efeito colateral da minha atitude de artista, contribuam para que os que pensam de verdade, ainda que discordando de mim, construam o pensamento estruturado sobre o Brasil.

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