Conexões neurais
Entrevista publicada na Revista Noize #132
Por Charles Gavin
Abril de 2023
Foto: Thereza Eugênia.
Fazer um disco em um estúdio que fica na sua casa pode ser muito diferente das experiências anteriores. Como foi?
Faz diferença mesmo. Porque você não tem que sair de casa, tomar um carro e ir até o estúdio. Eu descia a escada com o Lucas Nunes, que fez o disco comigo. No princípio, éramos só os dois. Então chamamos Márcio Victor, Vinicius Cantuária, daqui a pouco Marcelo Costa. Botamos percussões e, depois, os arranjadores que a gente convidou pra fazer gravação de orquestra, fosse na Bahia, em Belo Horizonte, no Rio. Mas tudo se passava lá em casa. É diferente, sim. Termina saindo mais...
Mais intimista?
De certa forma, sim. Em casa, todas as canções com letra e música minha, acho que fica de certa forma mais íntimo.
Como o nome do Lucas apareceu?
O Lucas, eu conheci adolescente, ele tem 27 anos agora. É colega do meu filho mais novo, Tom. Eles criaram, adolescentes, uma banda que se chama Dônica, e o Lucas é capaz de conduzir gravação no estúdio, tem conhecimento técnico pra isso. Então, eu disse: "Vamos fazendo aqui". Começamos os dois sozinhos.
Como isso muda o teu processo?
Eu estava planejando fazer um disco em que eu teria Zeca, meu filho do meio, como conselheiro. E através das conversas com ele, chegaríamos ao estúdio e aos músicos e aos técnicos adequados. Já tinha essa música "Meu Coco" e algumas outras, mas aí parei tudo porque não dava pra gravar. Quando retomei, sozinho com Lucas no estúdio de casa, foi de uma maneira mais modesta. "Vamos fazer aqui nós dois o que der pra fazer". Mas como o Lucas é muito capaz, a coisa se desenvolveu bastante.
Então, a sensação é diferente, foi muito boa. Lucas entende tudo, e, mesmo em coisas que o gosto pessoal não coincidia, ele entendeu e até achou que foi interessante pra ele como treinamento do gosto, aprendizado, respeito de estilos. E, pra mim, também.
O resultado acabou tendo uma unidade na variedade que me alegra. O disco é quantitativamente variado e, no entanto, tem um centro, que faz dele um bom disco. Curiosamente, eu nem sabia se conseguiria fazer um disco, e como ia ser. No fim das contas, achei que consegui fazer um bom disco brasileiro.
O disco tem uma unidade estética muito forte do ponto de vista da sonoridade. Agora, do ponto de vista das vertentes que você sempre usou dentro da sua música, brasileiras ou não, ele é bastante diversificado, né?
É. Quando fiz "Meu Coco", que é a nave-mãe, de onde saíram as outras e o projeto de fazer o disco, eu pensava em definir um disco mais homogêneo no tratamento dos arranjos, na instrumentação, e encontrar uma sonoridade, um timbre e umas levadas que dessem uma unidade óbvia ao disco. Saiu o contrário.
Terminei fazendo um disco com imensa variedade de sons. É curioso que o single seja "Anjos Tronchos", que soa como o último disco que fiz, nove anos antes, com a bandaCe. Porque é Pedro Sá tocando e, no entanto, é a única faixa que Pedro Sá participa. Isso dá um retrato do histórico da feitura desse disco.
Vou aproveitar o gancho, qual foi a motivação dessa letra?
Me veio à cabeça por causa desse tema dos computadores, laptop, internet, smartphones, redes sociais, esse mundo. Veio uma frase: "Os anjos tronchos do Vale do Silício". Pensei: "Silício dá uma rima boa, poderia fazer uma música". Mas eu não tenho smartphone, não entro em rede social. Aí lembrei do poema de Drummond, "um anjo torto desses que vivem na sombra". "O Poema de Sete Faces", que começa assim e eu já citei até em outra música. Outras frases foram vindo, e aí eu fiz aquilo com melodia e já comecei até a pensar em Pedro Sá pra tocar.
Só que eu pensava: "Não tenho conteúdo dentro da minha cabeça sobre esse assunto pra concluir uma canção". Terminei fazendo estrofes demais, que nem se repetem na música. Não há refrão, não há repetição de estrofe. As ideias vinham vindo. E me lembrei de Gil, que fez muitas canções sobre esses assuntos sem conhecer teoricamente. Mas as canções são com letras reflexivas. Meu negócio não parece com o dele, mas a situação parece.
Junto a esse assunto das redes sociais, e o poder que gira em torno disso, você trouxe também outros temas, né? Ela está sendo vista por muita gente como uma canção política.
Aliás, há no disco muitos traços politicos que eu não tinha muita consciência anterior, mas que eu vi na feitura das canções, e nessa sem dúvida há. Tem um verso que fala: "Palhaços líderes brotaram macabros". É um verso só, mas está adensado aí todo um pensamento, talvez até muito comum. Mas adensado em um verso nessa sonoridade, ganha uma força que irradia pro resto da canção toda.
Depois, isso se desdobra, quando abre um tom mais lírico e lamentoso sobre a Primavera Árabe. Porque a Primavera Árabe se deveu em grande parte às redes sociais. No entanto, muito daquilo resultou em um horror. Desde o que houve no Egito até o que aconteceu com a Síria. Esse lamento sobre a Primavera Árabe se soma, ou expande, o que já está muito condensado no "palhaços líderes brotaram macabros". Ou seja, são resultados abomináveis, aterradores, desse desenvolvimento tecnológico.
Sobre "Sem Samba Não Dá", você disse: "Pretinho da Serrinha perguntou se não ia ter um samba no disco, aí fiz um pra ele".
Foi mesmo. Pretinho da Serrinha falou assim: "E um samba? Não vai ter um samba pra gente tocar?". Aí eu fiz um samba e pedi que chamasse a turma dele, com quem ele gosta de tocar. Ele sabe que, pra mim, é o que há de melhor em gravação de samba no estúdio, Pretinho da Serrinha é um tesouro nacional.
Aí chamei Mestrinho pra tocar acordeon, porque tem um pouco desse samba que a gente ouve hoje, que é meio samba e meio sertanejo. Sambanejo, né? Aí inventei a palavra "pagobrejo". Botei lá e ficou bacana. É muito diferente das outras faixas do disco, é a única que tem uma banda de samba tocando.
Você sempre foi um entusiasta de todo mundo que fez sucesso no Brasil, sempre viu o lado positivo disso.
Essas forças da canção popular revelam muito da força intestina da realidade brasileira. Isso me toca, me interessa mais do que ficar criticando no sentido de criar a área de bom gosto, do que é aprovado, do que é brega. Aliás, o Tropicalismo nasceu de reconhecer essa força. Isso nunca me abandonou e vem por lados diferentes.
Não é que virou bacana você gostar do que é considerado brega. Não pensa que entendeu quem pensou isso. Não é isso, não. E quando você vê que algo realmente vital aparece por causa daquilo, de como o comercialismo entrou, e como a sensibilidade se utilizou, e como esse metabolismo se deu. Perceber isso me arrebata, me emociona, me inspira, me influencia.
Agora a gente pode ir pra nave-mãe, que dá título ao disco. Pra mim, foi uma canção manifesto, daquelas que você fez ao longo da carreira, sobre o Brasil. Estou certo?
Acho que você está certo, sim. Ela se deu como uma canção manifesto. Na verdade, comecei pelo ritmo, quis fazer aquela levada, que é meio dura, como se fosse um pedaço de uma célula do samba cortada e repetida. Não é dura, o corte é duro, o resultado não é. Queria fazer essa célula ritmica e encontrar um timbre que desse a ela uma vitalidade moderna e livre, inventiva. E terminei procurando com o Lucas no estúdio, mas, no violão, ela já foi feita assim.
Eu queria criar um negócio com esse ritmo e falando de coisas do organismo brasileiro. Então, vieram nomes de mulheres. Comecei por aí e fui entrando em tudo que estivesse na minha cabeça a respeito dessa visão do Brasil miscigenado. De certa forma, é um pouco diferente da cultura de lutas identitárias definidas de grupos. É uma coisa mais ligada à tradição da exaltação de uma miscigenação, da mistura e da variedade vivida mais ou menos anarquicamente pela sociedade brasileira, com sua energia, do que uma submissão às cartilhas identitárias de hoje em dia.
Isso pode até causar polêmica, não me incomodo, porque ela é mais assim. Porém, é assim com minha capacidade de ver. E tanto que chega até aquela menção a uma conversa que João Gilberto teve comigo, dentre as muitas que tivemos, na qual ele disse: "Caeta, somos chineses". Era engraçado.
Como a gente entende essa frase?
É dificílimo, é como grande poesia, é óbvio e é dificílimo entender ao mesmo tempo. Tem uma profecia, e ao mesmo tempo uma rebeldia de não se enquadrar no desenvolvimento ocidental estabelecido, ao qual a bossa nova chegou como algo que está na sua área mais elevada. O João chegou lá e é de lá que ele está falando. Então, havia uma rebeldia e também um esboço de profecia.
Eu entendo mais com o coração do que com o pensamento. Mas ficou no meu coco, nunca saiu, e apareceu nessa canção. Veio esse negócio do João, e aí "meu coco", aí ficou o título da canção, que veio a ser o título do disco. Depois da base já pronta, cantando a voz guia e já tendo todas as percussões de Márcio Victor, convidei Thiago Amud pra escrever pra orquestra.
Queria saber de onde veio a ideia de trazer estas figuras: "Com Naras, Bethânias e Elis/ Faremos mundo feliz/ Únicos, vários, iguais/ Rio Canaveses".
"Rio Canaveses" é a Carmen Miranda. Carmen Miranda é de Portugal e veio pro Rio. A formação dela é de uma mulher carioca, mas nasceu em Marco de Canaveses. Isso é pra dar o arremate no negócio "com Naras, Bethânias e Elis/ Faremos mundo feliz". Porque é o projeto do Brasil contribuir com algo luminoso ao mundo. Salvar o mundo. Isso é uma das missões possíveis do Brasil e a minha escolhida.
Quando eu falo 'Naras, Bethânias e Elis' é porque são cantoras cada uma muito diferente da outra, todas muito importantes na cabeca de quem quer que pense a música popular brasileira. Com esse trio, que abre todo um negócio, faremos um mundo feliz. É a missão do Brasil.
Agora a gente vai falar da faixa "Você-Você" e por que Carminho está na gravação.
A canção nasceu por causa dela. O eu romântico da canção - aquele que diz "eu" na canção, e como todo mundo sabe, essa pessoa não é necessariamente eu - está se dirigindo basicamente a Carminho por ela ter gravado canções brasileiras e evitado a palavra "você". O tratamento "você" não é usual em Portugal, não tem o mesmo peso que tem no Brasil. No Brasil, é o tratamento de mais espontânea e direta intimidade. Não é o caso de Portugal.
Eu tive uma conversa com ela sobre isso, meio reclamando, meio perguntando, e ouvi dela respostas muito pertinentes e que justificavam em grande parte a decisão dela de evitar o "você" nas canções brasileiras e, ao mesmo tempo, enriqueceram a minha própria argumentação. Essa canção é um passo a mais no caminho dessa conversa entre eu e Carminho, que, pra mim, é essencial, porque é a conversa entre Brasil e Portugal. Ou seja, uma conversa dentro da história da língua portuguesa.
E Paulinha [Lavigne] sugeriu que ela participasse da gravação da canção, que eu já tinha começado a gravar e que se dirige a ela. Curiosamente, depois que a canção já estava pronta e com o título "Você-Você", me disseram que o Chico Buarque tem uma canção que chama "Você, Você".
Queria que você explicasse e comentasse o trecho: "Tu és você, sou você/ Eu e tu, você e ela/ Ary, Noel, Tom e Chico/ Amália, blues, tango e rumba/ Atabaque e bailarico/ Peri, Ceci, Ganga Zumba".
Explicar isso é quase impossível, porque é muito denso. No final, a letra fica mais radicalmente poética. "Tu és você" já é a base da nossa discussão, é um resumo da música e da história toda. Quase virou o título para não ficar parecido com o do Chico Buarque. Mas fiquei com pena de gastar essa frase que vem no meio da canção. E, no fundo, eu gostei de ter uma canção com título que é basicamente igual ao de uma canção do Chico.
Então, "tu és você" já é uma síntese do negócio todo de "sou você", ou seja, quero que você me chame de "você". Ao mesmo tempo, somos a mesma pessoa porque ambos falamos português. "Eu e tu, você e ela", porque "ela" é a terceira pessoa. E, no fim das contas, depois de dizer "Noel, Ary, Tom e Chico", quatro grandes compositores brasileiros, vem Amália [Rodrigues, cantora portuguesa]. Esse "ela", de uma certa forma, já é Amália. E a Amália não aparece como uma pessoa, aparece como um gênero: "Amália, blues, tango e rumba". É como se Amália fosse o fado, entendeu?
E o tema "AméricaÁfrica" volta no final. Depois de "Amália, blues, tango e rumba/ Atabaque e bailarico" - quer dizer, África e Portugal -, vem "Peri, Ceci" - Peri é índio, Ceci é filha de portugueses, é do romance O Guarani, que também virou a ópera brasileira mais conhecida no mundo -, e finalmente "Ganga Zumba", que foi o primeiro líder do maior quilombo na história da escravidão no Brasil. Aí termina a explicação dessa estrofe cheia de coisa.
No que você escreveu sobre o repertório, tem um dado muito interessante que eu vou ler: "Pedro, filho de um casal amigo e querido, me ouviu dizer 'não vou deixar', na noite em que terminava a contagem dos votos da eleição presidencial de 2018, e disse a seu pai Mauro e sua mãe Aline: 'Ih, vovô tá nervoso'". Achei muito bom e bonito.
Nós estávamos vendo a contagem dos votos, e vendo que Bolsonaro estava ganhando, e muitas pessoas ficaram angustiadas. E eu disse: "Mas ele não vai fazer o que ele quer fazer com o Brasil porque eu não vou deixar!". Falei com muita veemência na hora, e aí botei na letra da música.
"Não Vou Deixar" é como se fosse uma música de amor, mas na verdade tem uma motivação política. Por isso aparece a frase, quase escondida, "apesar de você", por causa do samba de Chico. Sinceramente? É a música que eu mais gosto no disco.
Por quê?
Porque adoro aquele riff de piano que o Lucas fez. E foi curioso, porque não é das coisas que ele mais gosta, mas ele terminou fazendo a meu pedido e fazendo melhor do que eu esperava. Depois, a gente pediu a Jaquinho [Jaques Morelenbaum] pra fazer um solo de cello, que ficou lindo. Tem algo de nordestino, mas também uma entrega na volta do canto. E, depois, entra um funk estilizado com o violãozinho, e eu faço: "Não vo-ou deei-xar!". Adoro essa faixa.
"Em 2018 e 2019, o nome mais escolhido pelos pais em todo o país foi o composto Enzo Gabriel. Li matérias sobre isso nos jornais e fiquei obcecado. Quis cantar o novo nome e pensar nos milhões de brasileiros que foram registrados assim".
É isso mesmo. Eu vi nos jornais que foi o nome mais escolhido, aí fiz uma canção me dirigindo a qualquer um deles ou a todos. Falo que a figura pode ser Yanomami, luso, banto, um negro de olho azul, guenzo. Eu gosto que tem "guenzo", uma expressão que se usa em Pernambuco e na Bahia, que é o menino fraquinho.
A pergunta a todos e a cada um deles é: qual será o seu papel na salvação do mundo? Gosto muito dessa canção, e entrou a sanfona do Mestrinho deslumbrantemente. Quando entra no meio solando, pra mim, arrebata o coração.
"Pardo" já existia, foi gravada pela nossa querida Céu, e você regravou. Conta a história dessa composição.
A Céu me pediu uma canção, e eu fiz essa pra ela cantar. Eu imaginei por causa da palavra "pardo", que vem sendo muito usada e que, na verdade, eu conhecia de casa. Porque eu sou pardo, né? Meu pai era mulato e minha mãe parecia uma indiana. E ela até foi registrada oficialmente, "cor parda", e ela ria disso um pouco. Hoje, se usa muito: "negros e pardos". Então, eu visualizei uma cena de amor de um pardo com um homem negro e fiz a letra.
E temos, nessa faixa, o grande Letieres Leite, uma das figuras mais importantes das últimas décadas ao trazer a herança afro-brasileira pra dentro da música popular brasileira.
O Letieres é uma maravilha. Quando a gente concluiu a base toda - com Marcelo Costa fazendo a percussão, ele sozinho fazendo um Olodum inteiro -, depois de tudo pronto, aí a gente mandou pra Letieres. E Letieres, na Bahia, fez os arranjos com metais. Evidentemente ficou lindo, né?
O disco tem tantas referências da música brasileira de hoje e de outras épocas, isso foi intencional ou foi naturalmente um desejo seu?
Foi vindo, começou com os nomes de "Meu Coco". Nomes de mulheres, depois nomes de pessoas e, finalmente, nomes de compositores, que apareceram em outras canções também. Quando chegou na "GilGal", aí veio uma linhagem mais de compositores e músicos negros, né? No entanto, o Carlinhos Lyra está no meio. Porque ele era o favorito de Gil quando nós nos conhecemos no mundo da bossa nova. Então, o nome dele veio espontaneamente no verso.
E termina com Tincoãs, um dos grandes grupos da música baiana, da tradição afro-brasileira.
É, uma turma maravilhosa. Eu adoro, sempre adorei, e veio na minha cabeça. E "Djavans" vem no plural, né? "Pousa em Djavans".
Por quê?
Porque Djavan se multiplicou pelo Brasil. Você chega na praia de Copacabana e tem um pessoal tocando, num bar em Belém do Pará, em Natal, em Porto Alegre. Tem sempre alguém cantando ao vivo, de noite, reproduzindo o Djavan. Então, Djavans é uma pluralidade.
"Nossas almas irmãs" é falando de eu e Gil e Gal. Porque "GilGal" é uma palavra bíblica, mas junta os dois nomes. É curioso que haja essa palavra. E "Ele me ensinou/ O sentido do som" é Gil, né? Aí vem de Pixinguinha a Djavans. E "Nossas almas irmãs/ Rasgaram manhãs", eu, Gil e Gal cantando, digamos abrindo vozes nos Doces Bárbaros, né? Mas sem chegar aos pés dos Tincoās.
Uma canção desse disco já era conhecida através de uma live que você fez. É praticamente uma homenagem a um dos seus netos, é?
É, ao meu netinho mais novo, o Benjamim, filho de Tom, que cantava muito. Agora acho que já não canta, já está muito grande pra fazer isso, não sei. Ele dava um gemidinho repetitivo, e já meio melódico, pra se fazer dormir. E eu fiquei muito impressionado. Porque já criei três filhos, eu ninava todos eles e cantava, mas nenhum deles cantava. Nunca vi isso. E o Benjamim fazia até dormir. Aí fiz uma música sobre isso, "Autoacalanto".
"Pensei no amor vivido. Origem libanesa. Da cor que meu irmão Rodrigo destacava. Descoberta da flor de onde veio o nome desse tom de magenta". Fala um pouco da composição de "Ciclâmen do Líbano".
É uma canção de amor. O ciclâmen é uma flor do Líbano, bonita, com uma cor magenta. E eu conhecia "ciclamen" como o nome de uma cor, depois fiquei sabendo da flor. Então, a canção é sobre uma mulher de origem libanesa com esse nome. Eu acho que tem uma conotação sexual, e quis fazer aquela "marcha caetaneada", mas mais lenta, pro ficar mais no âmbito do gostoso.
Pedi a Jaquinho pra escrever um negócio de cordas, dei umas sugestões e terminou ficando mais bonito do que eu esperava. Ele faz uns fraseados que tem a coisa do Oriente Médio e tem algo de Webern, porque eu pedi a ele pra ouvir, e o resultado foi o que eu sonhava. Botei como segunda faixa do disco porque achei que ficou como a realização de uma total beleza.
Sobre a canção "Cobre", você disse: "Cor de pele de baiana que concorre com os reflexos do sol no fim de tarde do porto da Barra".
É, isso mesmo. É sobre uma pele de menina que tem cor de cobre. E o Jaquinho Morelenbaum ficou louco pela música, porque ele é muito romântico. É a canção romântica do disco, mais do que "Ciclâmen do Líbano". E aí ele fez um negócio com a melodia tocada pelas cordas, uns contrapontos emocionais. É a favorita dele, a que mais emocionou Jaquinho.
"Noite de Cristal" foi gravada pela Bethânia, em um álbum da década de 1980, e você a resgatou. Como foi?
É, Bethânia me pediu pra gravar e disse: "Você devia gravar aquela música 'Noite Luzidia'". Ela própria lembrou de um dos versos, mas não do título. O título é "Noite de Cristal", "Noite Luzidia" teria sido melhor.
Mas é que, na verdade, essa música é de uma lembrança minha, e que também é de Bethânia. Na casa onde a gente cresceu em Santo Amaro, a maioria dos quartos, onde eu dormia, por exemplo, não tinha forro, era direto nas telhas. E sempre, em cada cômodo, tinha uma telha de vidro, pra que entrasse o sol durante o dia. Então, você podia ver a lua às vezes, ou somente a luz da lua.
É sobre isso, sobre aquela experiência de estar na cama de noite e ter a lua nua na telha de vidro. Ela lembrou da música e pediu pra eu relembrá-la, porque a música não chegou a ficar conhecida, que eu saiba. E quando eu fui ouvi-la, porque eu não lembrava, achei bonita pra caramba.
Ouvindo o disco, tive a impressão de que transmite uma ideia de muita felicidade e satisfação artística por ter conseguido produzir um disco nessas condições, ainda na pandemia, em isolamento social. Você conseguiu fazer um disco na sua casa, com grandes amigos, parceiros de longa data. Felicidade plena nessa produção, Caetano?
Olha, felicidade intensa, muitas alegrias, e, no fim das contas, um contentamento muito grande por ter conseguido fazer. Porque os amigos vieram, mas um de cada vez. Pouco a pouco, a gente foi somando. Alguns gravaram à distância, as orquestras foram todas à distância. Tudo feito aos poucos. Mas quando foi ficando pronto, eu senti que é um disco com uma consistência, que vale por ele mesmo. Isso me dá realmente uma alegria muito profunda.