Caetano revê textos que escreveu sobre cinema e diz que público já não é resistente aos filmes nacionais: 'Se for forte, as plateias exultam'

Entrevista para o Jornal O Globo (22 de junho de 2024)

Por Luiz Fernando Vianna

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Foto: Redes sociais @caetanoveloso.

Muito antes de ser um compositor conhecido, Caetano Veloso foi um apaixonado por cinema. Primeiramente, na adolescência, como espectador das sessões dos cinemas Subaé, Santo Amaro e São Francisco, na sua cidade natal, Santo Amaro da Purificação, no Recôncavo Baiano. Depois, na juventude, também como crítico em Salvador.

Ao longo das décadas de carreira musical, Caetano continuou, eventualmente, escrevendo sobre filmes — e até fazendo um, “O cinema falado”, de 1986. Na coluna que manteve aqui no Segundo Caderno entre maio de 2010 e agosto de 2014, vários textos eram o que o professor de cinema Rodrigo Sombra define como “críticas camufladas”. Sombra e o jornalista Claudio Leal reuniram 62 artigos de Caetano, além de entrevistas e depoimentos, em “Cine Subaé”, que traz seus escritos sobre cinema publicados entre 1960 e 2023.

A antologia começa com o que ele publicou no jornal O Archote, de Santo Amaro, entre 1960 e 1962. Caetano reviu esse material em janeiro de 1995, levado pelo repórter Waldomiro Júnior, da sucursal do GLOBO em Salvador. Nos três primeiros anos de atividade, ele também escreveu para o Diário de Notícias, da capital baiana.

Na apresentação de “Cine Subaé”, ele diz que “gostaria de ter tempo de escrever uma crítica das críticas que aqui se reúnem”. E completa: “Seria talvez um tanto ácida.”

— Muitas são imaturas — justifica, em entrevista por e-mail. — Foram escritas quando eu tinha 18, 19 anos. Outras são irresponsáveis: foram escritas quando eu não posava mais de crítico de cinema. Gosto de rever certos esboços de argumento crítico, mas é claro que não aprovo a maioria. O que não quer dizer que desgosto dos textos todos.

Naquele início, era um crítico militante. Escrevia de Salvador para os leitores de Santo Amaro procurando demovê-los do interesse pelo cinema comercial. No segundo artigo, avisa: “Sinto decepcioná-los, mas aqui vai como uma notícia: não é o ‘ator’ e sim o ‘diretor’ o importante num filme.”

— Há certo sectarismo dele, juvenil, de trazer o público para um cinema reflexivo, enquanto a cidade se direcionava para um cinema popular, do melodrama. O curioso é que no tropicalismo ele revê radicalmente isso — diz Cláudio Leal.

Sombra complementa:

— Estava sintonizado com o espírito do tempo. Eram críticas em que ele participava de um debate em torno da legitimidade artística dos filmes. Começou a escrever no auge do cinema moderno, quando havia uma espécie de surto de inventividade em termos mundiais.

Ainda que a paixão para o cinema nunca tenha ido embora, Caetano ressalta que “a música teve poder” sobre ele.

— Faz tempo que eu sei que gosto mais do ambiente da música popular do que do ambiente do cinema, embora eu tivesse adorado as manhãs de filmagens de “O cinema falado”, com (o diretor de fotografia) Pedro Farkas ao meu lado e a equipe bem preparada para fazer o que fosse preciso — afirma. — Mas a música tem a vantagem de você poder ter o prazer do trabalho durante a apresentação. Cinema toma muito tempo de inspiração, planejamento, produção e apresentação. Quando você começa a fazer já está tratando de um lance que tardou até chegar ali. E quando exibe, está longe até da montagem (que hoje, americanizados, chamamos de edição).

Filmes narrativos

Depois da estrutura fragmentada de “O cinema falado”, Caetano pensava em fazer “filmes narrativos”. Cogitou dirigir a adaptação de “Ó pai, ó”, peça de Márcio Meirelles, mas ela ficou a cargo de Monique Gardenberg. Em depoimento para Leal e Sombra, ele revela que imaginou uma história passada em Salvador e inspirada num jovem que conheceu na cidade, Marco Polo. Também não aconteceu.

As dificuldades de se filmar impedem que ele fique triste por ser cineasta de um filme só.

— Não sinto propriamente uma frustração. Ou pelo menos não é só uma frustração, já que há considerável sensação de alívio — diz.

Caetano teve uma espécie de epifania na adolescência, quando assistiu no Cine Teatro Subaé a “A estrada” (1954), de Federico Fellini. Ficou especialmente tocado pela interpretação de Giuleta Masina — a quem, quase três décadas após se apaixonar também por “Noites de Cabíria” (1957), dedicaria uma canção.

Mas sua maior influência foi Jean-Luc Godard, como indicam artigos do livro.

— Godard eu vi no pré-tropicalismo — recorda. — Entendi tudo do tropicalismo quando vi, aconselhado por Duda Machado (poeta baiano), o “Acossado” (de 1960). Entendi profeticamente. Fiz um samba-cançãozinho chamado “Clever boy samba” para cantar num night-club baiano chamado Anjo Azul (show que afinal não se deu) em que as citações, paródias, colagens pop-tropicalistas apareciam anos antes de eu dar, com (Gilberto) Gil, a virada de 1967.

O livro traz uma entrevista de 1994: “Rejeição ao cinema brasileiro é um sintoma de má saúde do Brasil”. Trinta anos depois, ele não vê tanta má vontade do público:

— Não tanto quanto tinha. Se o filme conseguir ser forte, as plateias exultam. E não é sentimento de patriotismo: é admiração e excitação com o filme em si. “Cidade de Deus” (de Fernando Meirelles e Kátia Lund) não é o único exemplo. Os sucessos de filmes coloridos dirigidos por Cacá Diegues, como “Xica da Silva”, “Bye bye Brasil” ou “Deus é brasileiro”, se deram sem o comentário silencioso tipo “puxa, um filme brasileiro que se pode ver sem querer sair do cinema”. Citei Cacá, mas há outros.

Em outra entrevista, de 2013, afirma: “O cinema foi e é modelo consciente ou inconsciente de minhas canções.”

Entre outros momentos, Leal destaca a ligação entre as duas artes nos discos “Transa” (1972) e “Araçá azul” (1973).

— A colagem, todos os recursos de vanguarda, ele transporta para a música. Vem do cinema esse tipo de procedimento — diz o jornalista.

Oscilações

Caetano não costuma transformar suas impressões sobre as coisas em dogmas. Muda de opinião de quando em quando. É o que também acontece em relação ao cinema, na visão de Sombra:

— Há certa oscilação entre adesão a filmes artisticamente ambiciosos e a filmes de caráter industrial. No início, ele é muito refratário ao cinema hollywoodiano. Já no tropicalismo, diz que preferia os filmes de 007 aos filmes de arte. Depois, retorna ao momento anterior, incomodado com o domínio avassalador de Hollywood. Depois, nos textos do GLOBO, diz que se acostumou tanto a ver filmes falados em inglês que sentia até uma estranheza em ouvir outras línguas.

Em meio a uma rotina intensa de shows e gravações, Caetano não assiste a muitos filmes hoje, muito menos em salas de cinema, como preferia:

— Não vejo tanto quanto via quando era jovem. Há a música e a idade. Às vezes revejo filmes no computador, mas mesmo isso não é muito. Recentemente gostei de “Maestro” (de Bradley Cooper) e de “Sem coração” (de Nara Normande e Tião).

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