Sons, palavras e imagens - Entrevista Caetano Veloso
Caetano Veloso: Sons, palavras e imagens
Entrevista a Rosiska Darcy de Oliveira e Antonio Cicero
Revista Brasileira - Academia Brasileira de Letras
Janeiro Fevereiro Março 2023 / Fase X - Ano II - Número 114
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Rosiska Darcy de Oliveira – Caetano, neste momento de tantas transformações no mundo e aqui no Brasil, por onde anda o seu pensamento?
Eu tenho sempre muita vontade de pensar. Tenho esse hábito desde menino. Eu gostaria de poder organizar meus pensamentos, a ponto de chegar a poder propor alguma coisa. Mas você sabe que, sendo autor e cantor de canções, eu posso fazer isso até exageradamente em letras de canções, em gestos de palco e entonações de voz, entendeu? E eu termino sendo definido pela confusão que eu crio nessa área do canto e da composição de canções. Mas eu atribuo isso a uma força do próprio Brasil, que me arrebatou, que é a força da canção popular aqui. Eu tinha uma vocação pra me expressar, pra estudar, escrever, pensar, e tinha vontade de unir tudo numa forma que pudesse retratar a complexidade do que se passava na minha cabeça. Então, pensei que eu queria fazer cinema.
R – Você fez o Cinema falado...
Ah, muitos anos depois, mas eu pensei em começar fazendo cinema mesmo, me dedicar a isso, mas a música me tomou com muita força. Pra mim, era uma coisa meio de lado. Eu julgava que os meus companheiros tinham um papel importante a desempenhar na música popular e que eu os ajudaria até eles se firmarem, mas eu iria para outro caminho. Mas nunca consegui. A música popular é mais forte do que esses devaneios.
R – E a sua música é mais forte que você?
Hoje em dia acho que é, porque eu tô mais fraco, tô muito mais velho. Por exemplo, eu fui fazer show em Porto Alegre, e eu tinha tido covid, estava muito debilitado. Estou ainda. Ainda me sinto cansado, quando falo, ou quando faço muitos movimentos, esforço, tomo avião, vou pro aeroporto e subo no palco, canto aquilo tudo e tal. Mas eu terminei chegando a Porto Alegre e fazendo os shows como eu faço, com todo aquele negócio... E eu disse: “Poxa, mas onde eu arranjei essa energia?”. Porque a energia já está espontaneamente direcionada pra aquilo. Então, hoje eu acho que a canção me tomou mesmo. Quando eu estou com quase nada de energia, a que tem vai pra isso. E eu preciso que vá, é uma coisa vital para mim. Eu me lembro de Proust dizendo que, no que escrevia, já não tinha nem prazer, nem interesse, mas tinha que escrever, já no fim do Em busca do tempo perdido.
R – Mas você ainda tem prazer em compor?
Eu tenho, tenho sim. E procuro não compor muito, porque a gente, numa determinada idade, não deve ficar fazendo muita coisa, depois de já ter feito tantas, não é? Porque eu também gostaria de ter sido mais exigente quanto à qualidade, talvez até diminuísse a quantidade de coisas que fiz, mas eu fiz tudo o que me pediam. Gal me pedia uma música, e eu fazia; Bethânia me pedia uma música, eu fazia.
Antonio Cicero – Mas têm muita qualidade. As suas músicas, na verdade, são extraordinárias.
Cicero, eu até posso, hoje em dia, concordar com você um tanto. Mas, à medida que fui fazendo, eu não sentia assim. Sentia que estava deixando passar uma coisa que não me era criticamente satisfatória. Tudo, todas as canções que eu fiz, eu ficava excitado para fazer, existe um prazer em criar, a gente sabe. Mas eu terminava entregando antes de aprovar definitivamente.
R – Que bom! Que bom que ele entregou, não é, Cicero?
Mas eu tava dizendo a Cicero que eu posso concordar um pouco com o que ele disse, porque hoje, com a distância do tempo, eu me esqueço de muitas coisas que fiz. Não me lembro de cor, não estava lembrado de que tinha feito, e, de repente, por alguma razão, eu me vejo diante de uma canção minha de não sei quando e digo “pô, mas é bonita”. Hoje, eu aprovo mais do que eu podia aprovar anos atrás, décadas atrás.
R – E há algum tema que esteja indo lhe buscar para uma composição?
Neste momento, não. Que eu saiba. Pode ser que esteja e eu não saiba. Mas, que eu saiba, não. Eu não estou pensando muito em compor agora. Às vezes, eu estou deitado na cama e demoro para dormir, fico pensando; às vezes, vêm umas ideias. Como o corpo está ali só descansando, as ideias podem vir, mas depois eu esqueço. Não precisa fazer mais canção...
"O BRASIL PODE SALVAR O MUNDO"
R – Caetano, você sempre defendeu e continua defendendo – expressão sua – que o Brasil poderia salvar o mundo. Por quê?
Eu tive necessidade de achar isso desde a adolescência. E encontrei, depois que cheguei a Salvador, esse pessoal ligado ao professor Agostinho da Silva e ligado ao Fernando Pessoa de Mensagem. Na faculdade, o pessoal cultuava muito o Fernando Pessoa, principalmente Álvaro de Campos e coisas assim, versos livres. Mas, desde que li Mensagem, até hoje acho o livro mais denso do Fernando Pessoa. Li aquilo, achei lindíssimo e pouco depois fiz amizade com um rapaz da Bahia, chamado Roberto Pinho, que era um discípulo, mais que discípulo, quase um devoto do professor Agostinho, que defendia essa visão pessoana do sebastianismo português. E isso entrou na minha vida como uma perspectiva que eu posso usar. Minha mente acolheu isso como uma das coisas a que eu posso me referir quando quero ter um pensamento mais abrangente ou programático.
AC – Eu tenho impressão de que é muito mais a Bahia que condensa esse tipo de atitude diante do mundo. A gente vê isso na Bahia, mesmo sem que as pessoas se manifestem verbalmente. Quando eu ia passar o Carnaval na Bahia, tinha essa sensação de que ali havia uma atitude diante do mundo de absorver as mais diferentes coisas, religiões africanas, o catolicismo, e agora, mais recentemente, é que veio o pentecostalismo.
O pentecostalismo e o neopentecostalismo.
AC – No Carnaval, a gente sentia tudo isso misturado.
R – E o Carnaval fala muito sobre o Brasil...
E o Cicero está falando do Carnaval da Bahia, que tem um desenvolvimento muito peculiar, muito forte nesse sentido. Ele é muito antropofágico.
AC – Pensei naquela sua entrevista sobre os evangélicos. Que é muito boa. Esse assunto de religião é uma conversa interessante. Eu mandei pra você um texto do Fernando Pessoa sobre isso.
Maravilhoso aquele texto do Fernando Pessoa.
AC – Sobre como Portugal deve, na verdade, absorver, incorporar todas as religiões. Achei interessante, achei que tem alguma relação com essa entrevista. Não que ele tenha influenciado você.
Mas já tinha ali um resumo do negócio do Fernando Pessoa. Eu não saberia dizer tão bem.
"Quem, que seja português, pode viver a estreiteza de uma só personalidade, de uma só nação, de uma só fé? Que português verdadeiro pode, por exemplo, viver a estreiteza estéril do catolicismo, quando fora dele há que viver todos os protestantismos, todos os credos orientais, todos os paganismos mortos e vivos, fundindo-os portuguesmente no Paganismo Superior? Não queiramos que fora de nós fique um único deus! Absorvamos os deuses todos! Conquistamos já o Mar: resta que conquistemos o Céu, ficando a terra para os Outros, os eternamente Outros, os Outros de nascença, os europeus que não são europeus porque não são portugueses. Ser tudo, de todas as maneiras, porque a verdade não pode estar em faltar ainda alguma coisa!"
Resposta de Fernando Pessoa, à pergunta “O que calcula que seja o futuro da raça portuguesa?”.
(Entrevista à Revista Portuguesa em 1923)
AC – Eu também pensei muito no artigo, até que eu o entreguei pra você. Aí a gente pensa sobre o Brasil que é mais radicalmente aquilo que ele diz de Portugal. O Brasil é muito aquilo.
O professor Agostinho da Silva, que morou no Brasil muitos anos, chegou a ter essa visão do Brasil, como a realização desse Portugal que está naquele parágrafo do Pessoa. Indiretamente, me influenciou muito. Porque, em Salvador, eu ouvi conversas a respeito das coisas que o professor Agostinho falava. Isso me deu uma perspectiva que eu passei a usar também, mas acontece que eu precisava dessa perspectiva, entendeu? Mas é um certo narcisismo também, não é?
AC – Do Pessoa?
Meu. Dele também, mas eu estou falando do meu. Que é você olhar para a cultura na qual você se formou e ver nela alguma coisa de importância global.
AC – Que nem é reconhecido, em geral, pela maior parte das pessoas que vivem neste país.
Não, o Brasil está num momento de tensão extrema em relação justamente a isso, não é? Nós valemos alguma coisa ou não valemos nada?
R – Pois é, mas acreditar que o Brasil pode salvar o mundo, mais do que ser uma necessidade psicológica que você possa ter tido, acho que tem um fundo de realidade. Não é uma fantasia.
Não, não é uma fantasia vazia.
R – Não é, porque o Brasil tem peculiaridades que poderiam, se fossem vistas como valores, responder a essa pergunta, se nós valemos alguma coisa ou não valemos nada.
DEUS CUIDA DE MIM
AC – Caetano, você já teve uma fase mais ateia quando adolescente?
Sim. Olha, mais precisamente, da pré-adolescência até o Tropicalismo eu era mais ateu. Foi no Tropicalismo que eu entrei gritando: “Deus está solto”, “É proibido proibir”. Eu gritei: “Deus está solto”, como se fosse alguma coisa que eu tivesse reprimido, que eu tivesse recalcado até ali.
R – O diabo está solto?
Era uma piada com o diabo. O diabo está solto. Claro. Então é um Deus assim. Mas não creio que eu tenha me tornado um crente. Naquela conversa, acho que eu citei um verso meu que diz muito a esse respeito, verso de tempos atrás, dos anos 1970, que diz assim: “Logo eu que cri que não crer era o vero crer, hoje oro sobre patins”.
AC – Muito bom. Muito bom, doutor.
Esse verso me voltou à mente por causa desse tema e reapareceu, é engraçado, quando o moço da TV Globo veio me entrevistar, a mim e ao Kleber Lucas, o pastor e autor de canções de louvor. Ele fez primeiro uma pergunta a mim: “Como foi que você se uniu ao Kleber e vocês gravaram? Como você aprendeu?”. E eu falei: “Olha, acho que foi Deus”. A primeira resposta que eu dei foi essa, parece uma superironia e uma anti-ironia ao mesmo tempo, não é? É uma coisa curiosa, porque eu não tinha o menor plano de fazer nada parecido com aquilo naquela altura. Nós estávamos empenhados em ajudar a campanha de Lula, e Paulinha tinha tido uma ideia de usar uma canção do Tim Maia, um negócio de chamar as pessoas para votar. Tinha um pouquinho de Lula ali, mas o mero ir votar era o que interessava. Então foi esse Chico da TV Globo que disse: “Olha, tem um pastor evangélico que canta esse tipo de coisa. Ele poderia cantar com você, ele cantaria isso muito bem”. Era o Kleber Lucas; então, ele veio pra cantar a música de propaganda eleitoral. Aí apareceu esse rapaz da TV Globo, que sabia que tinha esse grupo de evangélicos, pentecostais ou batistas renovados, enfim, toda essa coisa nova do protestantismo atual brasileiro.
AC – Que é completamente diferente. Kleber parece o oposto do que eu imaginava que fosse o pensamento dos evangélicos.
É isso que eu quero dizer.
AC – Diferente do protestantismo tradicional, do que primeiro se difundiu no Brasil, que era uma coisa, na verdade, muito reacionária mesmo.
E é ainda muito. É, basicamente. Agora, isso que eu estava contando é que eu descobri através dessa sugestão do Chico, da Globo, que o pastor Kleber Lucas era parte de um grupo minoritário que se opõe a esse reacionarismo. Para eles, esse reacionarismo é inaceitável no que o neopentecostalismo, o pentecostalismo e o protestantismo modernos vieram representar no Brasil. Um reacionarismo que eles não aceitavam, que acham que é basicamente incoerente com o Cristo. E também por uma reação contra o tipo de envolvimento direto na política profissional por parte dos evangélicos tradicionais. Eles são minoritários, mas é uma coisa muito importante que existam dentro do mundo evangélico. Muito, muito, muito importante. Eu descobri isso num segundo, porque eu não sabia de nada. O moço veio pra gravar, eu ia fazer só coro na gravação, só fiz coro. Ele trouxe umas pessoas que fazem coro maravilhosamente bem, mas a gente também cantava junto com o coro. Aí ele, o próprio Kleber Lucas, quando acabamos de gravar, pegou o violão e disse: “Caetano, eu queria que você aprendesse isso”. E começou a me ensinar “Deus cuida de mim”. Foram alguns minutos e eu aprendi, porque ele estava me ensinando e, finalmente, gravamos rapidamente. Então é por isso que eu disse: “Foi Deus”.
R – Caetano, a que você atribui esse crescimento exponencial do protestantismo no Brasil?
Não sei, eu me faço muitas perguntas. Ele não está acontecendo só no Brasil, ele acontece na América Latina, em muitos lugares da África e na Ásia. Eu fiquei surpreso quando fui cantar na Coreia do Sul, com a presença enorme do evangelismo. Na Coreia do Sul. Eu não sabia. Fui lá cantar. E comecei a ver que a coisa é muito presente lá. Então, tem duas coisas, porque o protestantismo é um dos aspectos do começo da era moderna. Você não ter que obedecer ao papa, nem a uma hierarquia, e ler a Bíblia diretamente. Também a imprensa veio junto. E nós, que fomos formados na América Latina, fomos formados no catolicismo.
R – Exatamente.
Mas a realidade do povo, que é majoritariamente negro, pobre e imigrante nordestino para as grandes cidades do Brasil, fez com que ele não se sentisse mais representado pela Igreja Católica. Sem o seu lugar nesse mundo que tem na sua formação a hierarquia católica. E é como se fosse uma chegada retardada de um dos aspectos da modernidade. Mas isso é uma leitura muito esquemática, que aparece na minha cabeça, e é evidente ela não responde à sua pergunta. Há muito mais nuances e questões. A presença da cultura americana, do soft power norte-americano, não é? Ou estadunidense, como se diz hoje em dia aqui na América Latina. É inegável que isso também conta.
Agora, mais próximo dessas pessoas, eu, em poucas conversas com o Kleber e depois com o Leonardo, aprendi quanta coisa aconteceu para a entrada do protestantismo no Brasil, desde os primórdios. Mas também a coisa maior, e que é a maior até hoje, e que se deu em Belém do Pará, através de imigrantes suecos.
AC – Ah, é? Eu não sabia.
Nasceu a Assembleia de Deus, que é a maior igreja evangélica do Brasil, numericamente, mas não é centralizada como a Igreja Universal. Ela é uma igreja de igrejas. O que é, no meu entender, mais coerente com o protestantismo. Cada um pode abrir a sua igreja, e há essa coisa de a pessoa ler a Bíblia diretamente, porque nós, na formação católica, nós não lemos a Bíblia. Nem tínhamos Bíblia em casa. A gente lia o catecismo. E o que o padre mandava dizer, e a tradução que eles tinham feito do que eles tinham lido na Bíblia.
SER FILHO
R – Você teve formação religiosa, quando era pequeno?
Ah, sim, claro, não é? Fui batizado, fiz primeira comunhão. Você conheceu a minha mãe, Cicero.
AC – Religiosa.
Já muito ligada à Igreja, porque não era assim; antes de meu pai morrer, não. Nós íamos à igreja todo domingo porque fazia parte da educação.
AC – Houve uma época em que até papai se sentia na obrigação de nos levar à igreja aos domingos, aqui no Brasil, antes de a gente morar nos Estados Unidos.
R – Eu também durante toda a infância ia à igreja, comungava.
Mas o meu pai, não; nem minha mãe. Meu pai e minha mãe não iam.
R – Não iam à missa?
Era porque a casa era cheia de irmãs de meu pai, sobrinhas de meu pai. As sobrinhas eram mais ou menos da idade da minha mãe. Então, a casa era cheia de mulher da família de meu pai. E muitas eram solteironas, tudo católica, carola, minha mãe, meu pai, não. Minha mãe e meu pai aproveitavam o domingo e, quando todo mundo ia pra igreja, ficavam os dois sozinhos, namorando. Eles eram assim, muito amorosos.
Agora, depois que meu pai morreu, minha mãe voltou pra Santo Amaro e começou a ficar muito ligada à Igreja. Ela tinha uma personalidade muito bonita, todo mundo gostava dela. É. Ela sempre foi católica normal, não era igrejeira nem carola. Antes de meu pai morrer.
R – Das coisas mais bonitas que eu ouvi você cantar, foi com sua mãe, cantando “E a fonte a cantar, chuá, chuá, e a água a correr, chuê, chuê...”.
Minha mãe cantava bonito.
R – Eu vi em um documentário.
É, foi um documentário.
R – Um documentário na casa dela. E Bethânia também estava. E vocês cantavam essa música. Ela cantando, que coisa linda...
Minha mãe cantava muito bonito. Ela cantava cedo, cantava em casa, assoviava, também assoviava bem, tudo afinado.
R – E ficava namorando em casa e não era carola.
Ficava namorando aos domingos com meu pai.
R – Que maravilha!
Bacana.
"NÃO SOU CRENTE"
R – Eu perguntei isso porque você disse: “Eu não sou crente”. Eu diria a mesma coisa. Mas nós somos minoritários. A maioria do povo brasileiro é religiosa, tem necessidade de se agarrar a alguma coisa, pedir proteção, e isso não é por acaso. As pessoas são muito desprotegidas mesmo. Então, elas precisam de proteção. Nossa Senhora de Aparecida é padroeira do Brasil. Eu, que não sou crente, no dia em que vi um pastor dar um pontapé na imagem de Nossa Senhora de Aparecida, eu fiquei indignada.
Eu também.
R – Indignada, porque eu fui batizada em Aparecida do Norte, sempre foi minha padroeira. Então, como é que se dá um chute em Nossa Senhora Aparecida? Aquilo para mim foi uma ofensa pessoal. Eu já não era católica há muito tempo, mas aquilo me feriu profundamente, numa espécie de raiz, ofendeu a minha infância. Acho que é porque a Igreja representa proteção e uma forma de comunidade.
E isso é importantíssimo. No caso dos evangélicos, então, é notável. É acolhimento
AC – Exatamente: eles se sentem acolhidos.
Muito importante. Eu não gosto – para isso, não precisei encontrar o Kleber Lucas – do desprezo total que, em geral, as pessoas bem formadas ou atuantes socialmente dedicam ao fenômeno evangélico.
R – Não se pode tratar essa questão com menosprezo.
Pois é, eu já não tratava. Mesmo antes de encontrar o Kleber Lucas, eu tinha lido um livro que era uma biografia, escrita por um casal, do bispo Edir Macedo. Depois li dois livros dele, de autobiografia. E ele tem umas coisas curiosas. Uma delas é relacionada ao chute na santa. Ele se detém nesse assunto, acha que foi a coisa mais errada que um evangélico já fez no Brasil. E a outra, que é uma coisa curiosa e que tem a ver com a modernidade do protestantismo, é que ele esboçou defender – está no livro e nas publicações, Folha Universal, que estão na igreja, que eu também lia às vezes – a legalização do aborto. Uma coisa que os católicos são totalmente contra...
AC – Ele defendia, é?
É, chegou a defender
AC – Não sabia, não.
Ele recuou por causa da bancada evangélica, pra não ficar mal, mas ele chegou não a esboçar vagamente, chegou a dizer mesmo.
AC – Eu acho tão importante que o aborto seja legalizado... São certas coisas assim que eu não sei como é que o Kleber vê. Por exemplo, esse assunto e certas coisas, como a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo. A legalização do aborto, eu acho importantíssima. Ambas são partes dos direitos humanos. Na verdade, é na medida que a religião colabora com a defesa dos direitos humanos que ela pode ser importante.
R – Você sabe, Cicero, na Conferência Mundial sobre Direitos Humanos, eu assisti, ninguém me contou, no momento em que, após noites e noites de negociação, decidiu-se, enfim, que os direitos das mulheres eram direitos humanos. Nós estávamos em 1993.
AC – Olha que loucura! Como é que pode?
Não é incrível?
AC – Agora, isso já mudou completamente.
R – Eu garanto a vocês que até hoje isso não é uma convicção generalizada.
AC – Os direitos humanos?
R – Das mulheres e dos gays, não.
AC – Os direitos humanos são universais...
R – Sim, mas no caso das mulheres e dos gays quem mais se opôs foram os países muçulmanos e o Vaticano.
AC – É verdade. Esse foi um lado terrível da religião.
R – A perseguição às mulheres continua até hoje. Nós vivemos num país em que o feminicídio corre solto.
AC – Nesse sentido, se a gente julga a religião a partir disso, na verdade isso significa que os direitos humanos, os seres humanos, têm que ser colocados em primeiríssimo plano em todas as coisas. Deus é uma coisa em que é possível você acreditar ou não acreditar. Isso é um dos direitos humanos: você acreditar ou não acreditar em Deus. Mas você não pode colocar Deus como o fundamento...
Dos direitos que os seres humanos têm...
AC – Na sua maneira de pensar, o fundamento tem que ser o próprio ser humano.
R – Um dos pilares dessa onda arquiconservadora que nós estamos vivendo são os chamados costumes. Costumes, para eles, têm uma conotação impositiva, imutável. Já, para nós, são as escolhas que eu faço, que você faz, diferentes para cada um, na sua vida.
AC – Cada um tem o seu. Já os direitos são universais. Você pode ter costumes diferentes de outra pessoa. Não podem questionar, não podem quebrar o direito de escolha. Isso é um absurdo. Quem é contra os direitos dos gays é que está sendo contra os direitos humanos. Porque eles estão restringindo um direito que racionalmente é um direito.
Sem dúvida. E isso me traz de volta aos evangélicos. Entre os evangélicos, há igrejas que defendem o casamento de pessoas do mesmo sexo. No catolicismo, não pode.
A LIBERDADE NÃO VOLTA PARA TRÁS
AC – Esse papa até tem uma posição diferente.
O papa Francisco é muito simpático. Ele fica segurando assim...
AC – Mas ele tem sido criticado por causa disso. Ele não declara...
Mas ele não mantém aquela posição moralista.
AC – Dá pra gente sacar, quem é inteligente saca, que ele acredita no direito de as pessoas exercerem sua sexualidade como quiserem.
R – O fato é que, em todas as conferências mundiais de que eu participei, e eu participei de toda a agenda social da ONU, conseguia-se negociar tudo, exceto o que dizia respeito às mulheres.
AC – Que loucura! Mas isto está acabando, está mudando, completamente.
Esse foi o tema da vida de Rosiska, não é? É a luta da vida dela.
AC – É verdade.
R – Quanto mais muda, mais somos atacadas. O que mudou para as mulheres não volta pra trás. Como não volta atrás o que foi conquistado como direitos dos gays.
Isso é uma das razões desse hiper-reacionarismo que está acontecendo no mundo todo e no Brasil em particular. É uma resposta, eu acho que é um grito por causa do avanço.
R – Do avanço da liberdade.
Da sensação de que não tem jeito, que não vai voltar. Não vai voltar.
AC – Em relação à liberdade, uma coisa absoluta é que você não tem o direito de fazer mal a outra pessoa. Ninguém tem o direito de impedir a liberdade de outra pessoa ou de maltratá-la, de qualquer jeito. Isso é um absoluto, é bem racional que cada um tenha o direito de ser como é. Acreditar em Deus ou não não é absoluto como isso. Isso é absoluto mesmo.
R – Deus aí é pretexto para o mal-estar que muitas pessoas sentem diante da liberdade alheia. Qualquer forma que ela assuma. Eu acredito firmemente que foi o avanço das liberdades que produziu essa reação violenta, demencial.
Contra a razão.
AC – É um contragolpe. Irracional.
"NÃO VAMOS DEIXAR"
R – Na canção “Não vou deixar”, você declara que não vai aceitar a destruição da nossa história como país, como povo, como cultura, e da nossa vida como pessoas. “E não vou deixar porque eu sei cantar”. Há mais de quarenta anos você respondeu à pergunta se o Brasil ia dar certo com uma afirmação: “Vai dar certo porque eu quero”. É essa mesma força estranha que lhe movia então e que lhe move ainda hoje?
Você sabe que é? Pra mim, é. No fundo, você foi no ponto exato, porque as duas coisas têm a mesma raiz, saem da mesma dimensão da minha personalidade. Eu me lembro quando disse: “O Brasil vai dar certo porque eu quero”. Foi na revista Veja. Muitas pessoas disseram: “Ah ele é muito autocentrado, narcisista”. Não sei o quê. Para mim, não era isso, era um convite à responsabilidade. Era como se eu dissesse assim: “Vai dar certo porque eu quero. Cada um deve poder dizer isso, entendeu?”.
É convidar as subjetividades a se decidirem quanto a isso. É um convite à responsabilidade. Atualmente, eu canto “Não vou deixar” e as plateias reagem, aplaudem uns trechos, cantam uns pedaços junto comigo, e eu, em geral, no fim, digo: “Não vamos deixar”. E aí a plateia se anima mais ainda.
R – Uma convocatória?
É, uma convocatória.
R – Você faz isso muito bem. Assume sua responsabilidade em face do Brasil. Dá suas opiniões, por mais polêmicas que sejam, enfrenta o debate público, não é? Eu acho que essa autoconfiança de que nós falamos há pouco, de se ver como uma possibilidade para o mundo, isso tem fundamento nesse “eu não vou deixar, e vai dar certo porque eu quero”. É isso?
Tem sim. Eu acho que tem.
R – E é muito bom que seja assim, porque nós precisamos ter convicção de alguma coisa sobre nós mesmos, senão ficamos à deriva do que vai nos acontecendo. O país está cada vez mais estranho, não é? Às vezes, parece irreconhecível.
É. Chegou a um ponto em que eu fiquei um tanto angustiado. Chegou a me parecer que não tem Brasil nenhum, nada disso. Mas, na verdade, esse meu impulso é mais forte e volta. Por isso, eu fiz a canção, fiz a canção num momento mais escuro do que agora.
R – Nós temos uma triste vantagem sobre as novas gerações, é que nós já vimos coisas tenebrosas.
Piores. Passamos por coisas piores.
R – Passamos. Essa foto que mostrei a você foi tirada no exílio. Estávamos todos no exílio nessa época.
Me lembro. A gente consegue ser otimista porque a gente diz: “Como assim?”. Tem momentos em que a gente fica pessimista, puxa!, caímos no buraco, não tem mais jeito. No entanto, a gente já viu coisa até pior do que isso. E, no entanto, a gente está aqui, a gente reergueu a cabeça. Está aqui falando. Mantendo a promessa.
R – Mantendo “sempre teso o arco da promessa”.
É, mantendo “sempre teso o arco da promessa”.
R – Eu adoro esse seu verso, guardei na memória a minha vida inteira, “manter teso o arco da promessa” é maravilhoso.
É, a imagem é boa...
R – E a interpretação da Bethânia é deslumbrante. Não tem intérprete igual.
Não tem, não. Ela é única. Única e irrepetível.
R – Ela é um fenômeno. Olha, Caetano, sua mãe e seu pai namoraram direitinho, capricharam.
Namoraram. Eles eram namoradores. Eles se sentavam ao lado, um do outro, na mesma cabeceira da mesa, não um em uma e o outro na outra. Porque a família era grande, a mesa grande, e eles dois ali na cabeceira da mesa. Eles pegavam a mão, ficavam se alisando, se pegavam.
R – Isso é lindo.
Isso é lindo. Muito bacana, isso realmente era bom.
R – E é por isso é que vocês saíram tão bonitos?
O que tem de bonito em nós vem daí. Tem um poema de minha irmã Mabel que eu acho muito lindo. Chama-se “DNA”. Mas eu não sei de cor. Todas as vezes que eu li ou ouvi, eu chorei. Até me lembrando vagamente, fico com vontade de chorar.
R – É mesmo?
É, porque é uma coisa sobre meus pais. Sobre nossos pais, não é? E ela dizendo como se a gente não pudesse, na nossa vida, chegar àquilo. É bonito, um poema curto.
R – Você quer publicar nessa sua entrevista?
Olha, se eu achar, sim. Sabe o que eu sou mais do que tudo? Desorganizado. Leitura, onde está o livro? É uma coisa louca, porque, se eu fosse organizado, e conversando com você, eu diria: espera aí, e aí eu pegava o poema de Mabel. Eu não tenho a menor ideia de onde está, não sei nem em que casa está, porque, quando eu me separei de Dedé, os livros ficaram na casa dela. Com a Paulinha, eu organizei livros, e às vezes ia pegar na casa de Dedé um livro que eu sabia que estava lá, ficava procurando, pegava um, trazia, misturei um pouco, entendeu? Então, é tudo muito, muito desorganizado. A leitura, um método de estudo, pra mim, é um caos. Eu leio muito, eu gosto de ler, sempre. Adoro, fico lendo coisas, mas é uma variedade muito grande...
R – Acho que isso é dos artistas...
É, acho que é porque eu sou artista.
O FILÓSOFO E O REGGAE
R – O que está ocupando seus pensamentos agora?
Olha, eu falo tanto, eu gosto de conversar, e também gosto de falar publicamente, mas não sei o que eu escolheria como tema favorito desse período. Olha só, é tudo nas minhas canções. Eu leio coisas de que eu não entendo também. Eu sempre fui assim... Quando a gente era novo, você escolhia se ia pro clássico ou pro científico, não é? No segundo ciclo do secundário, pelo menos na Bahia, era assim. E eu escolhi o clássico, sempre fui de Humanas, nunca fui das chamadas Exatas. E então eu sempre li mais coisas de filosofia. Eu entrei na Faculdade de Filosofia, fiz vestibular, passei e fiz o primeiro ano e uma parte do segundo, mas o segundo ano foi 1964. Um professor foi preso, três colegas sumiram, e eu terminei deixando, e Bethânia foi chamada pra cantar no Rio. Meu pai disse que só deixava se eu viesse com ela. Aí então eu vim pro Rio e nunca mais voltei pra universidade. Eu nem fechei matrícula, não fiz nada. Deixei. Estava muito ruim no momento, não é? Em 1964, o professor que era o mais brilhante de todos foi preso, levaram, e estavam errados. Ele era kantiano. Mas os milicos não entendiam nada.
R – Aí levaram porque era kantiano?
É, levaram porque ouviram falar que ele era...
R – Filósofo?
O diretor era a figura principal do curso de Filosofia da Universidade da Bahia – ele era um padre, e bom, ele era tomista. Depois, eu fui preso; depois, fiquei confinado em Salvador; depois, fui pro exílio, fiquei dois anos e meio em Londres. Quando eu voltei, voltei com um show ensaiado do Transa, porque eu tinha gravado o Transa, e eu tinha feito o show em Paris uma vez, e uma vez num lugar, foi em Londres mesmo. Foi no Queen Elizabeth Hall. Foi legal. Foi muito bom. O show com Macalé, Tutty Moreno, Áureo de Souza, Moacyr Albuquerque. E aí eu vim pro Brasil com esse show já pronto. E para estrear direto. Fiz no Rio, fiz em São Paulo, fiz em Recife, fui para Salvador, para fazer lá e ficar. Quando cheguei a Salvador, fui chamado pela censura porque tinha uma música que eles não tinham permitido. Eu tinha que ir lá ao lugar falar com o cara da censura, com o chefe da censura. Quando cheguei lá, o chefe da censura era o padre que era o diretor da faculdade.
R – Da Faculdade de Filosofia?
Eu estou lhe dizendo. Ele tinha deixado de ser padre, porque tinha se casado, tinha encontrado uma mulher, não sei o quê. Alguma coisa assim.
R – Mas daí a ser chefe da censura...
Era chefe da censura. E o problema dele sabe qual era? A palavra “reggae”. Ele foi meu professor, entende? Eu só faltava desmaiar vendo aquele homem fazendo o papel de censor mesmo, não é? Era o padre Pinheiro. Essa história é verídica, é uma história incrível, não é? Aquele homem na minha frente dizendo: “Essa palavra reggae, nós não encontramos em nenhum dicionário e há o risco de ser subversiva". E, olha, eu fui avisado antes, não o chame de padre Pinheiro, chame de professor Pinheiro, porque ele não é mais padre. E eu então disse: “Professor Pinheiro, essa palavra não pode estar em dicionário, porque essa palavra é o nome de um ritmo jamaicano novo, que ainda não é conhecido no mundo, mas eu conheço, porque eu morava em Notting Hill Gate. O negócio de reggae era tudo ali na Portobello Road; então, a música fala “Portobello Road to the sound of reggae”. E ele demorou muito e, depois, terminou fechando assim: “Você me dá a sua palavra de que é isso? Se depois nós descobrirmos que você está mentindo, você será punido”. “Disso, eu dou minha palavra”. E ele disse, então: “Eu vou deixar, experimentalmente, que você cante a canção no show”, pra depois descobrir se eu tava fazendo uma coisa subversiva. Agora, o reggae é subversivo. Não é uma história incrível?
[Entra Benjamin, neto de Caetano]
R – Esse é o Benjamin?
É Benjamin. Vem cá Benjamin. Você se lembra de que eu lhe ensinei o nome dela, se lembra como era? Rosiska.
R – É difícil, não é, Benjamin? Ele achou engraçado, ninguém se chama assim, não é? Mas acertou, aprendeu direitinho. O olhar dele é inteligente.
Ele é muito inteligente. Ele é. Muito, e canta. Imagina! Canta afinado com 2 anos de idade. É incrível! Mas acho que essa daqui é muito mais afinada do que nós. É a mãe dele, Jasmine.
[Entra a nora de Caetano]
Essa é a Rosiska. Vocês mulheres têm que agradecer muito a essa mulher... O que se conseguiu para as mulheres no Brasil se deve principalmente a ela.
R – Arranjei muita encrenca para vocês.
Encrenca boa.
SER PAI
R – Caetano, como é ser avô?
Olha, eu acho maravilhoso, mas a coisa mais surpreendente e impressionante na minha vida foi ser pai. Você sabe que eu tinha certeza de que não ia ter filho? Eu e Dedé, nós namoramos e nos casamos decididos a nunca ter filhos. Aí a gente estava em Londres, no exílio e já no último ano, que eu nem sabia que era o último ano do exílio, mas terminou sendo, e eu comecei a sentir vontade de ter filho. Uma coisa estranha, parece relógio biológico. Acho que sou uma mulher, não é?
R – Que chega um momento e tem vontade de ter filho?
Mas que coisa! Eu não gostava de criança. Achava criança um negócio chatíssimo e não gostava de ver anúncio na televisão que tinha bebê, aquele negócio nojento, tinha pena dos meus amigos que tinham filho. Que chato! Que negócio chato esse: ter neném em casa, depois menininho! Era tudo horrível. De repente, eu comecei a gostar até de anúncio da Johnson. Não sei, aí eu comecei a dizer a Dedé. Dedé disse: “O quê? Não, nem pensar”. E cheguei até a fazer uma piada, porque Gal foi nos visitar em Londres, e eu disse: “Gal, eu estou pensando em querer ter filho. Dedé não quer, você não quer ter o filho comigo? Tem um filho comigo”. Aí rimos, e tal, mas Dedé não queria de jeito nenhum. Mas aí se configurou de uma maneira até um pouco mágica, porque teve João Gilberto no meio, e nós terminamos voltando, porque esse negócio de voltar pro Brasil ficou bem complicado.
Meus pais fizeram quarenta anos de casados, e nós, eu e Bethânia, somos muito ligados, e admiradores dos meus pais. Todos os irmãos, todos, todo mundo, era uma coisa muito forte, e era um sofrimento grande pra eles que eu não estivesse na festa dos quarenta anos de casamento deles. Bethânia então se movimentou aqui pra conseguir uma permissão específica pra eu vir pra missa. Eu podia chegar ao Rio, encontrá-la, ir pra Salvador, ir à missa dos quarenta anos de casado de meu pai e minha mãe. E depois voltar pra Londres. Aí, quando cheguei aqui, eu e Dedé descemos do avião – a gente descia por uma escadinha, ainda andava, mesmo o voo internacional ainda era assim. Aí tinha um Fusca parado perto da escada, com os caras dentro, e eles logo saíram, me puxaram e Dedé foi andando na fila, e eles: “Pode seguir, pode seguir”. Era um sequestro, não é? Mas era oficial, eles estavam ali, e todo mundo estava avisado, o pessoal do avião... E eles me pegaram e me levaram pra um lugar na avenida Presidente Vargas. Num apartamento. E ficaram seis horas comigo me interrogando e me ameaçando.
Bethânia, que tinha conseguido tudo, tinha julgado que eles tinham prometido: “Não, está tudo certo, vem, chegará, será recebido”. E aí Dedé foi pra casa de Bethânia, ficou lá me esperando. Glauber e Luiz Carlos Maciel estavam na casa de Bethânia, quando Dedé chegou dizendo: “Olha, Caetano foi preso”, e ficaram lá esperando. Foi um interrogatório meio torturante, porque eles queriam que eu fizesse uma canção sobre a Transamazônica, louvando a construção da Transamazônica. Se eu não me comprometesse a fazer isso, eles não me soltariam. E eu fiquei seis horas mantendo essa posição, eu não ia fazer uma música pra louvar a construção da Transamazônica, e foi uma coisa dilacerante, horrível...
R – Puro Kafka!
É, parece um conto de Kafka. Depois eu vi que eles gravaram tudo, num gravador de rolo, não existia cassete ainda, eu acho. Eu não sei o que eles fizeram daquilo, não sei. E aí, depois de seis horas, eles me pegaram e me levaram pra casa de Bethânia. Num camburão, aí não foi mais o Fusca. E eu cheguei na casa de Bethânia apavorado.
R – Claro.
E angustiado; não conseguia nem falar. E Glauber me olhava assim com um olho, doido pra entender, e Maciel, muito razoável, equilibrado, fazendo perguntas mais objetivas. Fui falando, fui melhorando, e depois terminei indo pra Bahia, mas eles disseram: “Não pode sair de Salvador”. Não poderia ir a Santo Amaro, que fica a setenta quilômetros de Salvador.
R – Mas assistiu à missa?
Assisti, a missa foi em Salvador, não foi em Santo Amaro. Porque meus pais estavam morando em Salvador.
R – E depois soltaram você, mandaram você de volta?
Fizeram uma porção de coisas estranhas, me obrigaram a fazer duas aparições na TV Globo. Eu fiz, mas me obrigaram, disseram que eu tinha que fazer. Depois, voltei pra Londres. Voltei arrasado. Eu disse: “Dedé, eu não sei, acho que nunca mais a gente vai poder voltar ao Brasil”.
A festa de casamento de meus pais foi no início do ano, e, quando foi perto do fim daquele mesmo ano, o João Gilberto me telefonou, me chamando pra vir pro Brasil, pra gravar um programa de televisão com ele e Gal. João, que nunca tinha falado comigo, telefonou pra minha casa em Londres. João, pra mim, era uma coisa mais do que sobrenatural. E ele me disse assim: “Caeta, venha, você não sabe, você só vai ver sorrisos no avião, você vai saltar e você vai estar de novo no Brasil”. Tudo assim, ele tinha um jeito muito poético de falar, e meio louco, mas iluminado, não é? E eu acreditava nele quase como num santo, uma deidade.
Primeiro eu disse: “Não, não, não”; depois, “Dedé, vamos ver isso?”. E Dedé falou: “Vamos perguntar a Violeta Arraes”, que morava em Paris.
R – Foi muito minha amiga. Eu gostava muito dela.
Eu também. Foi uma mulher importantíssima na minha vida.
R – Ah, na minha também. Foi ela quem me ajudou quando eu fiquei exilada.
Ela chefiava a comunidade brasileira exilada na Europa. Era muito boa, muito generosa.
R – Inteligente, engraçada.
A gente tem que homenageá-la, falando dela. Conversei com Violeta e aí eu vim, aconteceu tudo que o João Gilberto falou. Desde dentro do avião.
Quando eu vim para o aniversário de casamento dos meus pais, o comportamento das aeromoças era todo muito fechado. Você via na cara que a pessoa sabia, não queria. Já nessa vez, quando o João disse que as pessoas iam estar sorrindo para mim desde o avião, de fato aconteceu.
E aí eu cheguei e fiz a gravação da televisão com João e Gal em São Paulo. Ninguém me parou em lugar nenhum. Mais nada. Tudo normal desde a chegada. Aí fui pra Salvador e disse: “Dedé, vamos pra Londres pegar tudo e voltar pra cá”. Aí fui pra Londres, peguei tudo. O produtor que tinha feito o Transa ficou muito sentido, porque ele disse: “Agora você pode ser bom profissionalmente e você vai embora”. “Mas eu vou pro Brasil, eu quero, eu vou”. E vim. Aí ficamos na Bahia; depois de uns dias na Bahia, umas semanas, Dedé disse: “Caetano, agora eu acho que eu topo esse filho que você quer”. Aí Dedé ficou grávida, e aí foi o que eu digo, que foi o acontecimento mais importante da minha vida adulta, o surgimento de Moreno.
R – O nascimento de Moreno.
O nascimento dele. E é até hoje.
SER CAETANO
R – Como é ser Caetano?
Eu gosto. Tem uma frase que Zé Almino Arraes me disse, que o Mangabeira Unger disse a ele, uma vez, em Nova York, que de vez em quando volta à minha cabeça: “Ser é melhor do que não ser”.
R – Caetano, existirmos, a que será que se destina?
Você faz essa pergunta a quem tem dentro de si essa pergunta sempre, não é?
R – Você já encontrou a resposta?
Não. Mas há algo de resposta na mesma canção que começa com essa pergunta, e que, de certa forma, responde. Porque foi no encontro com o pai do meu amigo que tinha se matado, o Torquato Neto. Em Teresina, o pai dele veio falar comigo, e foi tão bonito, todo o jeito dele, e ficamos sós, eu e ele, na casa, a mulher dele, a mãe do Torquato, estava hospitalizada. Ficamos sós, os dois na mesa da sala. Uma pessoa tão incrível, eu tava chorando muito, e ele respeitava, ficava calado, mas às vezes dava uma palavra de consolo. Ele me consolava. Aí ele se levantou, foi lá fora, e eu continuei chorando, sentado na mesa da sala, e ele voltou com uma rosa menina que ele tirou do jardim, e me deu a rosa menina... Estou contando a história da canção... Aí eu chorava, porque eu estava emocionado, chorava mais, e ele me tratava assim, com carinho, como quem...
R – ...Consola um menino.
E, finalmente, ele abriu a geladeira e botou dois copos de cajuína pra gente tomar.
R– Cristalina.
Cajuína é muito cristalina, não é? E ele também, e a rosa menina que ele trouxe. Então, de certa forma, responde, não é? Isso responde.
R – Existimos pra esses momentos.
É, pra coisas assim.