Tudo a declarar

Entrevista para a Revista Serafina (30 de janeiro de 2011)

Por Morris Kachani e Artur Voltolini

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Um homem bonito e imberbe (Bin Laden o acharia mais bonito se cultivasse sua barba?), que aparenta ter bem menos que seus 68 anos, vestido de forma casual, com um casaco Diesel, e que não anda com telefone celular. Com uma prosa livre e gostosa, esse Caetano, que há mais de 40 anos age ativamente na formação da cultura e da sociedade brasileira, recebeu Serafina em seu amplo apartamento na praia do Leblon, com uma varanda de frente para o mar. Nas paredes brancas, nada de quadros ou fotos. De um lado uma pequena biblioteca, do outro os sofás, também brancos, e, sobre a mesa de centro, alguns livros, entre eles um do fotógrafo Mario Testino com imagens do Rio de Janeiro e uma enorme fotobiografia do diretor de cinema Stanley Kubrick.

Lá também estava o músico e escritor Jorge Mautner, 70, eterno companheiro. Quando questionado sobre o por quê de todos perguntarem sobre tudo para Caetano, Mautner responde: "Ele é muito inteligente, tem uma profunda erudição". Caetano incorporou esse papel por conta do hábito de falar publicamente o que lhe vem à mente.

Ambiguidades

As trajetórias de Caetano e da Tropicália se misturam e são marcadas por fortes contradições. Pense numa moqueca. Substitua o peixe pela cultura popular nordestina, pela bossa nova e o samba carioca. Os camarões, troque pela música erudita e o jazz. Em vez de leite de coco, derrame o movimento hippie e o rock'n'roll. E, no lugar do azeite de dendê, os discursos da Primavera de Praga e de maio de 68 na França. Despeje o caldo, não sobre o arroz, mas sobre a vontade de mudar os costumes políticos, religiosos e sexuais do Brasil. Está servida a Tropicália.

Talvez dessas contradições tenha surgido o bordão "ou não", tão atribuído a Caetano. Paula Lavigne afirma: "Nunca ouvi isso sair da boca dele, deve ter sido inventado pela capacidade que Caetano tem de relativizar as coisas".

Cercado por mulheres

Caetano nasceu cercado por mulheres que o mimaram: dona Canô, a avó Júlia, suas cinco irmãs -sendo a mais nova Maria Bethânia-, e as três primas solteiras de seu pai. Embora não seja tão conhecido como dona Canô, seu pai, José Teles, era muito presente. Em Jenipapo Absoluto, Caetano homenageia a seu pai, chamando-o de "meu tanino, meu mel". Sobre ele, Caetano diz: "Era um mulato firme, doce e altivo. Eu o adorava e sinto muita falta dele."

Paula Lavigne - sua última mulher, mãe de seus dois filhos mais novos e sua atual empresária- tinha 13 anos quando conheceu Caetano, então com 40. Ela é considerada a responsável por organizar a carreira e, principalmente, o patrimônio de Caetano. Para se defender do rótulo de mulher controladora, Paula diz: "Não mando em Caetano, mando nas coisas dele". Já Caetano, questionado sobre a administração de seu patrimônio, respondeu: "A maioria dos que têm vocação artística pensa muito pouco em dinheiro. Eu até tentei ser melhor administrador, mas não dou bola nenhuma ao dinheiro. Sou muito aristocrático, não acho que eu possa depender de dinheiro. Mas acho que isso é uma alienação minha".

Apesar de ser a favor da liberação das drogas, Caetano nunca gostou delas. Já tomou cerveja, mas cortou o álcool, odiou o lança-perfume, ficou traumatizado em seu primeiro contato com a maconha, e sobre a cocaína, que diz ter provado apenas uma vez, afirma: "Eu não gosto do ambiente que se forma em torno da cocaína. Detesto! Se eu pudesse eu matava a cocaína". Em 1968, experimentou Ayahuasca, bebida alucinógena indígena, que começou bem, evoluiu para uma experiência mística, onde disse ter visto algo parecido com Deus, e terminou mal, com uma sensação de fim e de morte. Caetano não gosta de perder o controle sobre si.

Vindo de uma família muito católica, ele ia à missa e não dormia sem antes rezar. Quando foi a Salvador, ficou mais próximo do candomblé, onde se iniciou como filho de Oxóssi em casa de Mãe Menininha, no Gantois. Porém, nunca recebeu seu orixá: "É o tal negócio de perder a consciência. Eu não queria entrar em transe. Ficava com medo".

Caetano, que hoje se diz ateu, afirma estar adorando tudo no início do governo da presidente Dilma Roussef: "Dilma tirou a Bíblia de cima da mesa e o crucifixo da parede, eu gostei muito. Lula era mais carola...", diz. Gostou também da crítica de Dilma à falta de respeito aos direitos humanos no Irã. Ao comparar a política externa de Dilma com a de Lula, Caetano se inflamaria pela única vez durante a entrevista: "E quando o Lula apoiou aquele presidente do Irã? Isso é ridículo. Isso é abominável. Lula ir para Cuba, enquanto um dissidente preso fazia greve de fome! O sujeito morre e ele ainda sai arrogantemente, desumanamente apoiando aquelas pessoas sádicas como Fidel Castro e Che Guevara, que mataram mais do que a ditadura na Argentina! Esses caras adoravam um fuzilamento".

Palavra de mãe

Dona Canô, mãe de Caetano, Bethânia e mais seis filhos, tem 103 anos e mora em Santo Amaro da Purificação, na Bahia. Mesmo com audição debilitada e voz frágil, mantém a lucidez e o senso de humor. Católica fervososa, adora acompanhar missas pela TV. Recentemente, Caetano levou Natália - atriz e bailarina argentina - para conhecê-la. Gostou da nova namorada do filho? "Gostei muito e tratei bem. Aliás, tratei muito bem de todas as mulheres de Caetano, das que prestavam e das que não."

Ao nascer, a mãe de Caetano notou uma intrigante letra "v" formada por veias na testa do filho. Quando o médico viu, sentenciou: "É o símbolo da vitória, tratá muita felicidade e sorte." E assim foi. Seu pai, José Teles, avesso ao jogo de azar, comprou no final daquele ano uma rifa e ganhou o prêmio de 300 contos, o que equilibrou as contas da populosa família e garantiu a compra da casa.

Caetano era um menino tímido e quieto. Não comia quase nada, apenas café com leite, pão e farinha láctea. Aos três anos aprendeu sozinho a ler, aos oito começou as aulas de piano - que aprendia com facilidade - e aos doze musicou um poema para a apresentação dos meninos da escolinha em que a primogênita Mabel dava aulas. Deliciava a família com imitações de Amália Rodrigues, e era aficionado por Maysa e Brigitte Bardot.

Caetano tem três filhos religiosos. Sobre Moreno, que tende ao catolicismo, diz: "Se o papa João 23 fosse santo, ele seria devoto". Seus dois filhos mais novos, Tom e Zeca, são evangélicos e frequentam a igreja Universal do Reino de Deus. Sobre um tropicalista gerar filhos evangélicos, Caetano diz: "Minha geração teve que romper com a religiosidade imposta, a deles teve que recuperar a religiosidade perdida".

Caetano diz ser muito bem recebido quando vai assistir a seus filhos tocando nos cultos e afirma enxergar o bem que a religião fez aos dois. Paula Lavigne comenta: "Zeca encontrou um conforto na religião. Qualquer coisa que faça bem aos meus filhos faz bem para mim".

E sobre o crescente poder dos evangélicos, no Congresso Nacional e na mídia, relativiza: "A Record não tem mais rabo preso com o bispo do que a Globo tem com o cardeal".

Caetano acredita que tanto o pensamento da esquerda militante quanto a moral das religiões repreendem a religiosidade e a sexualidade. Ao ser questionada sobre se a sexualidade ambígua de Caetano a deixava insegura, quando casada com ele, Paula Lavigne respondeu: "Sua bissexualidade é superdimensionada, é muito mais uma bandeira do que um fato, e Caetano carrega um saco de golfe em suas costas, cheio de bandeiras que ele defende de forma apaixonada. Na prática, ela não existia". Jorge Veloso, assessor e sobrinho-neto de Caetano, resumiu assim: "Artista é anjo".

Rio é Freud

Caetano está compondo as canções e produzindo o novo CD de Gal Costa em Salvador. Ele também lança, neste mês, o DVD do seu show Zii Zie, gravado no Viva Rio em outubro de 2010. A banda é formada pelos jovens cariocas Pedro Sá (guitarra), Ricardo Dias Gomes (baixo) e Marcelo Callado (bateria), e a ótima direção de arte é assinada por Helio Eichbauer: uma simples asa-delta bem iluminada à frente de um grande telão de LED onde são reproduzidas imagens do Rio de Janeiro. O DVD emana uma forte identificação com a cidade. Sobre o otimismo em relação ao futuro do Rio, com as UPPs, Copa do Mundo e Olimpíadas, Caetano diz: "O Rio celebrar-se sem estar resolvido é a história desta cidade. Nos anos 60, quanto mais o Rio exibia sua sofisticação, mais ele apresentava suas limitações para que o Brasil se expandisse. São Paulo, ao contrário, significava a expansão real, a coragem de experimentar, de sentir-se diretamente no mundo". Talvez por isso, Caetano considere São Paulo mais tropicalista que o Rio. "É, aquilo não poderia ter acontecido no Rio. Mas a verdadeira razão de eu ter saído de Salvador e ido para o Sudeste é porque eu queria fazer psicanálise e não havia psicanalistas em Salvador. Eu disse isso ao João Gilberto, e ele falou: "É que na Bahia não se precisa de psicanálise".

Caetano continua até hoje frequentando seu psicanalista e flertando com Freud e Lacan.

Tristeza não tem fim

Paula Lavigne diz que a profundidade com que Caetano lida com as questões mais complexas da vida faz a convivência com ele ser difícil: "Ele nunca vai ser completamente feliz, só a ignorância é feliz". Ela afirma que Caetano pode ficar muito angustiado, e que sofre de insônia por pensar tanto. Diz que já procuraram vários especialistas, mas que até hoje é difícil ele dormir antes das seis da manhã.

Sua irmã Mabel diz que, embora Caetano seja uma pessoa muito alegre, sempre percebe um "fundinho de tristeza" nele: "Ele lutou tanto para ser reconhecido e famoso... E agora que é... Eu só pediria uma coisa a Caetano, para ele ser completamente feliz".

O BRASIL PERGUNTA

É possível rimar tecnologia com poesia ou a difusão da ética tecnológica tende a tornar mais tristes os trópicos?
(Nicolau Sevcenko, professor de história e cultura brasileira em Harvard. Música preferida: London London).

CV: Acho que é possível. Gutemberg não acabou com a poesia, não vai ser Steve Jobs ou Bill Gates a fazê-lo. 

Tu te acostumbraste?
(Karina Buhr, cantora pernambucana. Música preferida: Nine Out Of Ten).

CV: No me acostumbro nunca. 

Em várias entrevistas eu li você mencionando sua relação com artes plásticas. Por que essa atração?
(Cildo Meireles, artista plástico. Música preferida: Alegria Aleggria)

CV: Eu pintava e desenhava quando criança e adolescente. Cheguei a expor, junto com o escultor Emanoel Araújo, em Santo Amaro. Cresci certo de que tenho mais talento plástico do que musical. Mas a música me agarrou. 

Cadê o disco da Gal que você prometeu?
(Tom Zé, compositor baiano. Música preferida: muitas, desde É de Manhã até Tropicália).

CV: Está em fase de feitura, Já compus 8 músicas, para as quais ela já gravou vozes guias. Para a maioria delas, Moreno sugeriu Kassin nas programações - e ele já está atuando. Convidei o grupo carioca Rabotnik para gravar uma delas. Pedro Sá, Donatinho, Davi Morais, Jaques Morelenbaum vão gravando coisas ao vivo em cima da base eletrônica. Estou compondo mais umas quatro e talvez em março o disco esteja pronto. 

Você fez Tropicália ou Panis et Circensis com Tom Zé e Gil. Por que ao longo dos anos você se distanciou de Tom Zé?
(Antonio M. Ferreira de Souza, porteiro noturno de um prédio em SP. Música preferida: Sampa).

CV: Mesmo em Salvador, antes do tropicalismo, Tom Zé não era alguém muito próximo meu, como Gal ou Gil. Mas eu o adoro. Ele é um caso à parte. Tem personalidade fascinante, talento de artista, informação sofisticada. Quando Paula Lavigne o viu no teatro Vila Velha, me disse: "Você é legal, inteligente e tal, mas isso aí é outra coisa: isso aí é um gênio". David Byrne, ao ouvir os discos incríveis que ele fez nos anos 70, chegou, é óbvio, à mesma conclusão.

Por que Maria Gadú?
(Marcus Preto, repórter da Ilustrada. Música preferida: Odeio).

CV: Por que não? Não apareceu nenhum "não" na minha cabeça quando os caras da Globosat me convidaram para cantar com ela numa inauguração fechada. Muito menos me abalou a óbvia suposição de que moderninhos reagiriam como que diante da confirmação de que sou chato e MPB. A Gadú não é chata. Chatos são eles.

Você não quer trabalhar em Cacilda!!! com sua nova namorada Natalia?
(Zé Celso, diretor de teatro. Música preferida: não conseguiu escolher apenas uma).

CV: Eu adoraria. Você sabe como amo o que acontece no seu teatro. Não sei muito é sobre o meu tempo ou o dela. 

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