Ideia de democracia racial não deve ser desprezada, diz Caetano
Entrevista para a Folha de S.Paulo (6 de agosto de 2022)
Por Claudio Leal
Clique aqui para ler no site original
Caetano Veloso em 1979, em foto publicada no livro "Thereza Eugênia: Portraits 1970-1980" (Editora Barléu).
Em entrevista à Folha concedida logo depois da finalização de "Meu Coco", em julho de 2021, Caetano Veloso afirma que o álbum retoma o tema da mestiçagem em tom de exaltação, mas carrega algo de autoirônico em sua forma. O mito da democracia racial, diz, também pode ser visto de maneira positiva, como um horizonte que enriquece a experiência de vida.
Caetano Veloso decidiu não dar entrevistas para falar de seus 80 anos. Preferiu comemorar com um show em uma live que vai ao ar neste domingo (7), no Globoplay e no Multishow, às 20h30, e continuar se concentrando na turnê de "Meu Coco", seu álbum recém-lançado, que reafirma sua confiança em um destino grandioso do Brasil.
Sua preocupação se dirige também para as eleições de outubro. Ele já anunciou seu apoio a Lula (PT), que lidera a corrida presidencial, embora preserve seu interesse pelo candidato Ciro Gomes (PDT).
Em julho do ano passado, logo após a finalização de "Meu Coco", ele concedeu este depoimento, que permaneceu inédito, sobre a gênese das canções e suas ideias sobre o Brasil. Em sua casa, no Rio, falando por videoconferência, analisou seu ofício de compositor, o diálogo com João Gilberto, o mito da democracia racial, a riqueza da miscigenação, o retrocesso de Jair Bolsonaro e o caráter vanguardista do funk. É uma panorâmica de seu pensamento atual e de sua utopia brasileira.
"Meu Coco" é uma resposta ao momento de descrença no Brasil, que atravessa vários horrores políticos, sociais, ambientais, pandêmicos. A canção reafirma sua crença nas possibilidades do país no mundo. No centro dela está uma frase de João Gilberto: "Somos chineses". O que representa esse enigma do Brasil chinês?
Só o João Gilberto poderia me dizer essa frase, e ela se manter tão enigmática quanto quando ela foi dita. Foi quando ele me chamou em 1971 ao Brasil, para vir gravar com ele e Gal.
Depois que a gente gravou em São Paulo, viemos para o Rio. Aí, no hotel onde ele estava conversando comigo, falando para caramba, Gal perguntou para João: "Vocês ouviam Chet Baker?". "Ouvíamos, Gracinha. Ouvíamos." "Você gosta?" "Gosto, gosto, mas é muito americano burrão. Americano é muito burrão." Ele falava desse jeito. "Nós somos diferentes, Caîtas. Nós somos chineses." Era uma coisa muito densa, porque tem muita coisa aí. João tinha noção.
Ele conversava como se fosse um poeta. Às vezes como um satirista ou um sádico também, dizendo mal de outras pessoas, outros artistas, mestres dele e nossos. Ele podia ser muito mau. Ou muito luminoso. Mesmo quando era mau, era luminoso, porque apresentava com muita graça a deficiência de gênios da música brasileira. Por outro lado, ele falava coisas que eram como que revelações poéticas, porque elas valiam por si. Você não pode traduzir ou meramente explicar. É aquilo.
Então, esse "somos chineses" que ele me disse ficou em "Meu Coco". É uma canção que tem esse aspecto que você falou. É um samba troncho exaltação. A levada é quebrada. Fizemos eu e Lucas [Nunes] tudo. Lucas tocando baixo e violão. Ele complementou ainda com uma guitarra em cima. Eu tinha pensado em Thiago Amud desde cedo para escrever o arranjo para orquestra. Ele fez brilhantemente, porque ele é um músico incrível.
Em "Meu Coco", você diz que o Brasil é "uma nação grande demais para que alguém engula". Como você situa essa canção em um momento de reversão da crença no país?
"Meu Coco" é uma música que rediz algumas coisas que eu venho dizendo ao longo das décadas. Não é uma síntese, é uma cascata de referências rápidas a coisas que eu venho dizendo já em outro patamar, em outro estágio, porque é uma canção que tem um ritmo rápido e muitas palavras.
Ela trata principalmente dos nomes que as pessoas dão aos seus filhos no Brasil. Ela até aponta para outra canção que trata só de um nome, o nome mais posto em criança no Brasil em 2019, que é "Enzo Gabriel". Ela é uma espécie de samba-exaltação que tem uma gota de autoironia.
A canção "Pardo" menciona a questão da mestiçagem. Isso está presente na nave-mãe "Meu Coco", que tem os versos "somos mulatos, híbridos e mamelucos/ E muito mais cafuzos do que tudo o mais". Essa é uma questão recorrente em sua obra. Você acredita que a miscigenação brasileira deveria ser vista com mais orgulho?
"Meu Coco" retoma esse tema da mestiçagem, que de fato aparece na canção "Pardo", que está no disco e já foi gravada por Céu. "Meu Coco" retoma em um tom de exaltação. Como eu estava falando antes, é como se fosse um samba-exaltação, que tem algo de autoirônico na própria forma, no todo, inclusive para que ele não seja um vulnerável samba-exaltação, como tantos outros.
"Aquarela do Brasil", do Ary Barroso, muitíssimo importantemente, começa por chamar o Brasil de "mulato" logo na abertura: "Brasil, meu Brasil brasileiro, meu mulato inzoneiro". Tem sido ao longo da minha vida o hino nacional brasileiro extraoficial, a música brasileira mais conhecida no mundo, só competindo com "Garota de Ipanema".
Essa canção que eu fiz agora, "Meu Coco", repete essa exaltação da mestiçagem. Esse "somos mulatos híbridos e mamelucos/ e muito mais cafuzos do que tudo o mais" me veio de um livro que eu li de Mércio Gomes, "O Brasil Inevitável" (Topbooks).
Mércio diz que a miscigenação se deu, no fundo, mais entre negros e índios em áreas de pesca. Acho bonito que isso seja um sonho do Mércio ou uma informação sociológica, histórica, precisa. Isso me toca. Porque, na verdade, é um desejo de sublinhar um aspecto da miscigenação que saia do padrão "o senhor branco estupra a escrava negra".
Toda a miscigenação seria isso, e tem havido muita discussão em torno disso ao longo do tempo. A gente sabe tudo o que se discutiu sobre "Casa-Grande e Senzala", a reação contra Gilberto Freyre e esse apelido de "democracia racial", que ficou como uma expressão muito atacada. Para mim, não funcionou muito, porque eu acho que a democracia tout court, não a democracia racial, é um mito, mas "o mito é o nada que é tudo". Não é por ser mito que você despreza a ideia de democracia racial.
Essa ideia do Brasil como um acontecimento bastante intenso de miscigenação é uma ideia, para mim, muito rica. No livro do Mércio, tem esse negócio do cafuzo, ou seja, de uma liderança negra e indígena na miscigenação maciça do Brasil, por causa dos pequenos aglomerados praieiros ou ribeirinhos ligados à pesca, onde negros e índios se misturaram. Por isso, eu pus "muito mais cafuzos do que tudo o mais" na letra do "Meu Coco", entendeu?
Eu conheço toda a crítica que se faz à miscigenação e ao mito da democracia racial, mas eu sempre respondi ao longo dos anos que a democracia em si é um mito, nunca realizada em lugar nenhum, e o pouco que se experimenta dela é muito importante. Você ter como horizonte esse mito democrático enriquece a experiência de vida e as forças que se mexem na sociedade.
No caso da democracia racial, eu acho que também pode ser vista dessa maneira positiva e não apenas da maneira negativa, um pouco americanizada demais, que cresceu no Brasil nas últimas décadas. Eu respeito muito. Eu acho que o que aconteceu, essa racialização mais americana, enriquece a questão, nos dá mais força para fazer acontecer, e não deve significar uma destruição de tudo o que aconteceu com o Brasil e que pode dizer muito ao mundo.
Reaparece na canção "Enzo Gabriel" como salvação do mundo, o Brasil tendo uma missão de salvar o mundo. Mas aparece de uma maneira meio melancólica na música, que vem quase como um lamento. É como quem está dizendo isso, mas está vivenciando uma grande tristeza.
"Meu Coco", que é mãe de tudo isso, de "Pardo" e "Enzo Gabriel", tem dentro de si esse reconhecimento da grande tristeza que estamos vivendo. A canção foi feita em 2019. Nós já estávamos nas trevas que se instauraram politicamente no Brasil, em 2018, e sabemos que dificuldades teremos para sair dessas trevas e de atravessar esse período de trevas políticas.
Então, a canção poderia ser um pouco vulnerável por parecer otimista, e um otimismo ligado à miscigenação, a coisas que já vinham sendo combatidas por quem tem responsabilidade social e política mais intensa. Isso poderia transformar a canção "Meu Coco" e tudo que sai dela, o meu disco inteiro, a minha cabeça toda, fazer de tudo isso algo mais vulnerável. No entanto, eu sei que a canção tem uma autoironia violenta e interessante.
Eu repito várias coisas que eu disse ao longo das décadas, inclusive terminando por unir, mais uma vez, Zumbi com Zabé, Zumbi com a princesa Isabel. Porque se tem uma coisa com que eu me sinto problemático é com esse desprezo pela figura da princesa Isabel.
Eu não gosto disso. Eu acho um empobrecimento da questão da formação da sociedade brasileira de fato. Eu cresci vendo os negros de Santo Amaro e meu pai conosco indo para praça do Mercado, todo ano, celebrar o 13 de Maio. As pessoas cantando em louvor da princesa Isabel e dançando, batidas de candomblé, cânticos, sambas de roda. Ninguém vai arrancar isso de mim.
O disco também traz muitos nomes.
Meu disco fala nome de gente pra caramba, não só "Meu Coco". Outras canções falam de muitos artistas de agora. Eu vejo muito TVZ, no Multishow, e vejo o que está sendo sucesso. Muitos nomes eu gravo, outros eu não gravo e, na internet, eu procuro muita coisa de funk. Zeca [Veloso, seu filho] também me mostra uma porção de coisa de rap, de trap. Supercriativo.
Não só um poeta criativo como Augusto de Campos tirou partido poético das consequências do que fizeram os anjos tronchos do Vale do Silício, do desenvolvimento tecnológico da cultura virtual. Também os poetas das favelas do Rio e depois aqueles que os seguiram em Santos e em São Paulo. Hoje em dia, o cara faz com o computador. É o negócio da originalidade do funk carioca que o Hermano Vianna viu no primeiro momento.
Eu me lembro da crítica medíocre que tinha na Folha de S.Paulo, uns caras chatos pra caramba, metidos, dando opinião informados por essa coisa americana. Desprezavam com desdém, desrespeito e agressão ao funk. Me lembro nitidamente lendo no Folhateen, sei lá como chamava, ou na própria Ilustrada. Eu briguei muito com essa gente e brigo. A briga é a mesma.
Tem funks inventivos, com jeito de vanguarda, os silêncios, a entrada dos sons eletrônicos, como são usados. Os silêncios incríveis, que dão uma composição de espaço sonoro e que têm muito a ver com experimentos de vanguarda. Isso nas favelas do Rio de Janeiro. Depois vai para Santos, cresce em São Paulo e vai dando em outra coisa, influencia no rap, no trap.
Cara, vou lhe dizer, meu filho Tom, que tinha acabado o secundário quando começamos a fazer o "Ofertório", no momento em que a gente cantava para ele dançar passinho, ele dançava espetacularmente. Um menino que cresceu em uma escola da zona sul. Aquilo é liderado por vanguardistas da favela.
Isso precisa ser respeitado historicamente. Você tem que sentir a força disso. Quando eu faço uma canção como "Meu Coco", eu estou dizendo "sinto a força disso, isso merece respeito e atenção". Com isso, a gente segura essa porra e salva o mundo!
Uma vez me perguntaram se o Brasil tem jeito. Eu disse: "Tem. Porque eu quero". Depois, quando se elegeu um sujeito com um papo tirano de dizer que o AI-5 era bom e devia ter matado mais, eu disse: "Eu não vou deixar ele fazer o que ele quer". Não vou deixar! É isso que cada alma, cada coração concentrado de brasileiro deve sentir, ter coragem de sentir e pôr em prática, prática poética que seja. Mas que ponha.