Perguntas e Respostas: Da prisão e do exílio ao estrelato musical, o brasileiro Caetano Veloso está pronto para fazer sua estreia em Houston

Entrevista para o Houston Chronicle (1º de março de 2024)

Por Cary Darling - tradução livre.

Clique aqui para ler no site original.

Foto: Andres Stapff/ Reuters

O New York Times o saudou como “um dos maiores compositores do século” e ele foi comparado a Bob Dylan tantas vezes que essa aclamação passou de um elogio generoso a um clichê de revirar os olhos.

Mas o brasileiro Caetano Veloso, 81 anos, um dos pioneiros do movimento inovador da tropicália (ou tropicalismo) daquele país, que remodelou radicalmente a música brasileira nos anos 60, pagou um preço elevado que poucos daqueles com quem é comparado tiveram de pagar. Em 1968, ele e o também músico e amigo Gilberto Gil foram presos pelo governo militar da época, ficaram meses presos, foram libertados em prisão domiciliar e depois exilados em Londres.

Veloso, que faz um show raro no Texas no dia 24 de março no Hobby Center de Houston, foi autorizado a retornar ao Brasil em 1972. Ele começou a reconstruir um carreira misturando o tradicional samba brasileiro, a bossa nova e os ritmos afro-baianos de sua infância perto da cidade de Salvador com rock, jazz e um sentido experimental de pop. A abordagem fez dele uma figura de destaque no movimento MPB (música popular brasileira) e acabaria por lhe render dois Grammys, 13 Grammys Latinos e uma performance nos Jogos Olímpicos de Verão de 2016, no Rio de Janeiro.

É considerado um poeta contemporâneo da língua portuguesa e o seu tenor suave e frágil levou a cultura lusófona (de língua portuguesa) a todo o mundo. Vários de seus discos, incluindo "Estrangeiro" (1989) e "Livro" (1997), são reverenciados como clássicos da música brasileira. Mas seu apelo não para
na fronteira brasileira.

A fadista lisboeta Carminho, que canta no filme “Poor Things” e já gravou e cantou no palco com Veloso, diz que o seu impacto tem sido enorme. “Para mim, ele é um dos maiores artistas do mundo, mais completo como performer, escritor e pensador”, disse ela em entrevista no Google Meet. "É uma honra trabalhar com ele. Ele é um gênio."

“É provável que ele toque qualquer coisa, desde rock dissonante até baladas românticas e cadenciadas, passando pela bossa nova, até uma música reforçada por ritmos afro-baianos como o afoxé”, diz o escritor americano Chris McGowan, co-autor do livro “The Brazilian Sound: Samba, Bossa Nova e Música Popular do Brasil", via texto: “Tem uma mente inquieta, curiosa e teve papel importante na experimentação e hibridização da música brasileira dos anos 60 aos 80”.

Nos EUA, Veloso conta com David Byrne, Beck e Madonna entre seus fãs – esta última fez uma reverência diante dele no palco em São Paulo – e já se apresentou em locais tão sublimes como o Hollywood Bowl em Los Angeles, o Carnegie Hall em Nova York. e o Kennedy Center em Washington D.C.

Veloso se interessou pelo inglês, chegando ao ponto de gravar "A Foreign Sound", um álbum com covers de algumas de suas músicas favoritas em inglês, incluindo "Come As You Are" do Nirvana, "Nothing But Flowers" do Talking Heads e o standard de jazz "Body and Soul". (Ele também gravou em espanhol, incluindo sua versão da requintada "Un Vestido y Un Amor" do cantor argentino Fito Paez.

Ao mesmo tempo, apesar da prisão, ele continuou a falar sobre a política brasileira a partir de sua perspectiva de esquerda. Sua autobiografia de 1997, "Tropical Truth: A Story of Music and Revolution in Brazil", narrou sua abordagem "incitadora" da música, da política e da vida. Em 2018, às vésperas da eleição do presidente direitista Jair Bolsonaro, ele até escreveu um artigo de opinião no The New York Times intitulado “Tempos sombrios estão chegando para meu país”.

Mas, apesar de seis décadas tocando em todo o mundo e ganhando as manchetes, ele nunca fez um show no Lone Star State. Isso é, até agora com seu show em Houston, que será a noite de abertura de uma breve turnê americana para promover seu primeiro álbum de material inédito em nove anos, “Meu Coco”.

Em vez de uma entrevista solicitada, enviamos várias perguntas ao Veloso por e-mail. Suas respostas foram editadas para maior clareza.

P: Você já cantou no Texas antes e, se sim, em que cidade você tocou e teve tempo de absorver qualquer cultura do Texas, seja música, culinária ou não?

R: Tenho certeza que estive em Austin há alguns anos em um evento organizado pela MLA (Modern Language Association). Depois conversei com a crítica de poesia Marjorie Perloff. Não tenho certeza se cantei alguma coisa. Eu gostei de Austin. Não parecia o Texas nos faroestes.

P: Eu sei que você foi fortemente influenciado quando jovem músico pelo (grande mestre da bossa nova brasileira) João Gilberto. O que havia na música dele que tocou tanto em você?

R: Não só eu, a maioria das pessoas que compuseram, cantaram ou tocaram música popular no Brasil do final dos anos 50 ao início dos anos 60 sempre disseram quão fortemente foram influenciados por João. Dele tocar guitarra, seu sutil senso de ritmo, sua escolha de músicas antigas e novas, tudo nele provocou uma mudança nos ouvidos e corações de todos. Na pequena cidade onde eu nasci, Santo Amaro, um cara que tinha um barzinho que vendia cerveja para pessoas comuns comprou duas cópias de seu primeiro LP: um para tocar o tempo todo e o outro para manter intocado. Ao mesmo tempo, músicos e poetas e intelectuais ficaram maravilhados com a valor estético de sua obra. João sugeriu uma visão sofisticada da nossa tradição musical e da nossa capacidade de modernizar a música numa dimensão global.

P: Você e sua irmã (cantora Maria Bethânia) além de outros como Gilberto Gil, Gal Costa, Tom Zé e Os Mutantes começaram a misturar esse fascínio com João Gilberto e bossa nova com influências de rock/R&B da América do Norte e o Reino Unido. Quanto disso foi um decisão deliberada e consciente de fundir esses dois mundos ou era mais algo que aconteceu de momento?

R: Da nossa parte, foi uma decisão consciente. Muitos colegas pós-bossa nova ficaram chateados – e seu público ficou furioso. Acharam que estávamos nos vendendo, desrespeitando a qualidade da bossa nova. Mas lembro de ter visto uma exposição de pintores pop americanos na Bienal de São Paulo de 1967 e de me identificar com o que vi. Estávamos citando rock (que já era um fenômeno no Brasil, principalmente em formato comercial de TV), R&B, músicas antigas brasileiras e até bossa nova. Você usou a palavra 'mistura'. Naquela época eu não teria aceitado isso. Estávamos nos referindo à união do comercialismo internacional com as pretensões brasileiras, com certa ironia. Era mais como uma colagem de estilos. No final, os adeptos da bossa nova ficaram contra nós e o João Gilberto contou e mostrou que entendeu e respeitou a profundidade disso.

P: Como você vê o movimento da tropicália se ajustando ao 'Manifesto Antropofágico' no Brasil ou você o viu como algo totalmente novo? (O manifesto proclamava que a tendência da cultura brasileira de “canibalizar” outras culturas é o seu superpoder).

R: O já tão famoso manifesto de Oswald de Andrade não era ensinado nas escolas brasileiras naquela época. Oswald havia sido esquecido. Somente em contato com o grupo paulista de poesia concreta pudemos conhecê-lo. Quando li o 'Manifesto Antropófago', fiquei hipnotizado com a coincidência de alguns pontos cruciais do nosso movimento e das ideias de Oswald. O movimento modernista foi falado nas escolas... mas Oswald nunca foi mencionado. Seus livros não estavam disponíveis. O grande poeta Augusto de Campos foi quem me apresentou a obra de Oswald. Então me identifiquei com suas posições e admirei seus poemas e romances.

P: Quão influente foi sua passagem pelo Rio, morando no Solar da Fossa, em sua música e perspectivas naqueles anos? (O Solar da Fossa era um complexo de apartamentos onde viviam muitos músicos, escritores e poetas). 

R: Morar no Solar da Fossa foi ótimo. Tive o genial sambista Paulinho da Viola num quarto bem em frente ao meu. Ele tem exatamente a mesma idade que eu. Conversamos e cantamos. Tenho muito orgulho de dizer que Paulinho foi a primeira pessoa a ouvir uma música tropicalista minha, 'Paisagem Útil', e sendo um sambista puro, ele não rejeitou minha música que falava de um anúncio da Esso que foi visto no final de uma moderna avenida à beira-mar construída recentemente no Rio. Mas o baiano que também morou lá, Rogério Duarte, escritor e poeta que trabalhava com publicidade e era rebelde, sugeriu muitas perspectivas para ver a cultura brasileira.

P: Você antecipou a profundidade da reação que receberia tanto da esquerda brasileira quanto do governo militar da época?

R: Ambos me pareceram desagradáveis. Mas a ditadura militar, apoiada pelos EUA, é claro, parecia imensamente mais sombria do que os estudantes de esquerda que nos vaiaram. Eu não odiava os esquerdistas. Odiei os militares que organizaram um golpe e foram opressores desde o início - e pioraram muito em 1968.

P: Exatamente por que ambos os lados se sentiram tão ameaçados?

R: Eu estava mais perto da esquerda. Participei de grandes marchas contra a opressão e a crueldade. Mas eu nunca teria esperado reações do governo. Eles nos prenderam por dois meses, depois por mais seis meses fomos mantidos em confinamento, finalmente eles nos exilaram – e o exílio durou dois anos e meio. Eles não nos disseram nada por cerca de um mês. Então eles começaram a nos interrogar. Passo a passo, percebi que eles estavam demorando. Tinham um motivo para nos prenderem: supostamente havíamos cantado o hino nacional com palavrões, o que não era verdade - e testemunhas o afirmaram. Mas eles não nos libertaram. Um dia, um capitão treinado nos EUA me disse que não poderíamos enganá-los; que éramos ainda mais subversivos que os comunistas, pois confundimos o gosto, a moral e o inconsciente do povo. Nos levaram para a Bahia num avião militar e nos proibiram de sair da cidade. Tivemos, durante seis meses, que nos apresentar a um coronel e assinar na página de um livro. Os estudantes de esquerda acabaram por nos vaiar no palco – e não foram informados pela imprensa censurada sobre a nossa prisão, confinamento ou exílio.

P: De todos os músicos da tropicália ou movimento do tropicalismo da época, por que você acha que o governo se apoderou de você e Gilberto Gil para prisão e exílio?

R: Éramos vistos como líderes. E éramos os mais famosos do grupo. Também fomos os mais presentes em jornais, revistas e na TV.

P: Você falou e escreveu sobre como foi deprimente estar na Inglaterra depois de deixar o Brasil. Mas, musicalmente, o final dos anos 60 não foi uma época emocionante para estar em Londres?

R: A razão pela qual fomos para Londres foi o fato de ser o lugar mais seguro e onde a música era mais vibrante, inventiva... Ouvir os Beatles nos inspirou muito antes de sairmos do Brasil. Paris estava no rescaldo dos acontecimentos de 1968 (protestos massivos). Portugal ainda estava sob a ditadura de Salazar, embora Salazar tivesse morrido, deixou Marcelo Caetano no seu lugar. Eu estaria deprimido em qualquer lugar: estava fora do Brasil. Nosso empresário já estava na Europa, pois o Gil havia sido convidado para fazer o Festival MIDEM na França. Ele tinha ido arrumar as coisas para o Gil... Ele nos recebeu em Lisboa, depois fomos para Paris e ele nos disse que o melhor era irmos para Londres.

P. Quando você voltou ao Brasil alguns anos mais tarde, houve algum medo de represálias e, se sim, como isso impactou sua música?

R: Antes de eu voltar, minha irmã, Maria Bethânia, pediu a algumas pessoas próximas ao governo que me dessem uma autorização especial para vir, caso contrário eu seria o único filho a faltar na comemoração dos 50 anos de casamento de nossos pais. Os militares concordaram. Mas quando cheguei no aeroporto do Rio com Dedé, então minha esposa, alguns homens saíram de um Volkswagen e me levaram. Eles não estavam em uniforme militar. Fiquei seis horas num apartamento no centro da cidade. Eles me interrogaram, ameaçaram me prender novamente, me torturaram psicologicamente, me disseram que eu era obrigado a escrever uma música em homenagem à Rodovia Transamazônica.

Depois de seis horas me disseram que eu não poderia dar nenhuma entrevista sem ser revisada por um agente. Eles também me disseram que eu não poderia cortar meu cabelo (que estava comprido de novo) e tive que fazer duas aparições na TV cantando, para que tudo parecesse normal. Eu não podia sair da cidade de Salvador, onde minha família morava na época. Só pude ficar um mês. Na casa dos meus pais eu ficava com dois agentes permanentemente na porta da frente. Então voltei para Londres pensando que talvez nunca mais estaria no Brasil.

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